Bolhas da incompreensão
Os caminhos traçados pela humanidade das redes sociais.
“Hoje a sociedade está entrando numa constelação que se afasta totalmente do esquema de organização e de defesa imunológicas. Caracteriza-se pelo desaparecimento da alteridade e da estranheza. A alteridade é a categoria fundamental da imunologia. Toda e qualquer reação imunológica é uma reação à alteridade. (…) O desaparecimento da alteridade significa que vivemos numa época pobre de negatividades. (…) A violência não provém apenas da negatividade, mas também da positividade, não apenas do outro ou do estranho, mas também do igual. Baudrillard aponta claramente para essa violência quando escreve sobre o igual: ‘Quem vive do igual, também perece pelo igual.’”[1]
Byung Chul-Han articula, em “Sociedade do Cansaço”, uma definição imunológica da humanidade contemporânea, estrutura que notadamente transborda para o espectro social do indivíduo. Em oposição ao que define como “época imunológica”, vigente durante o século passado justamente numa disposição coletiva de defesa contra o estranho ou exterior, no atual milênio nos colocamos no que pode se dizer “sistema do igual”, uma arquitetura na qual não há presença tolerada do elemento externo ou negativo. Solidificamos o “totalitarismo do igual”, nas palavras de Jean Baudrillard. É concebível partir deste ponto para assimilar uma “consciência coletiva” de nosso tempo.
“Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensões do homem: a simulação tecnológica da consciência, pela qual o processo do criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a toda a sociedade humana, tal como já se fez com nossos sentidos e nossos nervos através dos diversos meios e veículos.”[2]
Entendendo todo meio de comunicação enquanto extensão do homem desenvolvida pelo próprio, Marshall McLuhan apontava, em 1964, para o momento em que a espécie, não satisfeita com criações capazes na ampliação de seus “sentidos físicos”, por assim dizer, viria a elaborar um meio efetivo para o alargamento de sua consciência. As redes sociais são, certamente, o mais importante meio comunicativo concebido pelo ser humano nas últimas décadas — e ainda que a primeira delas, “Classmates”, exista desde 1995, é possível atribui-las o título simbólico de grande criação do século XXI, do ponto de vista da comunicação.
Estas instituições midiático-digitais, intensamente popularizadas na década presente, não foram pensadas e concebidas meramente para representarem novas alternativas de produção, veiculação e acesso à informação ou trajetos virtuais de interação interpessoal; suas ambições são mais complexas e refletem, também, o anseio humano por sua existência. “A partir dessas premissas, no entanto, Siegel chega a uma proposição diferente: a internet é o primeiro meio de comunicação de massa. (…) Ao permitir que qualquer pessoa, provida de equipamentos relativamente simples e baratos como câmeras e gravadores de áudio, crie e publique seu próprio conteúdo, e levando em conta que isso é feito por milhões de pessoas todos os dias, pela primeira vez chega-se a uma produção em massa, com um grau de difusão além de qualquer delírio capitalista das grandes corporações de mídia.”[3] Ainda que Lee Siegel entenda a web, de um modo geral, como habilitadora da plena produção massiva, deve-se compreender que somente o advento das redes sociais possibilitou factualmente este espaço, oferecendo a todo e qualquer usuário um território de abrigo de conteúdo e o alcance determinado de um público; tratava-se, portanto, de um desejo antigo do homem sob o guarda-chuva da cultura: a possibilidade de abandonar a passividade do receptor e tornar-se, também, emissor — e só recentemente este pôde-se considerar correspondido.
A partir deste “cumprimento social”, as redes sociais passaram a trilhar um percurso de correspondência e representação da consciência coletiva, precisamente conforme Marshall McLuhan havia sinalizado. Considerando, destarte, a estruturação do consciente geral contemporâneo enquanto totalitariamente perpetuador do igual, estes mecanismos impõem o fortalecimento desta lógica.
