Como o Facebook decide o que você lê

Leonardo Lopes
Retroativo
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6 min readFeb 27, 2018

Desvelamos os métodos do EdgeRank, o mecanismo que seleciona o que chega à sua timeline.

(imagem: Portal do Bitcoin)

Recai sobre o século XXI o anseio histórico de um espaço de manifestação democrático, popular e livre. Criada na década de 1960 e cuja caminhada de popularização se deu a partir de meados de 1990, a internet alçou o alcance mundial no novo milênio e, desde então, foi comercializada e definida como, enfim, a oferta plena deste ambiente[1]. A primeira rede social, “Classmates”, no ano de 1995, era embrionária; a consolidação dos fóruns de discussão online no início dos anos 2000, no entanto, é um passo factualmente fundamental para o desenvolvimento de tal noção — os usuários tiveram pela primeira vez acesso à hoje tão comum experiência de “receptor-produtor”, manifestando suas opiniões numa teia de interação. Desde então, a fundamentação de grandes servidores para a criação gratuita de blogs — “Blogspot” e “Wordpress” os principais -, e redes sociais como o extinto “Orkut” e os ainda intensamente presentes “Twitter” e Facebook responsabilizaram-se pela construção definitiva desta percepção: a internet não estava aqui apenas para revolucionar enquanto meio comunicacional, mas para conceber a ideia de todo espectador — no sentido vital, não televisivo ou cinematográfico -, receptor ou consumidor como um potencial criador, comunicador ou produtor[2]. Enfim, um território livre. Distante de qualquer utopia anárquica, porém, deve-se ponderar: até onde vai a liberdade do universo virtual?

Ainda que promovida sob o discurso da absoluta liberdade criativa, a realidade da internet é organizada de acordo com um grupo de corporações dominantes — o “Google” e o Facebook são duas delas — que sob nenhuma hipótese iriam manter-se ativas sem o estabelecimento de determinadas regulamentações e convenções administrativas. Apegando-se ao Facebook, talvez o protagonista desta conjuntura na qual se consome enquanto se produz — e vice-versa -, faz-se essencial a compreensão de que mesmo o conteúdo inserido em sua página pessoal não será definitiva e invariavelmente seu: ele é, afinal, parte de uma rede proprietária, a qual disponibiliza espaço — numa espécie de “aluguel voluntário” — que possibilita ao usuário desenvolver e publicar conteúdo de sua preferência para seu grupo de convívio; o proprietário, destarte, não abdicará da supervisão e manutenção do território que ainda lhe pertence, mas diante da imensa quantidade de indivíduos utilizando-a, precisará de uma vigilância técnica e automatizada — um algoritmo, carinhosamente apelidado “EdgeRank”. Eis, então, a prova definitiva da irremediável colaboração da rede social criada por Mark Zuckerberg para a concepção da impressão de plena liberdade virtual: a maioria de seus cadastrados sequer conhece a existência do EdgeRank.

Ø Mas, afinal, o que é o EdgeRank?

A fórmula simplificada do algoritmo.

“Afinidade”, “Relevância” e “Tempo de publicação” são os três fatores centralmente utilizados pelo instrumento do Facebook para a organização do conteúdo que chegará às timelines de seus usuários. Sua interação com as atividades de outros indivíduos de sua lista de amizades — de curtidas em fotos a mensagens trocadas — determinará a enumeração da afinidade; a análise de seus interesses dentro da rede — aquilo que você passa mais tempo acessando, seja considerando fotos ou vídeos ou esportes ou política — será fator central para calcular a possibilidade de relevância; e, por fim, quanto mais recentes forem as publicações, maiores serão as chances de elas aparecerem em sua página inicial. Além disso, há fatores secundários, mas indispensáveis, dentre eles a consideração dos interesses — representados habitualmente por curtidas — dos amigos com os quais você mais interage servindo ao direcionamento publicitário.

A convergência destas questões será codificada de modo a formalizar um algoritmo da composição daquilo que serão nossos feeds de notícias; ou seja: nada estará lá por acaso.

É possível exercitar a prática deste cálculo em nossas atividades diárias na rede ao compararmos, por exemplo, a intensidade de repercussão que provocará a publicação de uma fotografia e de um texto, por exemplo, situação na qual a imagem, por requisitar uma inflexão menor para a interação, será priorizada e consequentemente mais vista e mais “interagida”; ou ao observarmos que determinados conteúdos políticos atingirão sempre a interação de um grupo específico de indivíduos — cuja atividade na rede provavelmente envolve mais tempo direcionado às páginas e perfis de política.

Ø E quais são as consequências de sua ação?

