Palermo Shooting e o sacrifício do real
Wim Wenders discute a fotografia em filme de 2008.
Ao encontrar, coincidentemente, Flavia (Giovanna Mezzogiorno) num canto qualquer da cidade italiana de Palermo, Finn (Campino) se vê na posição de modelo para um retrato que a moça está desenhando, e assim se mantém. Quando ele, fotógrafo, tenta retratá-la com sua câmera, no entanto, esta imediatamente se recusa; “é diferente”, afirma a artista.
Este impasse, apresentado breve e inteligentemente em Palermo Shooting, cerca historicamente a técnica fotográfica. Teóricos como Vilém Flusser, em “Filosofia da Caixa Preta”, e André Rouillé, em “A fotografia — Entre documento e arte contemporânea”, tentam cercá-la sob distintas perspectivas — um aponta para a intervenção do aparelho, produtor técnico de símbolos extraídos da natureza, cuja forma jamais poderemos compreender integralmente, enquanto principal responsável por tal desentendimento; o outro analisa a falência da fotografia-documento, representação a princípio fiel à imagem verdadeira. Embora uma pintura, em seu mais evidente aspecto visual, seja fugaz à realidade, o depósito de credibilidade em sua representação ocorria com facilidade notavelmente maior. O quão fidedigna ao real poderá ser considerada uma foto, seja ela em desgastada sépia ou absolutamente nítida?
Não há nada que possa substituí-la, porém, enquanto órgão vital da memória. E esta, a memória, é nosso único instrumento efetivo na constante tentativa — obviamente fadada ao fracasso, mas nem por isso digna de desistência — de evitar a morte; preservar recordações é entrincheirar-se na admiração e vibração da vida e de tudo aquilo que nela possa ser realizado, de um passado construído pelo aproveitamento daquilo que nomeamos existência. Não à toa, conforme factualmente exposto no documentário “Em Busca da Memória”, o processo neuronal humano de criação e manutenção da memória é fundamentalmente estimulado por elementos imagéticos. A fotografia o faz com triunfal êxito.
Contraditoriamente, a composição de uma representação fotográfica trata-se essencialmente de um homicídio. Quando se cria uma imagem, mata-se a realidade da qual ela se concebeu. É curioso este apontamento na narrativa de Palermo Shooting: há uma desconstrução da figura destemida e “cheia de si” — nas palavras da própria Morte (Dennis Hooper) -, cujo trabalho celebra a vida, a humanidade e a natureza, do fotógrafo, justamente estimulada pelo desvelamento de sua relação estreita com a morte. O encontro de Finn com a possibilidade do fatal o choca e traumatiza, mas nada havia feito além de expô-lo à matéria prima de seu ofício, à instrumentalização bélica de sua câmera.
E Wim Wenders, ao homenagear Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman nos créditos finais da obra, certamente o fez de maneira consciente: em “Blow-Up”, a natureza do fotógrafo fora assimilada brilhantemente; em “O Sétimo Selo”, há o raro encontro dialógico com a morte. Palermo Shooting carrega um pouco de ambos. Uma pena que os dois mestres tenham fatalmente se encontrado no mesmo dia, durante a produção deste longa-metragem. Mais um capricho quase cinematográfico — ou fotográfico? — da morte.
Originalmente publicado em 15 de maio de 2017.
Agradecimentos especiais aos professores Ary Diesendruck e Ronaldo Entler.