Para desempenharem a função eficientemente, estas instituições desenvolveram recursos de organização e distribuição da — abundante — informação veiculada. O Facebook possui o EdgeRank[4], por exemplo, um algoritmo ordenador do conteúdo que ocupa o feed de notícias de cada usuário de acordo com três fatores: afinidade, relevância e tempo de publicação. O Twitter, seguindo a tendência, alterou seu algoritmo de modo que as publicações não cheguem às timelines conforme o momento de sua postagem, mas sim de sua “relevância personalizada”, incluindo a exibição de tweets curtidos por contas com quem você interaja mais frequentemente — independentemente da autoria. O Google hierarquiza os resultados obtidos com uma pesquisa a partir da constância de acesso do realizador da busca às fontes (sites) alcançadas, e até mesmo o Netflix possui um algoritmo[5] responsável por atribuir um “nível de relevância” aos filmes presentes na interface dos assinantes em concordância com os títulos previamente assistidos pelos mesmos.
“A facilidade de encontrar pessoas com interesses semelhantes na internet faz com que a formação de grupos seja fácil e rápida. A convergência de objetivos ou gostos é um dos fatores responsáveis pela formação de conexões.”[6], conforme aponta a reflexão de Clay Shirky, trata-se de fato de uma das principais realizações de potencial da esfera virtual — mais uma vez, sobretudo no âmbito das redes sociais -, uma vez que formaram-se grupos de interesses cujas relações de coletividade estabelecidas seriam inimagináveis sem a aproximação digital. Um fã de animes brasileiro e um japonês, por exemplo, podem utilizar o Twitter para interagir e trocar informações sobre o tema que os encanta e une de maneira inconcebível anteriormente. Esta “coligação de interesses”, no entanto, não pode ser desmedida: a estruturação algorítmica das redes sociais não apenas beneficia em termos de exposição aquilo que é referente aos assuntos, posicionamentos ideológicos, temáticas ou figuras públicas que mais agradam a cada pessoa: ela oculta tudo aquilo que não é.
“Há no cyberespaço a possibilidade de realmente descobrir alguma coisa? Internet apenas simula um espaço de liberdade e de descoberta. Não oferece, em verdade, mais do que um espaço convencional, onde o operador interage com elementos conhecidos, sites estabelecidos, códigos instituídos. Nada existe para além desses parâmetros de busca. Toda pergunta encontra-se atrelada a uma resposta preestabelecida. Encarnamos, ao mesmo tempo, a interrogação automática e a resposta automática da máquina.”[7], observa Jean Baudrillard, levantando um dos questionamentos mais contundentes no que se refere a esta problemática: a partir de quando os conteúdos que chegam a nós estão atrelados a códigos, mecanismos e filtros que os selecionam de acordo com autorias, linhas de pensamento e temáticas que já fazem parte do nosso repertório de acesso, estamos tendo acesso a alguma informação nova, ou nos deixamos condenar à repetição do que nos é familiar, conhecido e agradável? As máquinas responsáveis pelo processo são capazes de desvendar a subjetividade do indivíduo de modo a compreender seus interesses além de meras generalizações? Este problema nos afeta intensamente em diversos âmbitos, desde uma playlist cujos artistas sempre serão os mesmos até a alienação extrema a uma ideologia política.
“Precisamos desesperadamente de filtros”, afirmou o engenheiro de computadores David Rokeby[8]. Definitivamente, seria impossível nos cercarmos por toda espécie de narrativa, todo assunto ao qual alguém se dedica a produzir conteúdo cotidianamente em algum lugar do mundo — para isso, foram planejadas ferramentas de busca por palavras-chave e divisões temáticas em fóruns de discussão virtuais, por exemplo. A internet tornou-se uma ferramenta de comunicação tão útil fundamentalmente pela praticidade com a qual podemos encontrar as informações que buscamos e, assim sendo, é natural e aceitável que haja a mecanização da parte do processo de filtragem. Os excessos deste projeto, contudo, restringem uma das principais virtudes alcançadas pelos meios virtuais: a absoluta liberdade de produção e acesso à informação. As “hierarquias de exposição” fragmentaram o público ao qual cada conteúdo pode chegar de maneira agressivamente redutiva, consequentemente inibindo o alcance de determinadas audiências a determinados conhecimentos digitalmente produzidos. A própria ideia de liberdade comunicativa integral, por conseguinte, tornou-se um dos mitos da era digital — e este nem é o principal dos problemas.
