Prenúncios de um épico

Leonardo Lopes
Retroativo
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4 min readJan 18, 2019

“Vidro”, de M.Night Shyamalan. Em cartaz nos cinemas.

Manifestar a devoção a uma arte é um desafio doloroso. Diante do que sinto pelo cinema, por exemplo, e da impossibilidade de eu mesmo realizar um filme, foi na escrita que encontrei o espaço para externar este apreço — e, ainda, apenas nela. Manoj Nelliattu Shyamalan, ou apenas M.Night Shyamalan, é um devoto da arte. Acima de tudo, provavelmente. Um confesso apaixonado pelo cinema. Em Vidro, ele pôde provar, na mais legítima e almejada forma, sua devoção.

Numa entrevista ao The Telegraph, em Agosto de 2010, o cineasta fala sobre Steven Spielberg: “Ele estava fazendo filmes exatamente quando eu estava na idade certa. Eles me acertavam em cheio — E.T., Os Caçadores da Arca Perdida, Poltergeist. Ele parecia trazer uma sensibilidade que me afetava, o ponto de vista da criança congelada no tempo.” O que faz o cinema de Spielberg captar e formar tantos cinéfilos é, precisamente, o despertar de epifanias e catarses naquela que Shyamalan definiu como a “idade certa”. Não que represente, especificamente, uma idade: trata-se de um momento. Seja qual for o período em que mais estejamos propensos a deixar que a arte nos conduza para além de nossa realidade. Não é difícil entender porque este é um cinema que influencia Shyamalan: por este deslumbramento nascido da narrativa, o realizador conserva mais do que uma admiração: firma um compromisso. Aquilo que, em maior ou menor grau, já nos era apresentado em “O Sexto Sentido” (1999), “Corpo Fechado” (2000) e “A Vila” (2004), por exemplo, toma para si o significado de cada movimento em Vidro, que recapitula e estimula, na relação do Mr.Glass de Samuel L.Jackson com as histórias em quadrinhos, a de seu criador com aquelas que se projetam na tela grande.

Fielmente acompanhado pela cor roxa desde “Corpo Fechado”, Mr.Glass nutre, de fato, uma obsessão pelos contos épicos que as páginas de quadrinhos sempre o contaram, conforme identificada pela Dra.Ellie (Sarah Paulson). Diante da ficção heroica, afinal, o fanatismo e a obsessão são atestados de, conforme o próprio se descreve, um especialista. Deste campo, a racionalidade se abstrai, e a vibração abraça, inocentemente, a admiração. Esta noção foi abdicada pelo recente fenômeno dos super-heróis, perdidos no desejo de criar uma própria, regrada e “realista” mitologia — ou universo. Plenamente ciente do poder da narrativa, contudo, Shyamalan opta pelo caminho que deixaria seu personagem orgulhoso — e nos conduz à catarse. A assumpção do sobrenatural, efusivamente estimulada por Mr.Glass, é dirigida pelo sentimento em Vidro. Movido pelas palavras do rival, o Vigilante, David Dunn (Bruce Willis, num necessário regresso à relevância), rompe a porta de metal e, enfim, reencontra seu “traje”. Temos um momento definitivo da narrativa heroica. No enquadramento contemplativo e nos tons da trilha sonora — um grande trabalho de West Dylan Thordson -, encaramos uma legítima história de origem, causadora do brilhar nos olhos e da ansiedade pelo ato seguinte — a mesma que afeta seu filho ao observar um registro das câmeras de segurança locais. Como, nas duas horas e pouco mais da projeção, tantos outros são.

A clínica que enclausura os heróis deseja desarmá-los — ou “dissecá-los”, conforme bem observado por Kevin (James McAvoy) — pela substituição da crença pela racionalidade. A nós, porém, ela se faz inofensiva: estávamos previamente encantados pelo ímpeto do Vigilante — a tornar-se cartilha para a construção de um personagem herói — , pela multiplicidade de Kevin Wendell Crumb, Patricia, Hedwig, Dennis ou a Fera (e tantos outros, numa performance absurda de McAvoy, bastante superior àquela apresentada há dois anos em “Fragmentado”) e pela magistral inteligência de Mr.Glass, o arquiteto desta história. Tanto quanto aqueles que mais afetivamente os cercam, Joseph (Spencer Treat Clark), Casey (Anya Taylor-Joy) e Mrs.Price (Charlayne Woodard). Não à toa, recorrem às narrativas de heróis e vilões em quadrinhos para assimilar aquilo que estavam prestes a viver, prenunciando os próximos capítulos de suas próprias existências — mal sabiam que estavam prestes a superá-las.

Sobre os atos seguintes, aliás, é que esta obra se engrandece. “Neste momento, um balão com pontos de interrogação apareceria sobre sua cabeça.”, diz Mr.Glass, antecipando a ação de seu “pupilo”, a Fera. Como no folhear das páginas de uma história, sempre movimentadas pela expectativa em torno do conflito posterior. As primeiras palavras do instigante personagem não se fazem presentes até o completar da primeira hora do longa — elas servem, pois, ao prenúncio: o da fuga, o do vilão, o do confronto final. Os fatais, carregados do peso de assustadora sensibilidade — e, em meio a uma cultura marvélica de personagens que são mantidos vivos por razões comerciais, qual outro filme de herói poderia nos encaminhar às lágrimas? Somente um verdadeiro épico.

18/01/2019.

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Leonardo Lopes
Retroativo

Jornalista graduado pela FAAP/SP, pós-graduando em Sociopsicologia pela FESP/SP.