A cor do vulto

Leonardo Lopes
Retroativo
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3 min readDec 21, 2018

“Tinta Bruta”, de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon. Em cartaz nos cinemas.

Pedro (Shico Menegat) percorre a cidade, sempre sob os olhares. Olhares das sombras, nas janelas porto-alegrenses. Permanentemente observado. “Tem gente demais em volta, isso sempre atrapalha”, diz, certa feita, a avó. Quando é agredido na rua, as fendas fecham e os semblantes se ocultam. A indiferença responde.

Corpos ocupam os mesmos espaços. Esbarram-se, mas jamais se percebem. São marcas contemporâneas desta vida nas cidades. É por isso que almejamos, frequentemente, o “outro lugar”. Luíza (Guega Pacheco) muda de cidade, estado e região para um novo emprego. Leo (Bruno Fernandes) quer trocar de país e continente por uma bolsa de estudos. Por muitas outras vezes, do nada para o lugar nenhum — quando sequer sabemos o que almejar. Prosseguimos, contudo, almejando. Tomados pela aflição, pela ansiedade do outro lugar. Não um “desconforto produtivo”, quando buscamos o avanço, à luz de nossos objetivos e sonhos. Apenas o desencaixe. A angústia, duradoura companhia, onde quer que estejamos. Seja qual for a cidade, emprego, ocupação ou relação. Todos efêmeros, transitáveis. Em espaços populosos, mas inabitados. Territórios que nos desterritorializam. Palcos do desencaixe.

Multidões compostas por solitários. Semblante coletivo do nosso tempo. Mesmo no exercício do afeto estamos sujeitos a suas formas meramente consumíveis — a exposição do corpo, a relação virtual mediante remuneração — ou à fatal descarga das frustrações passadas. Leo precisa deixar o protagonista. Arrepende-se de, noutra oportunidade e com outra pessoa, não tê-lo feito. Ainda que ame e seja amado, precisa ir. Os riscos o apartam. E o sentimento do outro, afinal, nunca nos pertence.

Pedro ouve a própria, e trágica, história. Só ele e nós sabemos do que se trata. Ele prefere não intervir, apenas ouvir. Somente ali se permite sentir pelo outro. Distante e introspectivo no campo do real, exercita a pura e visceral exposição na esfera digital. Ainda que soe contraditório, não é. Seu ofício nos recorda da pornificação do trabalho, conceito cunhado por Paul B. Preciado em “Testo Junkie”, onde a excitação humana serve às forças materiais, à capitalização. Pedro precisa fazer um vídeo para ganhar dinheiro, mesmo que não sinta tesão. Sua performance, porém, depende do tesão. É sua matéria-prima. O afeto, o desejo e a excitação, manifestações essenciais de nossa subjetividade, logo se sujeitam a uma oferta de serviço, a um personagem — o Garoto Neon — que se presta ao desejo de outros prováveis solitários — talvez mais do que o próprio. Ainda assim, é só o que ele tem. Ele e os outros.

No estreito do quarto, no alto do apartamento, com as luzes apagadas, Pedro se oculta. Como todos os outros habitantes da cidade. Na penumbra, ele também é vulto. Ilustrado pelo neon, brilha no escuro (literalmente). Abdica, então, de ser mais uma silhueta existente, mas ausente. Oculta entre tantas.

No desfecho, encontra-se com a terra. Deita sobre ela. A cidade nos afastou da terra, ainda que dela tenha se formado. Nela se forme. Levanta-se e, enfim, dança — “eu não danço”, outrora havia dito. Movimenta as cores para que, assim, possa se libertar. Para onde?

Para não deixar passar: ouça a trilha sonora do filme. Está sensacional.

21/12/2018.

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Leonardo Lopes
Retroativo

Jornalista graduado pela FAAP/SP, pós-graduando em Sociopsicologia pela FESP/SP.