Camila Silva
Revista 2021/1
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8 min readJun 24, 2021

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Proporção de imigrantes contaminados no RS é quatro vezes maior do que a de infectados

Ao todo, 42% dos estrangeiros ficaram doentes e, sem contar estas pessoas, 9,4% da população do Estado contraíram coronavírus

Camila Silva

Foi vendendo produtos de limpeza de porta em porta nas ruas de São Leopoldo, no Vale do Sinos, que a venezuelana Mariandi de Los Ángeles Larez Ramos, 22 anos, contraiu o coronavírus. A jovem faz parte do grupo de 21.149 estrangeiros, até maio deste ano, que contraíram a covid-19 no Rio Grande do Sul. Os números mostram um dado alarmante e que pode levantar uma questão sobre políticas públicas direcionadas a estas pessoas.

Ao todo, 42% dos imigrantes contraíram o coronavírus no Estado. Em meio à discussão entre autoridades e especialistas, além da busca por respostas sobre o alto índice de contaminação, as estatísticas surpreendem se for comparada a proporção de estrangeiros infectados. Sem contar estas pessoas, 9,4% da população atual já tiveram a doença desde o início da pandemia.

Mariandi de Los Ángeles Larez ao lado de sua família

Com base nos dados divulgados pelo governo gaúcho em 2020, no estudo Perfil dos Imigrantes, compilados por meio do Cartão Nacional de Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) em 2019, residem em 465, dos 497 municípios, 50.156 estrangeiros.

Sendo assim, conforme o número de infectados divulgado pela Secretaria de Saúde do Estado (SES) até 14 de maio, 42% da população estrangeira foi contaminada desde março do ano passado. Ou seja, proporcionalmente, o número é aproximadamente quatro vezes maior do que o registrado em relação às pessoas que vivem no Estado.

O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, portanto o único número oficial disponível, destaca que há 10.693.000 habitantes. Como a SES revela que, conforme dados de maio de 2021, foram 1.003.000 contaminados pela covid-19 no Rio Grande do Sul, aproximadamente, o número representa 9,6% da população. Mas a porcentagem diminuiu para 9,4% sem contar os mais de 21 mil imigrantes que contraíram a doença.

Incluindo os assintomáticos

Apesar de não se ter ideia da quantidade de imigrantes infectados, mas sem sintomas, a proporção de contaminados entre estrangeiros poderia ser menor, em relação à população gaúcha que ficou doente devido à covid-19, se fosse levado em conta um estudo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A 10ª rodada da Epicovid-19, divulgada no final de abril, revelou que 18,1% das pessoas que vivem no Rio Grande do Sul, cerca de 2 milhões de habitantes, têm anticorpos, ou seja, foram contaminados, mesmo que de forma assintomática.

Imigrantes

Conforme demonstrado no gráfico (vejo abaixo) o primeiro caso entre os imigrantes no Estado foi registrado em março de 2020. Já em abril, o número de infectados subiu para 32. Entretanto, em maio, já eram contabilizados 629 novos registros. O volume representa um aumento de 94% entre um mês e outro.

Em junho, 566 estrangeiros foram contaminados, já em julho, esse índice saltou para 2.865 ocorrências. Agosto registrou 1.477 pessoas. Em setembro foram 3.127 novos casos. O aumento da contaminação coincide com um período em que o governo estadual flexibilizou medidas do modelo de distanciamento controlado.

No dia 24 de agosto, o executivo divulgou o mapa com as bandeiras indicando a situação em cada localidade e, na ocasião, 12 regiões estavam em bandeira vermelha, o que indica risco alto de contaminação. Já no dia 14 de setembro de 2020, o número geral sobre o risco de contágio caiu para 5. Em outubro, o índice diminui mais do que a metade. Entre novembro e janeiro, o volume foi inferior a mil doentes por mês.

