Prazer sob demanda

Leonardo Lopes
Retroativo
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9 min readJun 4, 2019

As transformações do sexo — como o conhecemos — na era do “on demand”.

Qualquer acesso ao maior e mais popular endereço virtual dedicado à pornografia, o PornHub, nos apresenta a uma opção sugestiva: o “Perfil de Gostos”. Nela, o site nos faz um convite, aqui reproduzido sem alterações: “Diga-nos o que gosta, dar-lhe-emos o que quer.” A seguir, são expostas impressionantes 113 categorias para que o usuário selecione, em todas elas, uma entre três alternativas: “gosto”, “tanto faz” ou “não gosto”. As ofertas vão de “180º em virtual reality” até “webcam”, passando por “cuckold” (o equivalente a “traição”), “gozo feminino”, “na rua” e “sexo brutal”. Uma vez preenchida a tabela, o site exibe um leque de vídeos que atende ao resultado deste profundo diagnóstico — revelando, ao pesquisador, informações mais íntimas sobre ele mesmo do que uma sessão terapêutica seria capaz de fazer. Tudo isso sem qualquer necessidade de login ou assinatura. A oferta digital atinge um patamar inédito.

Outros populares acervos de pornografia, como o XVideos e o Red Tube, ainda não atingiram tamanha sofisticação em seus mecanismos de pesquisa. Contudo, é possível ficar impressionado com a variedade de categorias disponíveis: O Red Tube nos convida a especificar a duração e a qualidade de imagem buscadas, enquanto o XVideos permite que, uma vez logado, o usuário salve seus vídeos favoritos para rever sempre que desejar.

Em “Todo Mundo Mente”, publicado no ano passado, o autor Seth Stephens-Davidowitz realiza uma radiografia dos sistemas de busca da internet e os comportamentos por eles identificados. Segundo o livro, “Dentre as cem buscas mais comuns no PornHub, um dos sites pornô mais populares, dezesseis procuram por vídeos de temática incestuosa. Aviso prudente — serei um tanto explícito: incluíam “irmão e irmã”, “madrasta fodendo enteado”, “mãe e filho”, “mãe fode filho” e “irmão e irmã de verdade”. A pluralidade de buscas incestuosas é por cenas envolvendo mães e filhos. E as mulheres? Nove das cem buscas mais comuns feitas por mulheres são por vídeo com temática incestuosa e contendo fantasias semelhantes — mas com os gêneros dos pais ou dos filhos envolvidos normalmente invertidos. Assim, a pluralidade de buscas incestuosas feitas por mulheres é por cenas com pais e filhas.” O autor conclui: “Na era pré-digital, as pessoas escondiam seus pensamentos embaraçosos das outras pessoas. Na digital, ainda os escondem dos outros, mas não da internet ou em sites específicos, como Google e PornHub, que protegem seu anonimato.”

Dados brasileiros no relatório de 2018 do PornHub.

No final do ano passado, o próprio Porn Hub publicou um relatório revelador. Durante os doze meses então encerrados, seu conteúdo de mais de 15 milhões de horas foi acessado 33 bilhões de vezes. 92 milhões de acessos diários. O Brasil é o décimo segundo país que mais usa o site no mundo (consulte imagem acima). Cada usuário local passa, em média, nove minutos e 15 segundos no portal por acesso. A categoria mais popular por aqui é a “lésbica”; o termo que mais cresceu entre os pesquisados foi “famosas”; os vídeos de conteúdo transgênero são 57% mais vistos em solo nacional do que em qualquer outro lugar do mundo. Correspondem a desejos característicos do imaginário popular brasileiro: os fetiches reprimidos, que são “proibidos”, escusos ou inalcançáveis — as transas com uma famosa, com duas ou mais mulheres, com um transgênero. No que diz respeito ao mundo, a lógica se assemelha: a personagem “Arlequina” foi a mais buscada em 2018, desvelando o desejo pelo que sequer existe para além da ficção. O filme infantil “Os Incríveis”, que teve uma continuação lançada no ano, cresceu 983% em buscas. A cultura, mesmo nas associações mais absurdas, incide sobre o território do privado, fomenta imaginários e constrói estímulos, sem controlar a qual campo eles servirão. Por isso, cria-se e recria-se enquanto mais cultura, para produzir aquilo que os alimente — o conteúdo sexual. No artigo “A pornografia da morte”, Geoffrey Gorer observa: “(…) habitualmente, os períodos de maior produção pornográfica são, também, os de mais desenfreado puritanismo. Em contraste com a obscenidade, que é definida principalmente pelo contexto, o puritanismo é definido pela subjetividade; um aspecto da experiência humana é tratado como inerentemente vergonhoso ou abominável, de modo que nunca seja discutido ou referido abertamente, e sua experiência tende a ser clandestina e acompanhada de sentimentos de culpa e indignidade. O aspecto não mencionável da experiência, então, tende a se tornar um combustível para muitas fantasias privadas, mais ou menos realistas, carregadas de culpa prazerosa ou prazer culpado. Para aqueles cujo poder de fantasiar é fraco ou cuja demanda é insaciável, existe o mercado de fantasias ‘ilustradas’ da pornografia.”

