Crush

ivan barbosa
OIMOI
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4 min readMar 2, 2021

Sexta-feira de um inverno aconchegante. Última semana de recesso das aulas e eu acordei às sete da manhã hoje, sem nem tentar, perdi o sono e levantei. Passei o dia dormitando tentando, por horas, decidir o que fazer, sem sucesso. Minha preguiça de me por a fazer algo era suplantada pela falta de energia para ter ideia do que sequer fazer. Três da tarde. Tédio.

Peguei uma revista de um real que achei na mesa, na qual havia uns jogos de caça-palavras. Já que acordei cedo, por que não entrar de vez no papel de um idoso? Peguei meu casaco, vesti chinelos com meia e fui para fora, passeando vagarosamente alguma entre ruas. Inconscientemente, fiz o caminho da escola, decidi então passar e matar a saudade dando uma espiada pela grade. Ao chegar lá, reparei no portão aberto, o que me intrigou.

— Olaaá… — disse bem baixo ao entrar, mais pelo medo de estar invadindo o local.

Passei pelo portão e me deparei com parte da equipe diretiva e pedagógica dando passadas por lá e cá. Perguntei o que estavam fazendo e sinalizaram que sempre voltavam de férias antes dos alunos para preparar as coisas, e levei logo uma chamada de atenção:

— Você está no Terceirão e não sabia disso? — um professor disse.

Rude. Também senti sua falta.

Perguntei se a biblioteca estava aberta, já que lá seria um bom lugar para fazer as palavras cruzadas (digo, o caça-palavras). Assim que cheguei, cumprimentei a bibliotecária, sentei-me à mesa e não durei cinco minutos no passatempo. Meus olhos decidiram por si só pesar e fechar. A estrutura isolante da sala, que no verão a transformava numa sauna, era agora bem conveniente e aconchegante.

O silêncio absoluto foi rompido pelo rangido da porta sendo aberta de novo, o que me pescou do cochilo. Me custou uns dois segundos para assimilar o que vi em seguida, mas a visão logo fez meu coração ir de modo economia de energia para modo luta-ou-fuga. Era ela.

— O-Oi, Lisa. — tentei tirar o pigarro da garganta. Senti a minha cara amassada e cabelo desarrumado.

— Oi. — ela respondeu rindo de leve, de pé a um metro de mim, aparentemente surpresa de me ver dormindo na escola nas férias. Mas aquele sorriso largo e despretensioso sempre acabava comigo. Sorri junto.

— O que foi? — fingi não entender o motivo de seu humor, procurando estender a conversa.

— Você veio fazer caça-palavras e caiu no sono, é? Haha.

— Não zombe de mim, — mentira, fica à vontade. — É um passatempo de idoso, então tenha mais respeito.

— É mesmo? Acho que faz sentido, parando para pensar. Já cultiva esses passatempos de idoso agora porque não quer viver o suficiente para se tornar um — disse em voz risonha.

Congelei por um segundo quando vi que ela se recordava de uma conversa nossa de muitos meses atrás, onde eu mencionei que não achava necessário passar dos cinquenta anos para viver uma vida longa. Ela se lembrava. Aquilo aqueceu meu coração.

— Não foi nada disso que eu disse! Não distorce as minhas palavras. — Gargalhamos ao mesmo tempo, mas contive o meu riso para que pudesse ouvir o dela com mais mais nitidez. Era música.

— Não acredito que ainda lembra disso. — comentei.

— Gostei de conversar contigo naquele dia — disse sentando-se à minha frente. — Eu estava bem para baixo e você me animou quando lançou aquele sermão sobre o significado da vida, ou a falta dele. Nunca te agradeci por isso.

Meu Deus, casa comigo.

— Cê vem aqui sempre, gata? — pensei em voz alta.

— Como?

— Hm? Nada, não.

Péssima hora para arruinar tudo com uma cantada.

— Mas, por que você estava mal naquele dia? Não fazia ideia. — continuei.

— Acredita que nem lembro? Acho que você me curou, mesmo. — Lisa deu mais uma risada fofa.

Meu rosto corava e doía de tanto sorrir, mas eu não ligava. Mesmo o motivo de ela estar desolada naquele dia foi varrido pelo tempo, mas não nossa conversa. Eu melhorara o dia dela, e agora ela melhorava o meu.

— Bom, queria continuar a conversa mas eu preciso ir. — levantou-se e foi até a porta. — Mas… Sim, eu venho sempre aqui, gata. — deu uma piscadela e foi-se.

Não se brinca com o coração de alguém assim.

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ivan barbosa
OIMOI
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escritor amador, aspirante a tradutor e um colecionador de sonhos suprimidos ainda otimista. @ivan.sgt.bbsa