Ausência é tudo que eu tenho notado.

Maria Morena Gomes
OIMOI
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3 min readNov 16, 2021

Sexta retrasada eu peguei o metrô pra buscar um café caro e me deparei com uma parada abrupta. Eu sempre vivi um ano na frente do outro, mas tenho me forçado no presente. Forçar o presente é sinônimo de notar o frio do metrô e a quantidade de gente sem máscara. Quando eu era mais nova e o metrô parava entre estações, eu fechava os olhos e contava minha respiração. Dessa vez foi pior, olhei pro rosto das pessoas e eles gritaram ausência pros meus olhos.

Uma senhora em particular comia um pacote de biscoito de polvilho doce com a boca bem aberta, caiando farelos no chão. Percebi que era o único barulho feito por gente naquele vagão. Fiquei completamente enojada, não só pelo polvilho ser doce, como também por ela estar sem máscara, constantemente tocando a barra do metrô e a boca. Me disseram para não escrever sobre porque ninguém quer ouvir mais da famigerada infestação mundial, mas eu só sei escrever sobre o que me transpassa e o silêncio foi muito. Encarei a senhora por muito tempo, ela pouco me encarou, mas quando fazia eu quase chorava.

Escrever sobre o que eu sinto agora me parece sem sentindo, mas me assustei com as hipóteses possíveis que criei na minha mente. De duas, uma: Ou ela era uma completa ignorante, por falta de melhor palavra, e não entendia o conceito de proliferação de microrganismos em uma lata de sardinha mais ou menos refrigerada, ou ela não ligava. Ignorante cabe para os dois. A não empatia ou a falta de conhecimento possíveis na situação me entristeceram.

Eu podia desenhá-la. Ela tinha grandes dentes pontudos e usava um vestido que parecia ser de poliéster. Esticava muito na parte da barriga, como se ela sugasse todo o ar do ambiente nas vezes em que abria a boca para enfiar mais biscoitos. O vestido tinha muitas cores, sobretudo roxo meio avermelhado. Tinha uma corcunda estranha e o cabelo preso num rabinho liso, meio grisalho, meio preto. Ela olhava pros lados com uma certa frequência, muito pouco para frente. Tinha um carrinho de metal com ela, quase como se na barriga não coubessem todos os biscoitos.

Quando ela mastigava muito alto, a mulher parada ao lado dela olhava escandalizada para a nojeira de farelos, mas não ficava muito tempo presa neles e logo virava a cabeça. Eu não conseguia parar de vê-la. Ficava esperando ela me encarar de volta só para sentir lágrimas brotando nos cantos dos meus olhos e não conseguir limpar por estar com as mãos sujas. Quando ela de fato me encarava, um campo gravitacional era criado entre nossos olhos e eu me sentia estranhamente acanhada e receosa. No entanto, éramos cargas iguais. Sentia como se fosse absurdo estar olhando-a nos olhos, mas como uma criança, fui teimosa.

Agora, carrego a senhora comigo para todos os lugares sem ganhar salário de cuidadora. Quando saio do banho ela se encontra sentada no canto do banheiro, encolhida com a sua enorme barriga entre os joelhos, mastigando pacotes infinitos polvilho doce. Não consigo parar de vê-la, juntas apontamos tudo o que falta, tudo que deveria estar em um determinado lugar e não está. Outro dia achei uma marca de um móvel, que não temos mais, no chão e ganhei meu próprio pacote de biscoito.

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Maria Morena Gomes
OIMOI
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Aspirante a jornalista, leitora assídua e escritora um tanto medíocre. @morenagomesg