Seria absolutamente ficcional e impraticável atribuir ao EdgeRank o título de “prova da vilania do Facebook”. Faz-se necessário entender, a priori, que não há más intenções na prática da corporação digital; trata-se, porém, do cumprimento de uma objetivação bastante elementar e comum dentro das ações atuais do ciberespaço: a tentativa de reprodução de uma realidade ideal.

A ideia do virtual como um ambiente de habitação e manifestação livre que não pôde ser alcançado na prática da realidade carrega consigo a idealização deste cenário enquanto portador de outro caráter também inalcançável na “vida real”: a possibilidade de convivermos somente com quem nos agrada e com quem concordamos, em todos os aspectos. Considerando a oferta de informação enquanto calculadamente servente às nossas preferências, progressivamente chegará a nós apenas o conteúdo produzido por portais e páginas que previamente nos agradam, e compartilhado por pessoas cujas opiniões, preferências e convenções já conhecemos.

A mais severa problemática concebida por esta prática é a do silenciamento das vozes dissonantes de um modo velado e perigoso, colocando-nos, enquanto usuários e cidadãos consumidores de informação, numa bolha de informação que, embora nos agrade, é redundante e falha. Redundante no sentido de reproduzir incessantemente discursos do mesmo caráter; falha por servir à “desinformação reconfortante”.

Tendo em vista a ponderação do biosmidiático[3] enquanto incontestavelmente presente no contemporâneo, ou seja, a ação do virtual tornando-se relevante nas relações sociais também exteriores a este, a proporção deste “efeito bolha” tornará os usuários do Facebook cidadãos intolerantes, antidemocráticos, automatizados e mal informados, ainda que com um sorriso no rosto. Nas palavras de Jean Baudrillard:

“A virtualidade aproxima-se da felicidade somente por eliminar sub-repticiamente a referência às coisas. Dá tudo, mas sutilmente. Ao mesmo tempo, tudo esconde. O sujeito realiza-se perfeitamente aí, mas quando está perfeitamente realizado, torna-se, de modo automático, objeto; instala-se o pânico.”[4]

Eis uma definição irremediavelmente precisa — e profética — do filósofo e sociólogo francês que destrincha o “ser algarítmico”. O palco bem definido e coerente de nossas timelines nos oferece a satisfação de estarmos em contato com as temáticas, figuras e grupos de nossa preferência, bem como a realização de podermos produzir e compartilhar o conteúdo que desejarmos sem sermos incomodados; paralelamente, ao nos confortar neste ambiente, vorazmente nos descola e desacostuma do mundo real, onde o convívio social determina a interação entre tipos distintos de pessoas, independentemente de quais sejam as preferências ideológicas, morais e culturais da mesma — e que, em decorrência disto, poderão vir lamentavelmente a nos soar intoleráveis. O faz, ainda, ao estimular a percepção desta realidade espetacularizada[5] da rede como factual, a qual subitamente nos envolverá num simulacro[6] no qual a faceta, a dimensão dos acontecimentos e fatos que nos atinge por invariavelmente nos agradar é aquela que será vista como absoluta e incontestável, independentemente de sua veracidade.

“Hoje, não pensamos o virtual; somos pensados pelo virtual. Essa transparência inapreensível, que nos separa definitivamente do real, nos é tão ininteligível quanto pode ser para a mosca o vidro contra o qual se bate sem compreender o que a separa do mundo exterior.”[7]

A partir do momento em que toda a informação que nos alcança passa por uma “predefinição ideológica”, o embrião de toda nova informação que produzirmos incorrigivelmente tornar-se-á um mero reprodutor daquilo que já nos é conhecido. Ainda por Jean Baudrillard, um alerta: o envolvimento tão intenso e profundo numa realidade que nos é agradavelmente projetada nos transformará veloz e imperceptivelmente em projeções.

Originalmente publicado em 15 de maio de 2017.

Agradecimentos especiais ao professor Diogo Andrade Bornhausen.

Referências:

[1] MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais. 2. A Esfera Pública e a Internet.

[2] MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais. 2. A cultura digital nas relações cotidianas: Lee Siegel.

[3] CABRAL, Muniz Sodré de Araújo. Biosmidiático.

[4] BAUDRILLARD, Jean. Tela Total. 22. Tela Total.

[5] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo.

[6] MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais. 3. O simulacro do real antes do virtual.

[7] BAUDRILLARD, Jean. Tela Total. 10. A dupla exterminação.

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Leonardo Lopes
Retroativo

Jornalista graduado pela FAAP/SP, pós-graduando em Sociopsicologia pela FESP/SP.