Solstícios de 2006 — Era só um cigarro

ivan barbosa
OIMOI
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5 min readSep 2, 2021

Verão:

Estávamos prestes a nos formar no ensino médio. Como em todo fim de ano, o clima era mais leve. A turma estava exausta, mas passava os tempos vagos tendo suas últimas conversas, cantando em um karaokê improvisado, jogando as últimas partidas de Uno e praticando esportes — aproveitando os dias restantes como uma festa de Ano Novo. Era um misto de alívio e melancolia, e tudo carregava o cheiro do verão, das férias, festas, praia, churrascos e dias longos que seguiam o ciclo de moléstia do calor e catarse da chuva.

Certo dia, durante uma roda de conversa proposta numa aula, após reunir a atenção dos estudantes dispersos, a professora perguntou: O que fariam se pudessem voltar no tempo, precisamente ao primeiro ano do ensino médio? Como viveriam? O que mudariam? O que fariam a mais, ou a menos? Foi uma indagação muito boa. Mesmo nem cogitando a possibilidade de me expressar em frente a todos, era um exercício divertido, pois no fundo nós já tínhamos pensado nisso. Os erros e arrependimentos, namoros que não deram certo, amizades que viraram inimizades, medos bobos, etc. Eu mesmo tinha minha própria cota de coisas que faria diferente.

Para minha surpresa, porém, quando se puseram a falar, boa parte parecia interessada em refazer provas sabendo o gabarito, tirar notas maiores, evitar reprovações, ser mais inteligente, receber mais prestígio, ser visto como “prodígio”. Fiquei intrigado. Como eu temia, foram conectando os argumentos e concluíram que queriam ser como eu. “Justo eu?”, pensei.

Aquelas réplicas eram reflexo de uma inveja que me fugia à compreensão, pois parte do assédio que me foi cometido durantes aqueles três anos, necessariamente, respondia a uma imagem que forjaram de mim — a de um esnobe que era inteligente demais pra se misturar com as outras pessoas. Ironicamente, eu raramente me orgulhava de algo em mim. O que sentia por mim mesmo era, por conseguinte, resultado bem-sucedido do estigma tatuado em mim — asco, amargor, disforia.

Me perguntei se eles desejavam o pacote completo: ser limitado a alguém que, quando útil, podia dar cola nas provas ou, quando sortudo, uma mascote descartável que representava a escola em competições e adornava o hall de “alunos notáveis”.

Ainda assim, sinto que se por ventura ousasse dar meu parecer sobre o assunto naquela tarde, teriam me dissecado vivo. A verdade era que, fosse me dada a oportunidade, faria tudo para passar por medíocre, talvez até problemático, pois só queria ser invisível, livre. Assim que termina o tempo na escola, pouca regalia por ser excepcional vale de alguma coisa, tudo se perde no simbólico.

Enquanto eu admirava em silêncio as respostas da turma, e dava um riso nervoso quando alguém dizia que queria ter sido como eu, senti meus olhos se encherem d’água lentamente. Não queria causar uma cena, mas não se eu não saísse dali me veriam chorar, e não queria ser interrogado do porquê. Na verdade, nem eu entendia a reação fisiológica, como pouco entendia o porquê das coisas em mim serem como eram.

Ao chegar ao banheiro, me perguntei se tinham visto. Certamente sim, mas era nessas horas que eu rogava pela falta de empatia, pois só queria ficar sozinho. Com meu coração ainda célere, me sobreveio a vontade de fumar. Não o podia, é claro, mas aquilo me trouxe uma lembrança.

Inverno:

A única vez que levei suspensão e advertência foi quando fui pego fumando nas dependências da escola, em meados do segundo ano. Estava no intervalo e acabara de ser molestado por uma dupla de filhos-da-puta sobre por que eu não lhes dava o contato de uma amiga minha, que vinha sendo perseguida pelo mais alto dos dois (vou chamá-lo de “S”). Depois de me recusar pela última vez, já com o coração na mão, S usou a última carta. Ameaçou vazar um antigo relacionamento meu com um colega, expondo uma parte de mim que era “ultrajante”. S era esperto, sabia bem que podia fazer muito mais do que contar diretamente à minha família: se contasse a um colega, em pouco tempo a informação cobriria a escola inteira e, eventualmente, a Direção ficaria sabendo; me conhecendo e conhecendo a minha falta de coragem, a Direção por sua vez comunicaria a meus pais. Eu penso que o mundo pertence a pessoas como S, que enxergam através de qualquer farsa e sabem desestruturar e reestruturar qualquer um à sua vontade.

“Eu quero o número e endereço dela. Você tem uma semana”, foi a última coisa que S me disse.

Após os dois irem, tive um ataque de ansiedade. Corri do pátio para atrás da arquibancada da quadra, me escondendo, me sentei na grama e passei pelo protocolo para me acalmar. Ao me sentir melhor, caí na tentação de puxar o maço da mochila e acendi um Dunhill, a tempo exato de ser visto pela coordenadora. Abençoado seja o sujeito que me viu sentado sozinho arfando e a chamou, achando que eu precisava de ajuda — Ah, a empatia oportuna.

Não houve espaço entre crises.

Chegando à Direção, já estava tremendo, com a garganta seca e os olhos vermelhos e inchados de chorar. Expliquei, com muito labor, o que havia acontecido e implorei que não contassem a meus pais. Aquiesceram, sob a condição de que largasse meu vício, do contrário seriam obrigados a acionar o Conselho Tutelar. Pelo resto daquele ano, passei por inúmeras pseudo-rotinas de toxicologia e fiquei sob vigilância quase constante. S fez como prometido, mas ninguém pareceu ligar; pelo contrário, o garoto foi retaliado, por todos os adolescentes e adultos, por me expor. No fim, S pediu transferência para outra escola. Era o fim do meu verdugo.

Durante férias de verão que se seguiriam, enquanto passava uns dias na casa da minha prima, eu seria visto por um aluno do primeiro ano consumindo meio maço num bar enquanto jogava truco com um grupo de idosos. (Diga-se de passagem, boa porcentagem dos alunos já havia experimentado alguma vez; o problema é que os mais novatos eram exímios idólatras, portanto, mea culpa ter adulterado essa imagem imaculada) Uma coisa leva a outra, aluno conta a professor, professor à Direção e sou pego novamente. Exceto que, dessa vez, recebi um leve tapa amigável nas costas e o conselho de esperar mais alguns meses até completar dezoito, pois a Direção não queria deixar um mal exemplo. De qualquer modo, só não podia fazer aquilo na escola.

Após o flashback, saí do banheiro e voltei à sala de aula. Acho que vou deixar para fumar quando sair, quando aprender a ficar em paz comigo mesmo e com quem sou, quando aprender a deixar de lado o asco e o anseio por uma segunda chance; mesmo que, ao fazê-lo, não precise mais do tabaco, só do cheiro do verão.

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ivan barbosa
OIMOI
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escritor amador, aspirante a tradutor e um colecionador de sonhos suprimidos ainda otimista. @ivan.sgt.bbsa