Cinema Novo: a glória de uma frustração
Um breve retrato do mais significativo movimento cinematográfico da história do Brasil.
O final da década de 1950 e, especialmente, a década de 1960 representam um marco, possivelmente insuperável, para a produção cinematográfica brasileira: dava-se início ao movimento do cinema novo.
“’Faça-se arte, pereça o mundo’, diz o fascismo, e espera a satisfação artística da percepção sensorial transformada pela técnica, tal como Marinetti confessa, da guerra. Isso é evidentemente a consumação da arte pela arte. (…) Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.”[1]
As palavras do sociólogo alemão Walter Benjamin, embora contextualizem-se mais de duas décadas antes da concepção do movimento, são atemporais no sentido de afirmarem o poder político da manifestação artística e, consequentemente, do cinema. A sétima das artes foi desenfreadamente apropriada por ordens políticas autoritárias para propagandear seus ideais, convenções e normatividades à população de maneira mais persuasiva. Assim fizeram o nazismo, na Alemanha, e o comunismo, na União Soviética. O que a tese de Benjamin nos aponta, no entanto, é o caminho de apropriação pelo fascismo italiano: a estetização da política esvazia o sentido artístico e, progressivamente, sufoca sua potencialidade. O fascismo agiu agressivamente sobre o cinema — mas este não deixaria de responder.
“O Neorrealismo foi uma resposta às limitações da indústria italiana de filmes durante e logo depois da Segunda Guerra Mundial. Seus filmes recorriam a argumentos episódicos e a um estilo semidocumental, com uso de locações e de atores amadores ao lado de profissionais, para retratar o duro cotidiano de uma Itália em reconstrução.”[2]
Conforme descreve o autor Ronald Bergan, a expressão cinematográfica do neorrealismo italiano fora um fôlego artístico em clara resposta aos anos de inibição e repressão da produção cultural. Para que o movimento fosse efetivo no sentido do cumprimento de tais ambições, todavia, fazia-se necessária a assimilação de um compromisso estético e narrativo, por meio do qual o comprometimento social das produções se revelaria. “Roma, Cidade Aberta”, 1945, de Roberto Rossellini, e “Ladrões de Bicicleta”, 1948, de Vittorio De Sica, cavaram seus lugares entre as mais significativas obras da história do cinema justamente por tomarem para si tal compromisso, ao lado de outras realizações dos próprios e de outros diretores, como Pier Paolo Pasolini e Giuseppe De Santis. As representações de poder cediam seus lugares ao povo italiano, em sua legitimidade e humanidade, desvelando seus sofrimentos, anseios e batalhas de modo a denunciar uma realidade na qual a reivindicação da dignidade era quase intrínseca à nacionalidade individual. A precariedade técnica e as atuações amadoras, embora fossem consequência de realizações órfãs de recursos financeiros, serviram fundamentalmente para o alcance da honestidade narrativa e exposição real desejadas.
Embora não seja possível considerar um fenômeno artístico mais ou menos importante do que o outro, a única razão para cercar as questões referentes ao neorrealismo italiano neste estudo é a compreensão das influências estéticas e formais exercidas por este sobre o nosso cinema novo.
“A agitação para impulsionar um movimento de cinema contribuiu para criar o espírito de corpo que caracterizaria o Cinema Novo, nome atribuído ao crítico Ely Azeredo numa das conversas de bar com o grupo. O movimento, que surgiu sem uma orientação precisa sobre influências ou um manifesto que expressasse suas iniciativas, tinha em vista principalmente um núcleo comum de interesses: a partir do cinema, desnudar a realidade mais dramática e profunda do Brasil; uma realidade que costumava ser embelezada e maquiada para entretenimento das elites. A estratégia do Cinema Novo era criar filmes baratos, explosivos, bárbaros, radicais, antinaturalistas e polêmicos.”[3]
Ainda que não houvesse manifestação ou registro formal de influência do neorrealismo italiano sobre esta experiência artística coletiva que, então, era construída, não há como negar a inspiração de utilização da narrativa audiovisual para a retratação de um contexto tão duro quanto irrefutável; enquanto, no país europeu, isto servira enquanto uma contracorrente de oposição às obstruções do Estado sobre a manifestação da realidade, no Brasil tratava-se do anseio por uma arte que fosse capaz de representar factualmente a trajetória do povo e da cultura locais, não apenas as elites que ocupavam — e ocupam — seus autos de poder e, consequentemente, de produção comunicativa.
