Uma última jogatina

ivan barbosa
OIMOI
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5 min readJul 5, 2021

“Eu te disse pra usar a merda do GPS, agora está anoitecendo e a gente não sabe onde está”, Juniper reclamou, encolhendo-se com as mãos nas coxas.

“Está bem, já entendi. A gente vai achar um retorno, te garanto”, respondi, tentando sem sucesso conectar o aparelho para achar uma rota de volta para casa.

Nós três voltávamos do aeroporto e era a primeira vez que eu, Kahala, dirigia por aquela intermunicipal. Acabara de pegar o acesso errado e meus amigos e eu estávamos adentrando uma espécie de espaço rural. Conforme escurecia, as estradas pareciam cada vez mais irregulares e terrosas, e o barulho da cidade dava lugar ao silêncio do campo. Juniper, que chegara de viagem àquela tarde, estava sentado ao meu lado e parecia aterrorizado e ao mesmo tempo prestes a explodir de vontade de ir ao banheiro; Gia, a mais nova do grupo, estava deitada no banco de trás dormindo, nem havia dado as boas vindas a Juniper ainda.

“Ficar nesta posição só vai aumentar a pressão na sua bexiga”, eu disse a Juniper.

“Ai, cala a boca. A culpa é sua, Kahala”, gemeu. “Eu já não ligo mais se tiver que passar a noite fora, por favor, acha logo um lugar, pois eu não quero ter que me aliviar no mato”, disse em agonia.

“C-Certo”, acatei. Juniper fica irritante quando algo o incomoda, mas é um bom amigo, o melhor que eu poderia ter.

Alguns minutos depois, avistamos uma placa à beira da estrada: Pensão em 500 metros. Perfeito.

Avançamos até que enfim era possível ver emergir da escuridão da floresta um par elegante de casas, uma delas com dois andares e ambas cercadas de uma área de gramado limpo. A maior das duas possuía uma churrasqueira ao lado e duas mesas extensas de madeira, próprias para confraternizações. A julgar pela disposição dos imóveis, o proprietário devia residir na casa menor. Parecia perfeito, então estacionamos

“Pergunta se tem banheiro. Vou te esperar aqui mesmo, eu sinto que se me mover não vou poder segurar”, Juniper sussurou depois que saí do carro. Fui à porta de toquei a campainha.

“Quem é?”, disse uma voz baixa e tímida. Um homem em seus quarenta anos abrira uma fresta da porta e revelava apenas metade da face.

“Boa noite! Meu nome é Kahala, prazer. Queria saber se a casa está vaga para aluguel”, eu disse. O velho parecia não estar esperando ninguém:

“Temo que não seja possível, senhorita”, respondeu em tom demasiado educado, “Nós estamos no meio de uma limpeza hoje”, sorriu simpaticamente.

“Entendo. Então, meu amigo pode usar o banheiro da sua casa, se não for um incômodo?”

O velho mudou para uma expressão de desdenho por um segundo ao olhar de relance a Juniper, mas logo vestiu o sorriso de plástico de novo.

“Há mato de sobra por aqui, se seu amigo não se sentir incomodado em mijar de pé”, sugeriu quase em um resmungo. Ele estava escondendo a irritação, e eu também, sendo sincera. Estaria ele insatisfeito com o estilo de vida de cuidar da casa que comprou para aluguel? Que aposentadoria difícil.

“Tudo bem. Mas… Posso usar seu telefone, por favor? Estamos sem sinal”, resolvi pedir.

“Aqui também estam — “, replicou, imediatamente interrompido pelo toque do telefone de sua casa tocando. O velho fechou os olhos e respirou fundo.

“O pernoite é R$ 20”, balbuciou.

“Ótimo. Obrigada”, respondi com um ar de gracejo.

“Então?”, eu disse ao ver o velho paralisado, esperando-nos sair.

“Então o quê, minha senhorita?”

“As chaves, meu senhor.”

“Ah sim. Claro, as chaves”, disfarçou com um riso.

“Até”, disse ao me entregar o molho.

Que coisa. Velho irritante.

Juniper disparou ao banheiro quando entramos. Deixei Gia no sofá e resolvi olhar pelo primeiro andar a fim de ver o que havia naquela lugar espaçoso. O interior era moderno e permanecia em bom estado, porém algo me chamou a atenção.

“Isto é cheiro de café?”

Fui à cozinha, que se separava da sala por um balcão estreito. Lá, achei uma frigideira vazia dentro da pia, além de um fogão de indução com um bule em cima dele, com café até a metade. Estava estava morna, o que indicava que o café era fresco. Fora isso, a cozinha estava impecável.

O velho faz café aqui enquanto limpa?

Quando vi que Juniper voltou, chamei-o:

“Amigo, acho que vamos ter que sair daqui o mais rápido possível.”

“O quê? Por quê?”

“Tem algo suspeito naquele velho e nesta casa também. Ainda não sei o que é, mas não quero ficar para descobrir.”

“Querida, tenha calma. Eu sei que gritei no seu ouvido a viagem inteira e deve estar cansada, mas você tem certeza que quer ir embora só para não dormir comigo?”, chegou mais perto e brincou.

“Você confia em mim?”, inquiri. O garoto me olhou por um instante e acenou com a cabeça.

“Confio. Tudo bem, vamos embora.”

“Hã… Galera?”, ouvimos a voz de Gia pela primeira vez naquele dia, vindo de algum lugar longe na casa. “Venham aqui no quarto”, gritou.

Juniper e eu trocamos um olhar e fomos em direção ao quarto mais próximo, que se encontrava no outro extremo do primeiro andar.

“Oi, Baixinha”, Juniper cumprimentou Gia abraçando-a. “O que foi?”

“Olhem, acho que tem umas gotas de sangue no chão, bem no canto.

Era pior do que pensei. Precisávamos sair dali. Entretanto, antes que pudesse deliberar, já olhavam meus amigos para mim, como quem esperava aprovação. Era só o que me faltava. Seria errado, mas eu também era culpada de querer ficar.

“Argh… Certo!”, cedi à pressão. “Mis compadres, temos aqui a cena de um crime”, tentei suprimir a empolgação em mim mesma.

Os outros dois, ao ouvir aquelas palavras, pularam de alegria. Havíamos achado ouro.

“O que dizem de abandonarmos o senso de responsabilidade e resolvermos mais um caso, em nome dos velhos tempos?”

“Eu topo”, entoaram Gia e Juniper em uníssono.

“Quais as regras, Tenente?”, perguntou Gia, saltitando.

“Vocês conhecem as regras: trinta minutos, vasculhem por pistas, qualquer meio é permitido, exceto adulterar, forjar ou omitir evidências, bem como qualquer coisa que possa atrapalhar o trabalho da polícia. Quem tecer a hipótese mais plausível, vence.”

“Beleza. Que comecem os jogos!”, Juniper anunciou.

Passada meia hora, minha bússola moral fazia meu sangue ferver em tensão, mas eu estava tão feliz. Decidimos chamar a polícia antes de começar a discussão das hipóteses. O trio estava reunido na sala, cada um ostentava um olhar mortal e silencioso. Éramos como caubóis se encarando, prestes a entrar em um conflito de faroeste.

A diversão começa agora.

Continua.

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ivan barbosa
OIMOI
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escritor amador, aspirante a tradutor e um colecionador de sonhos suprimidos ainda otimista. @ivan.sgt.bbsa