Fonte: SES

A venezuelna Mariandi, que se contaminou em fevereiro deste ano, foi uma das 1.763 pessoas de fora do País infectadas no Rio Grande do Sul. Já em março, o pior período no Brasil, não poderia ser diferente entre os estrangeiros. No período, foram registrados 3.589 contaminados. Já em abril, o número caiu para 1.555. Em maio, até o dia 14, havia apenas 82 novos registros.

Vivendo há dois anos no Vale do Sinos, Mariandi se mudou para São Leopoldo com a mãe, quatro irmãos e o marido em busca de oportunidades. Diante da crise na Venezuela, ela esperava uma situação melhor após sua saída, mas o caminho não está sendo nada fácil. Sem formação profissional, a imigrante não conseguiu um emprego com carteira assinada. Até o agravamento da pandemia, a jovem era responsável por cuidar da casa e da filha, com 1 ano e 5 meses, enquanto o seu marido, Marco Marco Rizalez trabalhava fora.

Rizalez é funcionário em uma empresa de aluguel de brinquedos infláveis, utilizados principalmente em festas infantis. Com o distanciamento social, o número de eventos reduziu e, consequentemente, a empresa parou de operar. Diante deste cenário, a esposa dele resolveu buscar uma atividade profissional.

“Há quatro meses, me vi obrigada a sair e levar junto a minha filha para vender produtos de limpeza. Eu vendo de casa em casa e por trabalhar nas ruas e ter contato com muitas pessoas, eu e meu marido fomos infectados. Por sorte, só tivemos sintomas leves e nos recuperamos rapidamente”, detalha.

Assim como Mariandi e Rizalez, a maioria dos imigrantes sobreviveu após contrair o vírus. Segundo dados da SES, a letalidade entre o grupo é muito baixa.

Muitos infectados, mas poucos óbitos

Apesar do alto índice de contágio, apenas 2,3% dos imigrantes infectados faleceram. Esse levantamento foi feito com base nos dados divulgados pela SES, em seu site oficial, e foram compilados pela reportagem. Dos 21.149 casos registrados até o dia 14 de maio, apenas 249 estrangeiros morreram. A taxa é um pouco menor do que a registrada no número geral de óbitos entre os doentes no Estado.

Fonte: SES

A letalidade entre os gaúchos que contraíram o coronavírus é de 2,6%. A primeira morte entre estrangeiros foi registrada no dia 9 de maio de 2020, no município de Vila Maria, na região norte, distante 45 quilômetros de Passo Fundo. Trata-se de um homem nascido no Haiti, com idade superior a 70 anos e que começou a apresentar os sintomas da doença um dia antes do óbito, mas com diagnóstico confirmado em 15 de maio. Assim como no caso de contaminados, o mês mais letal para o grupo foi março deste ano com 83 falecimentos.

A taxa de letalidade dos imigrantes no Estado também é menor do que a média nacional. O mais recente levantamento divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no início de maio, indica que a taxa de letalidade por covid-19 no país é de 3,5%. O que indica uma queda em relação ao mês de março, quando a taxa era de 4,5%.

Na saúde e na economia

Na avaliação de Anderson Luis Hammes, diretor do Centro Ítalo Brasileiro de Assistência e Instrução às migrações (Cibai-Migrações), projeto que atua desde 1959 no atendimento a estrangeiros em Porto Alegre, as consequências da crise econômica ocasionada pela pandemia afetam ainda mais este grupo em específico. O diretor pontua que, com o fechamento de fábricas e com a diminuição no número de circulação de pessoas nas ruas, alguns imigrantes foram afetados pelo desemprego e pela diminuição de renda. Dados do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Novo Caged), indicam que foram extintos 22,1 mil postos de emprego forma no Rio Grande do Sul somente em 2020.