“A pornografia cumpre com os requisitos das drogas viciantes: oferece uma recompensa imediata — masturbação e orgasmo — e pode ser repetida quantas vezes se queira, de forma fácil, privada e gratuita. Se começa vendo cenas light, inicialmente suficientes para o estímulo e a liberação de dopamina. Com o tempo, para que se produza a excitação e se libere este neurotransmissor, são necessárias imagens mais impactantes, estímulos maiores, cenas mais explícitas.”, explica a reportagem “Adictos a la pornografia”, de Inmaculada Ruíz, publicada no último mês de Março pelo espanhol El País. A Espanha é o 13º país que mais acessa o Porn Hub no mundo, uma posição atrás de nós. Especialistas locais manifestam preocupação com casos de pessoas que têm substituído o sexo real pelo prazer de origem pornográfica.

Este processo se reflete numa indústria cada vez mais potente — aquela que produz e vende fantasias. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han pondera, em “Agonia do Eros”, que “A sexualidade não se vê ameaçada por aquela “razão pura” que evita o sexo, antiprazerosamente, como algo sujo, mas pela pornografia: a pornografia não é o sexo em espaço virtual. Mesmo o sexo real se transforma hoje em pornografia.” Um bem-humorado “manual de regras da internet” diz, por sua vez, na regra 34: “Se você pode imaginar algo, existe um pornô para isso.” Sexo. Mais presente, mais ausente. Compete acirradamente com sua própria e exacerbada representação — por indivíduos cada vez mais acostumados à satisfação imediata de suas demandas.

Vídeo produzido pela The Atlantic acompanha reportagem homônima.

Em dezembro de 2018, uma ampla reportagem da revista The Atlantic intitulada “Why are young people having so little sex?” (veja o vídeo acima) diagnosticou: “Nossa cultura nunca foi tão tolerante com o sexo. Mesmo assim, adolescentes e jovens americanos estão fazendo menos sexo.” Nos números levantados pelo veículo, atestou-se que, de 1991 a 2017, a taxa de estudantes do Ensino Médio que haviam iniciado suas vidas sexuais caíra de 54 para 40%. No mesmo período, a média anual de transas de um adulto estadunidense foi reduzida de 62 para 54 vezes. Os jovens que afirmaram ter encontros de caráter romântico com frequência formavam 34% do total; em 2014, passaram a 15%.

No Brasil, o estudo “Mosaico 2.0”, dirigido por Carmita Abdo dentro do Programa de Estudos em Sexualidade, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, entrevistou 3.000 cidadãos de sete grandes capitais estaduais do país para traçar um “perfil sexual” da população. Seus números: homens fazem sexo três vezes por semana; mulheres, duas. Homens julgam que o ideal eram oito vezes; mulheres, três. Os brasileiros têm desejos ou sonhos sexuais numa média semanal de seis vezes. 95% deles consideram o sexo algo “muito importante” em suas vidas. Demandas maiores do que a oferta que revela se concretizar. A partir das buscas no Google, informa “Todo Mundo Mente”, “Há dezesseis mais reclamações sobre um(a) parceiro(a) casado que não quer fazer sexo do que de um que não está disposto a conversar. Existem cinco vezes e meia mais reclamações sobre um parceiro não casado que não quer fazer sexo do que um que não responda mensagens.”.

