O poder

triz vieira
OIMOI
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4 min readOct 21, 2021

Eu estava lendo “Um teto todo seu”, da conhecida Virginia Woolf, e comecei a pensar em certas coisas, certas coisas que normalmente não perturbam quem é o alvo de meus questionamentos, mas com certeza já perturbaram quem ocupa a mesma posição do que eu: a posição da criança que não recebeu o presente no natal. Você, agora, talvez esteja se questionando, como assim? Do que é que essa pessoa está falando? Bom, para entender, imagine a seguinte cena: Uma sala grande, com uma árvore de natal enorme, rodeada de presentes, uma atmosfera calorosa, alegre, até mesmo receptiva. Dois meninos aparecem correndo e sorrisos tomam seus rostos quando eles veem aqueles brinquedos, os pais sorriem de uma forma que diz “Podem abrir! É tudo para vocês!”. Os meninos correm e começam a abrir os presentes, os sorrisos nunca vacilantes, as mãos ansiosas. Enquanto isso, você assiste tudo do lado de fora, por uma janela, tremendo de frio. Essa é a história da nossa sociedade.

Talvez você ainda não tenha entendido, eu vou te explicar. Os homens, e acho bom deixar claro que durante esse texto quando digo “homens” estou me referindo a aqueles homens, você sabe quais são, o homem branco, rico, cisgênero, heterossexual… Bom, esses homens são os meninos na minha pequena história, eles são aqueles que receberam o grande presente: o poder. E o resto de nós, que não se encaixa nessa definição, somos os outros, aqueles que estão do lado de fora, que não tem acesso aos presentes, que não recebem presentes, porque nunca se lembram da gente.

Não precisa de uma profunda análise de nossa sociedade para chegar nessa conclusão, não é mesmo? A não ser que você seja um desses homens, então talvez seja um pouco complicado para você chegar nessa conclusão. É sempre assim, quem já nasce com o poder em suas mãos, nunca o vê como poder, mas sim como direito, por isso, nunca o questiona, e nunca questiona por que está somente em suas mãos.

E o mais engraçado de tudo, é que independente da sua interpretação de poder, a conclusão continua sendo a mesma. Vamos ver alguns exemplos.
Você considera o saber como poder? Pense em como por séculos mulheres foram negadas a ter acesso às escolas, em como as escolas no começo eram somente para quem podia pagar, em como pessoas queer eram excluídas da sociedade em vários âmbitos, e consequentemente desse também. Ah opa, você considera o poder como a liberdade de produzir, de se expressar livremente artisticamente? Ok, pense em como mulheres eram vistas como sem talentos e incapazes de produzir qualquer tipo de arte, veja como há pessoas, até atualmente, que não concordam com esses homens e não podem se expressar, pense em como qualquer produção de arte que retrata vivências queers eram fortemente julgadas e ainda são julgadas, ou melhor, abra um livro, como por exemplo um livro que eu mesmo estou lendo “A história da Arte” e eu posso te garantir que até a parte onde eu parei, 70% de um livro com mais de 600 páginas, não há a citação de uma mulher que foi uma pintora famosa, uma escultura famosa, uma arquiteta famosa, e eu posso te garantir que a razão para isso não era que elas não queriam produzir ou que não tivessem o talento ou o anseio, mas sim porque eram proibidas. Ou talvez não, para você, poder significa ter poder sobre seu próprio corpo? Então acho que chega a ser patético pedir para refletir sobre isso, quando enormes períodos da história estão recheados de homens que acham que tem poder sobre o corpo das mulheres, sobre o corpo das pessoas no geral, ao ponto de acharem inconcebível que uma pessoa não se identifique com o gênero que foi designado ao nascer, ao ponto de acharem inconcebível que alguém não se encaixe nos gêneros binários, ao ponto de acharem que uma roupa pode justificar um estupro. Bom, caramba, isso foi cansativo, não foi? E olha que foram somente alguns exemplos.

Enquanto pensava sobre isso, me peguei pensando, e quem foi que deu o poder para eles? Quem foi o pequeno e irresponsável ser que deu esse poder para eles? Para esses homens tão cruéis, arrogantes e patéticos? A resposta veio baixa, mas firme: foram eles. Eles se deram o poder. E isso é, francamente, um pouco assustador, pois a pessoa que se deu o poder, ao mesmo tempo que não teme perdê-lo pois acredita que o merece por alguma razão que faz sentido somente em sua cabeça e na cabeça de pessoas iguais a ela, ela teme perdê-lo com um grande afinco, pois ele não tem justificativas reais, ele é fraco, ele é questionável, o poder dessa pessoa acaba quando as pessoas que acreditam dominar ganham um pouco de liberdade, e pode ser uma pequena liberdade, somente um colher de chá de poder: isso já significa uma perda. E talvez seja por isso que esses homens têm tanta sede por dominação, por manterem as coisas do jeito que sempre foram, pois quando as pessoas que eles acreditam ser inferiores ganham poder, eles perdem, eles percebem sua própria inferioridade ao se depararem com a sua inexistente superioridade.

Cheguei no ponto onde toda a raiva e toda a indignação que surge quando deparamos com esses questionamentos se sentam cansadas em meu coração, e agora o que eu sinto, é na verdade uma esperança aguda. Agora, eu tenho a liberdade de vir aqui e falar sobre essa situação. Eu tenho esse poder. E com isso, eles perdem um pouco do poder que eles têm. Eles trancaram as igrejas, as escolas, o acesso a arte, a educação, a liberdade de ser nós mesmos. Mas, eles não podem trancar nossos pensamentos, não podem trancar nossa raiva, nosso despertar, e isso não é só o começo, é também o meio e o fim.

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triz vieira
OIMOI
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procrastinadora de sucesso, escritora meia boca.