Uma última jogatina — Parte II: Laços de fita amarela

ivan barbosa
OIMOI
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5 min readAug 3, 2021

“Nunca duvide da sua tenente”, eu voltava a dizer cada vez que tinha preguiça de explicar a Gia e Juniper alguma hipótese minha. A necessidade de me reiterar começou como uma brincadeira, mas o apelido caiu bem. De fato, as vezes em que meus instintos se provaram racionais não foram poucas, e com o passar do tempo, conforme o trio de apreciadores de investigação se consolidava e se tornava entrosado, eu fui praticamente intimada à liderança. Foram tempos repletos de vida, aqueles; discordamos e brigamos em um sem-número de ocasiões, já passamos dias sem nos falarmos, mas no fim eu depositava confiança absoluta nos dois, assim como eu sei que eles acreditavam em mim.

Parte de mim lamenta só ter conhecido Gia e Juniper no terceiro ano do ensino médio, porque os dias na escola se tornaram tão mais digestíveis quando a gente passou a se encontrar nos intervalos para trocar enigmas e jogar jogos de tabuleiro de detetive. Ninguém fazia questão de estar ali senão para compartilhar da mesma paixão e se sentir pertencente a algo. Porém, nos seis meses que antecederam a formatura, pensar no inevitável fim era minha tormenta, embora evitasse a todo custo tocar no assunto com eles.

Nesse sentido, nossa última jogatina no tempo da escola me forçou a enfrentar a questão. Aconteceu cerca de um mês antes do fim do ano letivo. Na volta para casa, passei por um cartaz grudado a um poste. Era a respeito de uma jovem desaparecida. Talvez pela angústia de terminar nosso tempo juntos sem um legado, decidi que era uma boa ideia investigarmos por conta própria. Naturalmente, Gia e Juniper hesitaram em se envolver em um caso real, mas por confiarem tanto em mim, no fim concordaram em ficar de apoio enquanto eu fazia o trabalho. Assim, descobri onde morava a família da vítima e decidi entrar em contato, alegando tê-la conhecido num passeio de nossas escolas. A mãe, frágil como estava, não pensou duas vezes e me passou informações sobre a vida escolar da filha. Gia então investigou os colegas dela por redes sociais e conseguiu reduzí-los a uma lista de quem poderia estar ligado ao desaparecimento, me exortando quando os chamei de suspeitos. Um dos perfis fazia apologia ao crime organizado, mas nada parecia estar correlacionado; o outro era praticamente inativo e pouco revelador, mas pertencia a um amigo que supostamente acompanhava-a em suas saídas à noite. Decidimos, então, investigar o segundo. Uma vez que Juniper descobriu o endereço, eu e ele — eu o arrastei comigo — nos encarregamos de observar o comportamento do indivíduo durante um fim de semana.

Dada sexta-feira, no caminho para uma festa, vimos que o garoto fez parada em outra casa para buscar uma garota. Não havia resquício de preocupação ou luto por sua colega no rosto dele, apenas leveza e atenção total em cima da jovem que estava consigo. Ali mesmo meu instinto murmurou. Muito contra o endosso de Juniper, ficamos na festa até nossos corpos não aguentarem mais, eu mesma quase desisti. Porém, às quatro da manhã daquele sábado, o suspeito, que quase perdi de vista, deixou a festa e foi numa direção oposta a própria casa, dando apoio à garota, que mal se aguentava em pé. Lembrei que em um certo momento ela bebera do copo do garoto. Senti um frio na barriga intenso, logo chamei Juniper e nos pusemos a segui-los de longe. Algumas quadras depois, vimos ele entrar num extenso terreno sem portão e ir em direção a uma casa. O local por si só era sinistro, a casa de tijolos inacabada não parecia uma residência, pelo menos não uma ocupada, não tinha luzes e era cercada apenas de mato alto. Eu parei em frente, mas não soube o que fazer em seguida. O frio na minha barriga quando vi os dois entrarem naquela casa foi tão grande que congelei. Fiquei mal, senti uma vergonha descomunal, mas também outra coisa, que mais tarde entendi como solidão. Juniper me olhou, entendendo que eu não queria dar continuidade àquilo, mas eu não podia abandonar uma possível cena de crime. Decidi ligar para a polícia e relatar minha suspeita. Quando escutamos as sirenes, partimos.

Naquela madrugada, quando chegamos na casa de Juniper, não consegui pregar os olhos, tamanha era minha amargura e desapontamento. Sentada à mesa da cozinha, com a luz apagada, eu assistia a manhã se erguer e dissipar a escuridão, me recusando a aceitar aquela luz e o fato de haver um dia seguinte. Sempre ouvi que quanto maior a arrogância, tanto maior a covardia. Coitada de mim, pensei. Eu era uma farsa, uma criança que não sabia quando brincadeira acabava, sozinha na loucura da minha arrogância.

Gia, que acordara há pouco, se juntou a mim.

“Fique sabendo do que houve”, sussurrou. “Você fez a coisa certa.”

“Você acha?”

“Sim, recuar foi a melhor decisão. Dá para ver na sua cara que está se martirizando agora, mas saiba que encontrar o provável culpado e entregá-lo para a polícia é mais do que qualquer um de nós faria. Por isso, você é nossa líder. E, por mais injusto que seja, até a dor que está sentindo agora vem de um senso de responsabilidade que poucos tem. Eu te admiro muito, Kahala.”

Eu não sabia o que pensar, então ter a afirmação dos meus colegas foi importante. Mesmo assim, eu decidi:

“Acho que esse foi meu último caso. Vou dar um tempo nesse lance de tenente.”

“Entendo sua decisão”, respondeu Gia, não parecendo surpresa. “Não ligo de perder nossa tenente, contanto que nossa Kahala continue aqui.”

“Com certeza”, disse e sorri.

Eu me pegava perguntando qual das duas se foi e qual ficou naquela noite, Kahala ou a tenente? E por quanto tempo eu poderia de fato continuar por aqui, ao lado dos meus amigos?

Com o fim do ensino médio, teria de aceitar que as coisas não seriam as mesmas, cada um seguiria o caminho que a vida lhe impusesse, mas para mim era mais que isso. Acho que a parcela de mim que me deixou naquela noite foi meu espírito de intrepidez, que me levava a percorrer grandes distâncias na minha jornada em direção a mim mesma e, mais importante, que só nasceu com meus amigos. Vivi estagnada desde então, duvidando se eu era capaz de seguir em qualquer direção se fosse necessário ir sozinha.

Continua

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ivan barbosa
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escritor amador, aspirante a tradutor e um colecionador de sonhos suprimidos ainda otimista. @ivan.sgt.bbsa