IT’S UNBOLIVIABLE

Relatos de um intercâmbio cultural realizado na Bolívia durante cinco semanas

Revista Ágora
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5 min readOct 28, 2015

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Eu nunca havia pensado em viajar sozinho à Bolívia. Nunca tinha considerado nem ir com a família, namorada ou amigos (a não ser como parte de um mochilão). Depois, porém, de ter meu primeiro contato com a AIESEC — organização estudantil que promove intercâmbios filantrópicos e profissionais ao redor do mundo — e ser aprovado em sua seleção, a ideia de passar semanas na Bolívia já não me era estranha.

Três meses antes da viagem, não conhecia a instituição, e, nesse ínterim, um amigo me convidou para fazer a prova de admissão para o intercâmbio. Fui aceito, comecei a ler e a receber convites sobre diversos programas — desde dar aulas de inglês no Paquistão até participar do desenvolvimento de uma ONG nas Ilhas Maurício — até que encontrei um de Santa Cruz de la Sierra, Bolivia: Give me a Hand, “um programa social para trabalhar com crianças de seis a dezessete anos, as quais, por razões próprias, não vivem com suas famílias…” A descrição seguia. Falava sobre condições sociais adversas e que o ‘lar’ no qual viviam tentava lhes ajudar na escola e lhes trazer de volta um sentido na vida. Naquele momento, percebi o quanto é forte trazer de volta o sentido da vida de uma criança. Não dá para ler isso, saber que é realidade e não se emocionar, não se incomodar. Aceitei o desafio.

Fiquei na Bolívia por cinco semanas. Antes de chegar ao lar, não sabia ao certo o que iria encontrar. Acho, e não tenho orgulho em dizê-lo, que esperava das crianças uma certa revolta com a vida (o que seria, para mim, bastante justificável, pelas vicissitudes que os levaram até ali) e até mesmo certa agressividade. Contudo, imediatamente reconheci que estava muito (muito mesmo!) errado. Elas eram incrivelmente carinhosas. Desde a recepção quando escreveram no hall ‘bem vindos Lucas e Gabriel’, e também no dia a dia: quando entrávamos no salão onde se faziam as refeições, elas nos chamavam para sentarmos às suas respectivas mesas.

De segunda a sexta, permanecia no lar com as crianças (eram pouco mais
de quarenta), outros voluntários e uns poucos funcionários. Nos primeiros
dias, eles ainda estavam de férias, então o cronograma era bem flexível: brincadeiras, futebol, música, entre outras atividades. Por educação, eles tendiam a nos chamar de ‘senhor’. Mas, pouco a pouco, o ambiente se tornou bastante descontraído e informal. As atividades eram bastante divertidas e costumavam correr bem. Uma vez, porém, fiquei assustado quando dois meninos se desentenderam e um, normalmente dócil, começou a ofender a mãe do outro por estar presa e ainda o ameaçou com uma pedra. Contudo, por justiça ao costumeiro bom comportamento de todos, ressalto que esse episódio foi um incidente isolado. As crianças tinham grande respeito por nós, intercambistas, e quase sempre aceitavam de boa vontade quando dizíamos que isso ou aquilo não deveria ser feito.

Além das brincadeiras e gincanas– com direitos a prêmios (apenas simbólicos, como balas e chocolates) — também os ajudávamos com suas tarefas e ensinávamos português e inglês. Era divertido ouvir fora da aula ‘bom dia’, ‘boa noite’ e ‘obrigado’ por parte das crianças.

Todo o numeroso grupo de crianças tinha, regularmente, apenas dois adultos para ajudá-los no dever de casa. Essa carência de atenção individual e a fragilidade no ensino resultavam, por exemplo, em casos como o de uma menina de catorze anos que não tinha ideia de quantos dias tem um mês.

Esse programa, além do fim social, tem o objetivo de difundir um pouco da rica cultura boliviana. Aos finais de semana era outra a realidade vivida. Os membros da AIESEC (um, inclusive, ficou encarregado de me dar host aos finais de semana) me levavam para conhecer a cidade, mostrar um pouco da comida, bailes e costumes típicos, festas etc. Pete, meu anfitrião, foi um dos grandes professores que tive de história local. A divisão ocidente x oriente é substancial e ainda produz fortes reflexos na sociedade. O Estado Plurinacional de Bolívia (nome adotado após a chegada de Evo Morales à presidência, metonímia bastante significativa de seu governo) possui a maior população indígena da América do Sul.

Povos indígenas comuns, os nomes collas e cambas só devem ser usados por indivíduos do próprio grupo, senão é ofensivo. Um colla se diz colla, mas não deve chamar um camba de camba, e a recíproca é verdadeira. O mesmo acontece com outros grupos e etnias.

Viajamos em um grupo de oito inter- cambistas e três aiesecos pelas principais cidades: Cochabamba, Sucre (capital), La Paz (não é a capital, apenas sede do pod- er executivo e legislativo), Potosí e Oruro. As paisagens eram incríveis. Estradas que cortavam o deserto com um plano de fundo dos Andes cobertos de neve. Hotéis e albergues eram muito baratos e éramos recebidos por um povo sempre hospitaleiro.

A despedida do lar foi dificílima. Pediam para ficar e me perguntavam quando voltaria. Fui embora com a sensação de ter me entregado ao máximo, mas ainda assim parece que faltou fazer muito. Eles merecem muito mais.

Para aprender um pouco de um país vizinho-irmão — mediante viagens ou pelas próprias experiências do dia a dia — conhecer lugares belíssimos e experimentar o convívio com dezenas de crianças dispostas a te ensinar a ter paciência, a contar suas histórias de vida, a mostrarem que têm seu valor (eles adoravam mandar mensagens, abraços e até cantar pra minha família via whatsapp) e ouvir o que você pode passar, eu aconselho fortemente que você se permita a conhecer melhor e participar do Give me a Hand.

A Bolívia te espera.

It’s unBOLIVIAble.

Ps.: Sinto muitas saudades daqueles niños.

Lucas Florençano de Castro Monteiro, 5˚ período da FGV DIREITO RIO.

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