Constituía-se, de fato, uma questão amplamente debatida e planejada: os anos finais da década de 1950 representavam aquilo que o professor e escritor Humberto Pereira da Silva, autor de “Glauber Rocha: Cinema, Estética e Revolução” define como uma “fase de ebulição cultural”. Conforme descrito no livro e narrado no documentário “Cinema Novo”[4], o período fora marcado não apenas pela histórica produção cinematográfica no espectro nacional, mas pelo clarão de um instante no qual a cultura era discutida intensamente dentro da sociedade. As principais figuras do movimento, Glauber Rocha (1939–81), Cacá Diegues (1940- ), Leon Hirszman (1937–87), Ruy Guerra (1931- ), Arnaldo Jabor (1940- ), Anselmo Duarte (1920–2009), Nelson Pereira dos Santos (1928–2018), Paulo César Saraceni (1932–2012), Joaquim Pedro de Andrade (1932–88), Roberto Santos (1928–87), Roberto Pires (1934–2001), Rogério Sganzerla (1946–2004) e Olney São Paulo (1936–78) não carregavam consigo apenas a ambição de “fazer cinema”; tratava-se de um grupo organizado coletivamente em direção ao “pensar cinematográfico”: discutindo diretrizes do movimento que então organizavam, pensando objetivos de caráter social e, evidentemente, as formas narrativas que poderiam ser utilizadas para atingi-los. Havia ali a arquitetura de um escopo no qual a sétima arte era debatida com relevância, sendo vislumbrada enquanto a única ferramenta através da qual se poderia alcançar uma transformação social, retratando o povo para dar voz a este e, assim, reforçá-lo no sentido da erradicação das desigualdades — a começar pelas culturais. A arte, afinal, talvez seja de fato a última alternativa para alterações efetivas de nossa realidade — tornando-a, paralelamente, ameaçadora. Aquela geração, na catarse do cinema novo, lutou para usá-la de tal forma.
“Se a questão do realismo foi central nu cinema de um Leon Hirszman ou de um Luiz Sérgio Person, a alegoria e a descontinuidade marcaram o cinema de Glauber, autor que inventou seu próprio cinema feio de instabilidades, tateios de câmera e falas solenes, com sua mise-en-scène composta de rituais observados por um olhar de filme documentário. Por diferentes caminhos, o cinema brasileiro trabalhou as tensões entre a ordem narrativa e uma rica plástica das imagens, fazendo “sentir a câmara” como era próprio a um estilo que questionava a transparência das imagens e o equilíbrio da decupagem clássica.”[5]
O comprometimento estético que marcara a coletividade do movimento era um vetor fundamental para a possibilidade do alcance de suas ambições: embora, individualmente, os artistas do grupo carregassem marcadamente seus estilos de realização, forma e estilo cinematográficos particulares, cada um deles representava uma metonímia do cinema novo. Suas estéticas subjetivas, destarte, integravam-se a um conjunto estilístico determinado.
