Uma última jogatina — Parte III: Três amadores e um caso

ivan barbosa
OIMOI
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8 min readOct 5, 2021

De volta ao presente, o plano original era buscarmos Juniper do aeroporto e depois irmos ao Shopping, reunião essa que eu convoquei, desesperadamente tentando manter vivo nosso contato, mas também porque queria impedir que o vento soprasse os meus cacos de sentimentalismo para longe de mim. Agora, mesmo estando numa situação inesperada, meu instinto me dizia que havia algo valioso ali; não era só o caso ou a reunião de três amigos, era algo a mais.

“Certo.” Sentei-me com meus amigos na sala de estar da pensão. “Vamos recapitular o que aconteceu desde de que chegamos na pensão e então debater o que pode estar acontecendo. Todo mundo de acordo?” Meus amigos aquiesceram, então prossegui:

“Primeiro, tocamos a campainha da casa, onde supostamente reside o dono da propriedade. Fomos atendidos com um comportamento muito estranho por parte de um velho, que parecia se sentir importunado.”

“E me olhou de um jeito muito estranho”, Juniper acrescentou.

“Bem lembrado. Além de evasivo, ele foi nitidamente mal-educado. Dito isso, comportamento do velho foi só a primeira bandeira. Quando o convencemos a nos deixar passar a noite na pensão ao lado, ele sugeriu um preço de R$ 20 pelo pernoite, sem ao menos perguntar para quantas pessoas seria o serviço. Para mim, isso fede a golpe, mas vamos adiar as deduções. Ao entrarmos, o que encontramos que chamou nossa atenção?”, perguntei.

“Um bule cheio até a metade com café morno, em cima do fogão”, disse Gia. “Além disso, uma frigideira limpa dentro da pia, e gotas de sangue no canto do quarto.”

“Exato. Acho que isso conclui o que temos até agora. Não é muito, mas, conhecendo vocês, é suficiente”, concluí. “Bem, quem quer ir primeiro?”

“Eu gostaria de ser a primeira, tenente.” Gia levantou um dedo.

“Permissão concedida, Baixinha.”

“Esta pensão é na verdade parte de um esquema de coleta de órgãos”, disse ela casualmente. “Ou isso, ou sequestro e tráfico de mulheres, ainda não decidi qual.” Segurou o queixo em reflexão.

“Que mórbido…”, disse Juniper.

“Tenho medo de ouvir o resto, mas prossiga”, pedi.

“A razão pela qual Kahala foi a princípio rejeitada como cliente é porque o velho viu que ela não estava sozinha, pois Juniper estava no carro, então não quis assumir riscos, já que o interesse real dele é em pessoas que não aparentam ter capacidade de se defender.”

“Isso foi ofensivo de várias formas, Gia, mas vou relevar. Entretanto, e acima de tudo, é uma hipótese infundada e deixa de fora as outras pistas; fora que não explica porque ele teria cedido o espaço para nós no fim das contas, se não tem intenção de nos atacar.”

“Bom, eu tentei.” Gia deu de ombros.

“Juniper, quer ser o próximo?”, perguntei.

“Não gosto quando você deixa a sua teoria por último, parece que faz isso só para exibir o quanto ainda falta muito para aprendermos. Se bem que você costuma ser a mais precisa, de qualquer forma.” Meu amigo não gostava de ficar para trás, por isso, sempre que possível, eu tentava injetá-lo com ânimo.

“Mas sempre tenho interesse em te ouvir. Sempre”, afirmei.

“Bom, que seja. Minha hipótese é simples e direta: houve um homicídio. A pessoa que vive nessa casa foi morta recentemente, dado o café morno, e nós chegamos bem quando o criminoso apagava os rastros.”

“Isto pressupõe uma invasão domiciliar?”, inquiri.

“Exato. O velho é o nosso assassino. Em ordem cronológica, ele foi até a casa principal e foi atendido pelo real dono. Depois de demonstrar interesse em se hospedar na pensão, pediu um tour por ela. O dono então trouxe o velho aqui apresentou o lugar a ele. Talvez tenham até trocado um dedo de prosa, o que explicaria o café, que o dono fez para os dois, mas que não teve a chance de servir, pois foi atacado logo em seguida pelo velho.”

“Se for o caso, porque o sangue que achamos está no quarto, do outro lado da pensão?”, Gia perguntou.

“Simples”, continuou. “Não foi um assassinato imediato. O velho pode ter usado a frigideira que achamos na pia; mas um golpe com aquilo não seria letal. Sendo assim, o dono da casa pode ter resistido e assim a luta se espalhou pela casa. O fim da altercação se deu no quarto, com o golpe final. O velho criminoso então lavou a frigideira e a largou na própria pia.”

“De fato, a hipótese de o conflito terminar no quarto condiz com a posição do sangue achado”, observei. “Porém, o que encontramos foram poucas gotas, não a quantidade de sangue de uma ferida fatal. Além disso, a mancha se forma em gotas circulares, não é um padrão que indicaria um golpe… mas talvez uma ferida pingando”, divaguei.

“Só você lê mesmo para ler bibliografias de padrões de mancha de sangue, Kahala”, disse Gia. “Mas, independentemente disso, não seria descuido dele não ter limpado, ou ter esquecido de limpar somente uma parte do sangue?”, questionou.

“Tem razão… Talvez havia muito mais sangue aqui, porém, considerando que o café estava morno até agora há pouco, é plausível deduzir que ele fez tudo em pouco tempo: pegou o corpo da vítima do quarto e o carregou pela casa, fazendo caminho até a porta da pensão, o que poderia ter espalhado sangue por todo o chão. Isso mesmo! Ele estava com pressa. Havia muito sangue para limpar, por isso é normal que uma parte tenha passado desapercebida”, Juniper explicou.