Para concretizar-se com o sexo, afinal, a satisfação demanda, necessariamente, um outro. Assim, parece requerer demais. Autora de “iGen”, a psicóloga americana Jean M. Twenge considera que a falta de sexo entre os jovens é consequência direta do comportamento de uma geração que repele cada vez mais a presença física, a interação e a necessidade do deslocamento. Para este grupo, o encontro é cada vez mais raro. De acordo com os levantamentos da estudiosa, “Estudantes do Ensino Médio em 2016 (na comparação com a década de 1980) passam quatro horas a menos por semana socializando com amigos e três horas a menos por semana em festas — portanto, sete horas a menos por semana de interações presenciais. Isto significa que os membros da geração “I” estão vendo seus amigos pessoalmente uma hora diária a menos do que a geração “X” e os millenials. Uma hora diária a menos passada com amigos é uma hora diária a menos desenvolvendo habilidades sociais, negociando relacionamentos e lidando com emoções. Alguns pais podem acreditar que é uma hora a mais reservada para atividades produtivas, mas como vimos nos capítulos anteriores, este tempo não foi substituído por estudos; ele foi substituído por tempo de tela.” A maioria dos jovens entrevistados por Twenge não demonstra o hábito de sair com amigos, trocar experiências presencialmente ou passar o tempo com outras pessoas. Pelo contrário: eles aparentam receio com esta possibilidade, preferindo aberta e declaradamente a familiaridade de suas telas e lares. Decidindo pela solidão.

Nota-se que, quando não foi acessada, a pornografia sequer deu lugar ao sexo ou a algo que com ele se relacione. Durante o Superbowl, maior evento esportivo dos Estados Unidos, a presença de norte-americanos no Porn Hub caiu 26%. Em outro continente, enquanto a final da Copa do Mundo ocorria, nos países que a disputaram, França e Croácia, o uso do site foi reduzido em 55 e 66%, respectivamente. O cidadão não quer que o sexo interrompa sua final de Copa do Mundo, seu Superbowl, sua série favorita, sua checada no Instagram ou qualquer outro de seus hábitos particulares. A pornografia ainda estará lá quando se queira, de acordo com desejo e ocasião pessoais e intransferíveis. Qualquer atividade que dependa do outro pode — e muito provavelmente irá — interferir em algum destes momentos privados.

Aplicativos de encontro, como o Tinder: um caminho para as relações afetivas e sexuais.

O encontro não deixa de existir, claro. Recém-chegado ao Brasil, o serviço de relacionamentos “Facebook Dating” exibe, para cada usuário, uma série de perfis cujos interesses se aproximam do seu — com base nas informações registradas pela rede social da qual se origina. O princípio da compatibilidade de interesses é o mesmo de aplicativos como o “Hinge”, o “eHarmony”, o “Plenty on Fish” e outros entre os quinze instrumentos do tipo disponíveis para dispositivos móveis no país — sendo o “Tinder”, pautado pela localização, o mais conhecido. Mesmo quando se opta por romper os espaços privados e partir para o encontro presencial, portanto, o indivíduo requer que o processo seja o menos traumático possível — ou seja: que não haja sequer a possibilidade de uma interação negativa ou frustrante. O caminho de conhecimento e aproximação com o outro, antes sediado justamente no encontro e construído pelo diálogo, ganha um atalho. Uma antecipação que automatiza o processo e atende às demandas imediatas dos usuários envolvidos. Poupa tempo e contato antecedente aos objetivos almejados, numa facilitação do percurso.

Habituado a receber comida, medicamentos, entretenimento, educação e quaisquer outros serviços quando e onde deseja, a um toque de distância, o público deste tempo sofre o desencaixe que lhe atinge quando executa qualquer atividade que envolva outro anseio além do próprio — o que não poupa nem a mais prazerosa delas. A vida conduzida pelo on demand, onde recebemos aquilo que desejamos, quando desejamos, sem precisar entrar em contato com outras pessoas para isso, nos cerca cada vez mais por nós mesmos, nossas ambições, desejos, hábitos e o que mais possa haver de único, exclusivo e intransferível. “Homens fazem o mesmo número de buscas procurando por maneiras de realizar sexo oral em si mesmos quanto de como fazer uma mulher atingir o orgasmo.”, informa Seth Stephens-Davidowitz em “Todo Mundo Mente”. Tendo as buscas digitais como um fidedigno e revelador índice de sintomas sociais contemporâneos, é difícil imaginar um que desvele mais do que este sobre a nossa “nova versão”.

Agradecimentos ao professor João Guedes.

04/06/2019.

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Leonardo Lopes
Retroativo

Jornalista graduado pela FAAP/SP, pós-graduando em Sociopsicologia pela FESP/SP.