É o caso do imigrante senegalês Adama Ndiaye que, apesar de não ter sido infectado pelo coronavírus, também foi prejudicado pelo distanciamento social. No Brasil há 6 anos, Ndiaye trabalha como vendedor ambulante em uma rua do bairro Sarandi, na zona norte da capital. Segundo ele, a diminuição do fluxo de pessoas nas ruas da região influenciou diretamente nas suas vendas. Questionado sobre a quantidade de imigrantes que vivem na região, Ndiaye afirmou que a quantidade é “muito grande”. Assim como a venezuelana Mariandi, o vendedor afirmou que nunca sofreu nenhum tipo de preconceito no País. Atualmente, o senegalês divide a casa com outros amigos estrangeiros.

Segundo Hammes, do Cibai-Migrações, estatisticamente, os imigrantes representam um volume pequeno de pessoas contaminadas no Estado. Além disso, diferentemente dos dados registrados pelo governo, um levantamento realizado pelo Núcleo de Pesquisas em Migração do Cibai, indica que existem cerca de 95 mil imigrantes no Rio Grande do Sul, o que constitui 0,84% da população gaúcha. O diretor pontua ainda que o acesso à documentação regular, fundamental para que os estrangeiros acessem o mercado de trabalho, é um entrave durante a pandemia.

Na avaliação dele, o atendimento da Polícia Federal (PF), órgão responsável pela elaboração de documentos como necessários para que estas pessoas exerçam uma atividade profissional, piorou por conta do distanciamento social. “Antes da pandemia, o prazo para liberação dos documentos era de até seis meses.

Durante a pandemia, esse prazo foi ampliado para dois anos. Os imigrantes necessitam desses documentos para conseguir uma vaga de emprego formal”, afirma.

A reportagem entrou em contato com a PF para obter informações sobre o prazo de liberação dos documentos. Entretanto, não obteve respostas. No site oficial da instituição policial, o prazo indicado para a entrega dos documentos é de 180 dias.

Segundo Hammes, o número de atendimentos no Cibai cresceu durante a pandemia. Além de auxiliar os imigrantes na busca de oportunidades no mercado de trabalho, o grupo também ajuda os estrangeiros com a doação de alimentos e roupas.

Assistencialismo na pandemia

Doutoranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Lara Sosa, diz que o isolamento devido à covid-19 agravou a situação de imigrantes e refugiados no País e, consequentemente, no Rio Grande do Sul. Como uma das consequências disso, a necessidade de apoio ao grupo também aumentou e novas iniciativas foram realizadas.

É o caso do Centro de Acolhimento e Proteção a Refugiados que atende estrangeiros no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Com as portas abertas desde janeiro deste ano, o projeto realiza orientações sobre os direitos destas pessoas. Além de integração socioeconômica e comunitária, há também assessoria jurídica, apoio psicossocial e incidência política. Segundo Lucas Nascimento, coordenador do projeto, a pandemia agravou ainda mais o desemprego entre os migrantes e refugiados.

Equipe do Centro de Acolhimento e Proteção a Refugiados Crédito: Divulgação

“A pandemia agravou o cenário, o grupo sofre por ter acesso a renda insuficiente para o sustento familiar e maiores desafios de integração, além de necessidades de acesso à saúde e ao saneamento básico”, ponderou.

Lara, que é emigrante do Uruguai e integrante do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire), projeto ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), pontua que o objetivo das pessoas que atuam em projetos assistenciais voltados para o grupo é tornar os imigrantes autônomos de qualquer auxílio.

“Não é necessário ver a pessoa refugiada como uma coitada. É necessário que a sociedade busque formas para que essa pessoa se emancipe”, afirma.

Neste sentido, o estudante de direito e integrante do Gaire, Gabriel Pareja, pontua que, durante a pandemia, o grupo está “apagando incêndios”. Ou seja, as demandas se tornaram mais urgentes do que no período antes do início da contaminação pelo coronavírus.

Na avaliação de Nascimento, do centro de acolhimento no Menino Deus, o sucesso das ações em prol dos estrangeiros só se torna bem sucedida quando o trabalho é feito em rede. O coordenador pontua que o apoio aos imigrantes e refugiados envolve diferentes atores, como Organizações não-governamentais, setor público e a sociedade civil.

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