Não à toa, os realizadores por algumas vezes uniam-se de maneira colaborativa: em “Maioria Absoluta”[6], projeto de Leon Hirszman, por exemplo, Nelson Pereira dos Santos foi o responsável pela montagem, enquanto Arnaldo Jabor serviu para a produção executiva e o som direto. As intenções de contestação da narrativa que até aquele momento era apresentada como real eram compartilhadas invariavelmente pelos artistas envolvidos na experiência, havendo distinção apenas no caminho formal escolhido por cada autor para cercá-la, de acordo com a adequação à sua narrativa. A atmosfera delirante das tramas de Glauber Rocha, “um ‘estado de transe’, um olhar febril”[7] ou os flertes documentais de Leon Hirszman, chocantemente díspares na forma, aliam-se em discurso.
“Compartilhando das expectativas que mobilizaram a militância de esquerda nos anos anteriores ao golpe militar, em especial a crença em um processo revolucionário de transformação do mundo, Hirszman começou a sua trajetória no Centro Popular de Cultura (CPC) do Rio de Janeiro, entre 1961 e 1964, quando atuou ao lado de nomes como Armando Costa, Augusto Boal, Cacá Diegues, Gianfrancesco Guarnieri e Vianinha. Do mesmo modo que vários cineastas e dramaturgos de sua geração, principalmente aqueles formados no pensamento nacionalista das décadas de 1950 e 1960, ele viveria a implantação da ditadura e as crises que passaram a atravessar o campo artístico, a exemplo das perseguições da censura ou do esvaziamento das leituras engajadas do povo no interior de peças e filmes.”[8]
A mobilização ideológica e sociocultural havia adquirido corpo e, aliada aos fomentos e incentivos públicos durante o governo de João Goulart — por meio do Centro Popular de Cultura, especialmente -, fora capaz de empenhas seus artistas na composição de um conjunto de obras notáveis. Em 1962, “O Pagador de Promessas”[9] venceu a Palma de Ouro do prestigiado Festival de Cannes, tornando-se então o único filme sul-americano a vencer o prêmio — honra que ainda preserva. “Deus e o Diabo na Terra do Sol”[10], dois anos passados, também fora indicado à premiação; seu diretor, Glauber Rocha, ainda viria a realizar “Terra em Transe”[11], outro marco do movimento. Adaptações de grandes obras nacionais, a exemplo de “Macunaíma”[12] e “Vidas Secas”[13], chegaram às telas num tom crítico ao contexto da época, enquanto “Cinco Vezes Favela”[14] reunia grandes nomes do movimento numa narrativa visceral acerca da miséria rotineira experimentada pelo trabalhador brasileiro.
Nota-se, portanto, que o cinema novo viveu a plenos pulmões enquanto marco cultural: além de tornar-se o maior movimento da história da produção cinematográfica brasileira, foi responsável por fincar a bandeira verde e amarela no escopo global da sétima arte. A utopia havia transbordado, conquanto parcialmente, até a realidade, sendo capaz de implantar ideias e projetos na cabeça de potenciais artistas e conduzi-los à prática, à busca por uma representatividade narrativa até então impraticável e, mesmo, inimaginável.
A história, porém, seria implacável com o cinema novo. Os processos históricos mantiveram-se fieis à lógica e, inevitavelmente, sepultaram o movimento, a exemplo de toda experiência que possa solidificar a transformação humana e apontar um trajeto — neste caso, pelo caminho da ação cultural — direcionado à possibilidade concreta de alcance da igualdade de oportunidades, por meio da barbárie. Assim, a esperança dos “patriarcas” do movimento — e de uma legião de admiradores e artistas aspirantes — jamais cumpriu-se: o Golpe Militar de 1º de abril de 1964 e, mais profundamente, o Ato Institucional-5, de 1968, interromperam brutalmente o projeto cinema-novista, dilacerando a projeção de um diálogo de mobilização com a classe trabalhadora e o esboçado horizonte no qual o cinema seria o instrumento a dar “voz e luz” a um Brasil silenciado — a este, então, restava um futuro de ainda mais silêncio e escuridão.
A mesma história, no entanto, nos elucida e recorda quanto àquele respiro esperançoso e tudo o que ele pôde alcançar na esfera artística, apenas por propor-se a, munido de determinação, “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”[15], fazer um cinema engajado, corajoso, crítico e socialmente consciente — e, a posteriori, mundialmente celebrado.