“Entendi”, disse Gia.

“Faz sentido”, comentei.

“Por fim”, continuou. “A razão pela qual ele cedeu e nos deixou passar a noite aqui foi porque está ocupado cuidando do corpo agora e pretende terminar o mais rápido possível, e também porque provavelmente acredita que todas a evidências da cena do crime, na qual estamos, já foram removidas.”

Cuidando dos corpos? Caramba, ainda bem que a primeira coisa que fizemos foi ligar para a polícia. Já devem estar a caminho”, pensei em voz alta, tentando inspirar calma em Gia, que se sentava bem próxima a mim.

“Como podem ficar tão serenos assim? E como sabem que ele não pretende nos atacar também?”, Gia perguntou, dessa vez encolhendo os pés no sofá.

“Não sabemos, Baixinha. Por isso chamamos a polícia. Só estamos matando o tempo até eles chegarem”, expliquei.

“Que frieza”, disse a jovem.

“Enfim, sua teoria é consistente e ilustra bem seu amadurecimento como detetive”, comentei.

“Tá, tá, eu sei. Ande logo com isto, conte sua versão, Kahala”, disse Juniper.

“Já que insiste”, brinquei. “Na verdade, sua teoria é parecida com a minha, Juniper. Não consigo imaginar um cenário melhor do que uma invasão domiciliar. Porém, ainda assim, me incomoda o fato de não haver carros ou motos na propriedade. Estamos numa área relativamente isolada, certo? Então como o velho teria chegado aqui? E outra, também me incomoda a ideia de o velho ter usado uma frigideira em vez de uma arma mais típica. Se a frigideira é da própria cozinha da pensão, isso sugere que ele apareceu aqui desarmado. E, se ele veio desarmado, quer dizer que o crime não foi premeditado?”

“Deixa eu advinhar, sua teoria cobre todos esse furos?”, resmungou Juniper.

“Pelo contrário, estava na expectativa de receber alguma luz da sua versão dos fatos. Minha história não é menos falha, porém há algumas observações que eu gostaria de fazer. O primeiro detalhe e mais crucial: foi duplo homicídio”, afirmei, imediatamente vendo meu amigo arquear a sombrancelha.

“Que audácia”, disse ele.

“E a segunda coisa é que o velho não está sozinho, tem outro criminoso auxiliando ele” Juniper revirou os olhos. Não vou mentir, estava me divertindo.

“Na verdade, é bem possível que esse segundo criminoso esteja de olho em nós agora, vigiando nossas ações, talvez na esperança de que iremos embora amanhã de manhã sem causar problemas aos dois. Ou… Esperando a hora certa de dar o bote” essa última parte só inventei para assustar Gia, confesso.

“O quê? Como assim?”, Juniper perguntou.

“Eu não contei a vocês, mas tem mais uma pista aqui: eu vi dois pares de sapato ao lado da entrada da pensão, jogados na grama, quase ocultados, sendo um deles feminino. Logo de cara, eu sabia que tinha algo de errado. Primeiro porque largar um item pessoal próximo à pensão que o dono arrenda seria um descuido que, no mínimo, não condiz com o estado impecável do lugar; e segundo porque o velho não usava aliança, então o par feminino não podia ser da esposa dele. Portanto, já que estamos tomando o velho por suspeito principal do crime, os calçados apontam para a existência de duas vítimas, bem como a última localização delas.”

Percebi um olhar de confusão vindo de meus amigos, então tentei elucidar.

“Teria acontecido da seguinte forma: o velho chega à casa principal, conversa com o dono, pede um tour pela pensão, até aí é a mesma história. Ao entrar, naturalmente o dono pede que o velho tire os sapatos e os deixe na entrada, conforme ele faz o mesmo. O velho então ataca o dono e o mata, em consonância com a interpretação de Juniper. Porém, a esposa do dono, que estava na casa principal, suspeita a demora do marido em voltar, então vem checar o que houve. O segundo criminoso, pasmem, estava de tocaia do lado de fora e viu ela indo em direção à cena do crime. Então, o segundo bandido segue ela furtivamente e, sem escolha, mata a pobre senhora após essa descobrir a cena do crime, totalizando duas vítimas. Os criminosos tiram os corpos daqui e chutam os sapatos para longe da porta na saída, e agora estão a saquear os bens da casa principal antes de irem embora.”

“Não vejo evidência que indique a existência de um outro criminoso ajudando o velho”, observou Juniper.

“Confesso que concordo. Mas o fato é que tem dois pares de sapato na entrada, e é seguro presumir que são portanto duas vítimas. Acho forçado acreditar que aquele velho capenga tenha dado cabo de duas pessoas sozinho. Por isso, faz sentido pensar que tem mais alguém com ele.”

“E os outros detalhes sem explicação que você mencionou, como o modo que teriam chegado nessa casa sem veículo, e a escolha da arma do crime?”, Juniper disse.

“Sabe, existe uma linha muito tênue entre os fatos que precisam ser explicados em um caso, e os pormenores que podem ser ignorados. Dizem que os grandes detetives sabem quando pouco importa como alguém ou algo possa ter surgido do além, e os medianos que se prendem a esses detalhes não concluem coisa alguma.” Respondi em tom jocoso e me diverti uma última vez com a expressão de descontentamento de Juniper.

“Olha, tenente, pela nossa segurança, espero que esteja errada”, disse Gia.

Recostei-me no sofá e respirei fundo enquanto esperávamos as ideias assentarem. Nesse momento, ouvimos a sirene da polícia soar gradativamente mais alta.

“Bom, estamos prestes a descobrir.”

Continua

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ivan barbosa
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escritor amador, aspirante a tradutor e um colecionador de sonhos suprimidos ainda otimista. @ivan.sgt.bbsa