“O desenvolvimento do individualismo certamente ampliou a possibilidade de análise pessoal, de reflexão pessoal, de decisão pessoal, e multiplicou as relações afetivas de amizade e de amor entre as pessoas. Mas também a autojustificação e a self-deception quase sempre assumiram o controle da relação com o outro. A incompreensão possui círculos viciosos contagiosos: a incompreensão em relação ao outro suscita a incompreensão desse outro (…) Por toda a parte espalhou-se o câncer da incompreensão cotidiana, com assassinatos psíquicos (“morra”), redução do outro ao imundo (“esse merda”, “porco”, “sujo”). (…) A compreensão complexa do ser humano não aceita reduzir o outro a um único aspecto e o considera na sua multidimensionalidade. Trata-se de um erro intelectual reduzir um todo complexo a um único dos seus elementos e esse erro se torna pior em ética do que em ciência. A redução impede a compreensão do outro.”[9]
Apropriar-se da “lógica da incompreensão” de Edgar Morin e entendê-la enquanto perfeita assimilação das consequências do atualmente vigente “totalitarismo do igual” de Jean Baudrillard é incontestavelmente cabível. Algoritmos e suas teias de fortalecimento da repetição nos aprisionam em bolhas nas quais a incompreensão impera. São espaços inegavelmente agradáveis, nos quais a identificação e o acordo, aparentemente, imperam. Não há alteridade. Também não há tolerância. Se perdemos contato com o diferente, abdicamos da habilidade de tolerá-lo. A permanente relação íntima com discursos e indivíduos que nada representam além da reafirmação dos nossos próprios valores tornará assustadora para nós a experiência da retomada do atrito, da reaproximação àquilo que nos contrapõe e contraria — e o ódio poderá transformar-se em mecanismo de reação. O mesmo Morin, todavia, orienta: “Compreender não significa justificar. A compreensão não desculpa nem acusa. Favorece o juízo intelectual, mas não impede a condenação moral. Não leva a impossibilidade de julgar, mas à necessidade de complexificar o nosso julgamento.”[10]
A habilidade de tolerar e conviver com o outro, independentemente do quão antagônicas às nossas sejam suas convicções e hábitos, é preciso entender, não constitui uma traição aos próprios valores morais e ideológicos ou a abdicação da possibilidade de reivindicá-los. Trata-se, porém, da negação da estupidez da incompreensão em favor do exercício da humanidade. E aquilo que é demasiadamente mecânico e digitalizado, nota-se, dificilmente será humano ou promoverá a humanidade.
“A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que podem ser chamadas “ciências conforme a nossa vontade”. Pois um homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.”
- Francis Bacon
Originalmente publicado em 29 de junho de 2017.
Agradecimentos especiais ao professor Diogo Andrade Bornhausen.
Referências:
[1] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 1. A violência neuronal.
[2] MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. Prefácio.
[3] MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais. 2. A cultura digital nas relações cotidianas: Lee Siegel.
[4] EdgeRank — Desvelando o algoritmo do Facebook. Publicado em 15 maio de 2017. Em: https://anterioridade.atavist.com/desvelandoedgerank
[5] Assimilando criticamente o algoritmo do Netflix. Publicado em 06 de setembro de 2016. Em: http://www.cinemadebuteco.com.br/colunas/assimilando-criticamente-o-algoritmo-do-netflix/
[6] MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais. 6. A força das conexões em grupo: Clay Shirky.
[7] BAUDRILLARD, Jean. Tela Total. 22. Tela total.
[8] KERCKHOVE, Derrick de. A Pele da Cultura. 5. Romance de Beira de Estrada — A televisão se casa com o computador na autoestrada da informação.
[9] MORIN, Edgar. O Método. 6. Ética.
[10] MORIN, Edgar. O Método. 6. Ética.