A rua sem nome

ivan barbosa
OIMOI
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3 min readMay 4, 2021

Sexta-feira, 26–01–2018, 23:00

Estava a caminho do local da festa de aniversário da minha prima Jéssica, junto da própria aniversariante. Jéssica tinha a tradição de fazer suspense, de aparecer na própria festa atrasada, anunciando sua presença como a atração principal da noite, então decidi acompanhá-la. Percorremos pelos caminhos estreitos do bairro e descemos um morro que desaguava numa extensa rua, de pelo menos duzentos metros de comprimento. Era populada por bares fazendo hora extra, portões de garagem abertos, cada qual com um churrasco diferente acontecendo; além de adultos e adolescentes enchendo a cara, enquanto suas crianças jogavam futebol ou três cortes na rua. Caminhar àquela hora da noite e ver tudo aceso, festivo, suscitava em mim um sentimento, me causava um encanto que trazia saudosas lembranças.

“Lembra da última vez que estivemos aqui juntos, nesta rua?”, Jéssica perguntou. Então reconheci o local.

Dois anos antes, havíamos passado por essa rua e nela mesma ficamos. Minha prima recém alcançava seus dezoito anos de idade e, com a devida permissão de minha tia, saiu à noite para beber pela “primeira vez”. Junto dela, fomos eu e meu falecido tio, o ilustre Antonio (sem acento circunflexo) Beira-Mar.

Eu não tinha a idade mínima para beber, mas não foi a minha primeira vez.

“Não vi nada”, disse Beira-Mar quando mencionei que minha mãe não podia saber de jeito nenhum.

“Pode ficar à vontade”, nos dizia em um sorriso amistoso. “Jéssica vai escolher o bar.”

A garota olhou para o pai, confusa, e então varreu a área nos levando. No fim, nenhum bar tinha mesas sobrando, então pedimos cadeiras e as posicionamos na calçada. Lá nos instalamos, com as garrafas no chão, enquanto assistíamos as crianças se divertirem, correndo, caíndo, largando seus copos e pratos descartáveis no meio-fio. Não era uma rua qualquer, esbanjava vida — um boulevard construído pela classe trabalhadora.

“Se me lembro?”, sorri depois da recordação. “Com toda certeza, sim. Lembro-me com todos os sentidos.”

“Foi uma noite e tanto”, Jéssica suspirou. “A primeira de muitas aqui, no meu caso. Voltei aqui várias vezes; por imprudência, até mesmo em dias frios e inóspitos, e encontrei tudo fechado, vazio, calado. Pelo jeito, nem mesmo as crianças aqui jogam bola na chuva. Acho que é de se imaginar que festas não duram para sempre, mas eu não esperava. Vim buscar mais, pois o fascínio que aquela noite me causou veio junto de um feitiço, do qual surgiu uma abstinência.” Jéssica se mantinha incandescente a maior parte do tempo, mas naquelas palavras pude perceber um lado menos comum, vazio da boemia que era sua marca registrada.

“Todo recesso, fim de ano, feriado, e frequentes fins de semana, eu vinha a esta rua. É meu lugar favorito quando se torna uma Las Vegas. Venho pelo o que ela tem a oferecer, e muito pelo que ela representa a todos que a construíram e que a amam — inclusive eu. Mas também de dia, gosto daqui, pelo que ela significa a mim. Sabe, muito antes de mim, isto pertencia a meu pai, o asfalto surrado, a calçada, os bares, os amigos. E, quando me trouxe aqui por algumas vezes antes de morrer, ele me deixou um presente, uma herança. Sinto que parte dele ainda vaga nesta rua, por isso venho aqui até em dias frios e vazios, quando tudo está fechado.” Estávamos perto do fim da longa rua, andando em passos mais morosos desde o início da conversa.

“Fiz uma busca”, continuou Jéssica. “Sabe o que descobri?” Nesse momento, Jéssica parou e me encarou. “Ela não tem nome. Rua 6 é como aparece no mapa. Não acha ridículo? Um nome irrelevante para um lugar tão afável”. Podia ver que minha prima estava melancólica. Era o segundo aniversário dela sem o pai.

“Que tal batizá-la?”, sugeri.

“De quê?” perguntou-me com os olhos úmidos.

“Beira-Mar.”

O sorriso dela disse tudo.

“O que eu faria sem você, Primo?”

Prosseguimos.

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ivan barbosa
OIMOI
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escritor amador, aspirante a tradutor e um colecionador de sonhos suprimidos ainda otimista. @ivan.sgt.bbsa