Na contemporaneidade, quando o advento das mídias digitais nos possibilita e encaminha a, novamente, debater e pensar o cinema dedicadamente e, embora não haja movimentação no sentido de uma proposta coletiva, surgem também obras dispostas a reivindicar para si a discussão da transitória atualidade brasileira incidindo em suas camadas mais hipodérmicas, tais quais “Aquarius”[16], “O Som ao Redor”[17], “Que Horas Ela Volta ?”[18], “Casa Grande”[19], “A Cidade Onde Envelheço”[20], “Doméstica”[21] e “Branco Sai, Preto Fica”[22]. Nossos tempos parecem suplicar por uma proposta de mobilização e transformação. Eis um contexto.
“É função do artista violentar — o artista é sempre a esquerda eterna, lógico ou anárquico — o artista só começa a se negar quando adere à ordem estabelecida, quando deixa de exercer seu poder crítico sobre o mundo, sobre o Estado, sobre o conformismo burguês, sobre o gosto fácil.”
- Glauber Rocha.[23]
Referências:
[1] BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica. 2.reimpr. Porto Alegre: Zouk, 2014.
[2] BERGAN, Ronald. Ismos: Para entender o cinema. São Paulo: Globo, 2010.
[3] SILVA, Humberto Pereira da. Glauber Rocha: Cinema, Estética e Revolução. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
[4] CINEMA NOVO, 2016, Brasil. Documentário. ROCHA, Erik.
[5] XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
[6] MAIORIA ABSOLUTA, Brasil, 1964. Curta-metragem. HIRSZMAN, Leon.
[7] SILVA, Humberto Pereira da. Glauber Rocha: Cinema, Estética e Revolução. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
[8] CARDENUTO, Reinaldo. O cinema político de Leon Hirszman (1976–1981): engajamento e resistência durante a ditadura militar [manuscrito]. São Paulo: Reinaldo Cardenuto, 2014.
[9] PAGADOR DE PROMESSAS, O, Brasil, 1962. Drama. DUARTE, Anselmo.
[10] DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, Brasil, 1964. Drama. ROCHA, Glauber.
[11] TERRA EM TRANSE, Brasil, 1967. Drama. ROCHA, Glauber.
[12] MACUNAÍMA, Brasil, 1969. Comédia. ANDRADE, Joaquim Pedro de.
[13] VIDAS SECAS, Brasil, 1962. Drama. SANTOS, Nelson Pereira dos.
[14] CINCO VEZES FAVELA, Brasil, 1962. Drama. ANDRADE, Joaquim Pedro de. BORGES, Miguel. DIEGUES, Carlos. FARIAS, Marcos. HIRSZMAN, Leon.
[15] Frase do cineasta Paulo César Saraceni (1932–2012), equivocadamente atribuída a Glauber Rocha.
[16] AQUARIUS, Brasil, 2016. Drama. MENDONÇA FILHO, Kléber.
[17] SOM AO REDOR, O, Brasil, 2012. Drama, suspense. MENDONÇA FILHO, Kléber.
[18] QUE HORAS ELA VOLTA?, Brasil, 2015. Drama. MUYLAERT, Anna.
[19] CASA GRANDE, Brasil, 2015. Drama. BARBOSA, Felipe.
[20] CIDADE ONDE ENVELHEÇO, A, Brasil, 2016. Drama. ROCHA, Marília.
[21] DOMÉSTICA, Brasil, 2012. Documentário. MASCARO, Gabriel.
[22] BRANCO SAI, PRETO FICA, Brasil, 2014. Documentário. QUEIRÓS, Adirley.
[23] ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. 1985. Citação extraída de: SILVA, Humberto Pereira da. Glauber Rocha: Cinema, Estética e Revolução. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
15/05/2018.