Não faz mal

ivan barbosa
OIMOI
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3 min readFeb 2, 2021

Estávamos estirados em um lençol na grama, à sombra de uma jaqueira alta. O dia estava fresco e ensolarado. O vento, que borrava o contorno das nuvens, também balançava o cabelo reluzente de B, que estava do meu lado e havia me oferecido um fone de ouvido para escutar músicas com ela. Diferente de mim, B normalmente era quem conduzia as conversas, mas parecia absorta naquela manhã.

B: “Qual sua música favorita?”, me dirigiu a pergunta.

A: “Hm?” Olhei-a sem entender por conta do volume, então tirou o fone de mim e repetiu, com sua paciência costumeira.

A: “Ah, minha favorita? Careless Whisper, de George Michael.” Minha resposta pareceu causar profunda reflexão nela, que apertou levemente os olhos e os deixou divagarem por um momento, antes de me retornar:

B: “Curioso. Quem diria? Não te daria por alguém romântico-desperado. Geralmente, você é um tanto… inexpressivo.”

Ao ouvir daquelas palavras, virei meu rosto na direção oposta e escondi a tristeza, enquanto impedia as lágrimas. Respirei fundo e repliquei em voz baixa, ainda sem olhá-la.

A: “Sabe que dói quando diz isso, né?”, respondi tentando sorrir para amenizar a seriedade na voz, “Já basta quem não me conhece achar que sou frio. Eu posso ser romântico, sabe. Todo mundo pode.”

Quantos mais eu repensava o que havia dito, mas torcia para que B rompesse o silêncio. Quando criei coragem e voltei meus olhos a B, ela já me encarava, percebendo o meu incômodo. Decidi lutar contra meu instinto de omitir minha vulnerabilidade e fitei B de volta. De certo que ela via meus olhos chorosos e nariz corado, entendia que suas palavras tiveram peso. Eu expunha a mim mesmo naquele olhar, nu, com o coração acelerado, entristecido. Não o fiz para culpabilizar B, mas para que ela entendesse, e entendeu.

Levou sua mão direita ao meu rosto e o acariciou de forma gentil; instantaneamente, me acalmei. Foi quando achei conforto naquela fraqueza e afago naquele olhar de B.

B: “Me perdoe. Estou aprendendo a te entender.” Passeava com seus dedos delicadamente em mim. “Sei que tem seus trambiques pra se expressar. Não precisa ser assim comigo”, olhou nos meus olhos e sussurrou num tom que me encheu de paz.

A: “Bem, eu não quero te enxergar e tratar como qualquer outra pessoa. Mas, se não quiser que eu me diste de ti como faço com os outros, não me trate como eles o fazem.”

B: “Tem razão. Sinto muito.” Cessou seu carinho em mim e olhou para o chão.

Diferente do céu daquele dia, entre nós o tempo estava nublado. Algo não me parecia resoluto naquela conversa. Me entristeci com tudo que eu havia dito, mesmo não me arrependendo. Aposto que B sentia o mesmo.

Vira e mexe, nossas diversidades se chocam e surge uma tragédia onde ninguém tem culpa, e, não obstante, ambos nos machucamos. Nos chateamos e somos profundamente afetados, o que cria uma ferida que, se não tratada, só cicatriza com uma distância. Não podia deixar isso acontecer, pois B não tem culpa do meu julgo, das minhas limitações, do que já vivi e passei; nem eu tenho culpa de ela ser quem é, seja para o bem ou para o mal. Aprendi que aproximação custa, a uns mais que outros, e são precisos alguns gestos de esforço e consideração.

Inclinei a cabeça até seu ombro, B pegou minha mão e entrelaçou nossos dedos.

B: “Você me perdoa?”, murmurou fraquejando.

Voltei meu rosto ao dela e sorri:

A: “Ah, meu bem… Não faz mal. Eu gosto de você mais do que temo a dor dos nossos erros.”

Trocamos um olhar demorado, até que ela riu-se de mim:

B: “Tá bom, me convenceu. Você é mesmo um romântico-desesperado.”

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ivan barbosa
OIMOI
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escritor amador, aspirante a tradutor e um colecionador de sonhos suprimidos ainda otimista. @ivan.sgt.bbsa