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Um dia na elite da polícia civil do Rio de Janeiro

Revista Ágora
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11 min readSep 14, 2015

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Créditos: PCERJ

As forças policiais figuram recorrentemente como objeto de estudo para diversos autores dos mais variados temas e áreas do saber, pois a segurança pública é um assunto muito penoso a todas sociedades e modernas. Numerosas são as contribuições para reflexão, abarcando quase toda perspectiva que se possa ter ao observar um campo tão complexo e, ao mesmo tempo, tão cotidiano, principalmente, para os habitantes das grandes cidades. Sabe-se que para a estrutura político-social de um Estado capitalista moderno se faz necessária a atuação das forças repressoras policiais como mantenedoras da ordem vigente, já que exercem o controle social através do monopólio legítimo do uso da violência.

A escolha pelo estudo desse terreno se deu pela curiosidade que a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) suscita, em decorrência de várias contradições existentes em sua atuação diária, principalmente no que concerne à sua atividade judiciária. Da mesma forma, o interesse é despertado de acordo com suas tradicionais práticas e relações com o sistema judiciário brasileiro como aponta o sociólogo e professor da UFF Roberto Kant de Lima a polícia mantém um ethos ambíguo: de um lado os valores explícitos da sociedade democrática e igualitária, e por um outro, têm-se as práticas rotineiras de manutenção da ordem repressiva em uma sociedade de desiguais.

Com funções pré-estabelecidas por lei constitucional, a Polícia Civil se divide em duas funções: administrativa e judiciária. A primeira refere-se a prevenção de crimes e a segunda à atuação da apuração dos fatos (fact- findings), que funciona como auxiliar aos procedimentos investigativos, classificada, comumente, como repressiva. Observa-se que em muitos casos, uma função pode ser prejudicial ao êxito da outra, sendo alvo de constantes críticas por ampla bibliografia.

Durante a imersão ao campo, utilizei técnicas antropológicas, contando sempre com a informalidade na execução de questionários não estruturados. Além do contato direto com o meio, e participação ativa na observância dos fatos e fatores que me rodearam ao longo do exercício da pesquisa.

Convicto de que poderei cair em julgamentos apressados, devido ao reduzido espaço temporal em que convivi no campo e estudei as complexas relações existentes, me esforcei ao máximo para ser coerente com a realidade fática, não me obstando de toda subjetividade inerente à minha socialização.

Decidi, ainda, por manter o anonimato de minhas fontes, por uma questão de segurança e privacidade. Seguro de que essa escolha não representará perdas maiores das que eu teria com a divulgação dos nomes, elenquei dois nomes fictícios para os dois principais interlocutores que me introduziram ao campo: inspetor de polícia Fábio e Comissário Nunes.

Procurei, com certo afinco, manter um afastamento mínimo para a garantia de uma análise imparcial. Entretanto, mesmo estando certo de minha familiarização com o campo, compactuo com o elencado pelo antropólogo Gilberto Velho, que dirimia: o processo de estranhar o familiar torna- se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações.

A entrada no campo escolhido se mostrou difícil, mas não mais do que eu já esperava. Minhas expectativas quanto a esse ambiente eram de que os integrantes não seriam muito receptivos a um estranho, não nativo, mas as dificuldades se intensificam, ao meu ver, à medida em que existe uma grande preocupação quanto ao zelo pela segurança de todos. Sabe-se que ser policial no Rio de Janeiro não é uma tarefa segura, ou um trabalho equiparável a qualquer um. De tal forma, acredito que não fosse o contato mais direto e próximo com um integrante do campo, eu não conseguiria realizar essa pesquisa.

Antes de discorrer sobre a minha vivência no campo, cabe conceituar e contextualizar, de forma sucinta, a Coordenadoria de Recursos Especiais. A CORE é uma unidade especial da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que conta com policiais de um alto nível de treinamento especializado e são destinados a intervir em situações específicas, em que suas capacitações serão exigidas. Seu símbolo é uma caveira com um punhal, contando ainda, com dois fuzis cruzados ao fundo, o que já é por si só, intimidador.

Minhas percepções preliminares a respeito da unidade não eram as melhores. Frequentemente, violações graves a direitos assegurados são relatados nas operações em que essa força policial se envolve. Submetidos à lógica de combate, inimigo e aliado, os policiais da CORE desempenham com sucesso os fins que lhes são dados.

Créditos: Rafael Andrade/Folhapress

Após diversas tentativas frustradas de adentrar no campo, descobri em uma conversa em família que conhecíamos um dos policiais dessa unidade. E logo após breves explicações sobre o tema de minha pesquisa, o inspetor de polícia Fábio se mostrou solícito em me ajudar e já marcou uma data em que eu poderia ir à base da CORE.

Atualmente, a Coordenadoria está baseada na Cidade da Polícia Civil, que conta com treze delegacias especializadas, cinco órgãos da chefia da Polícia Civil, mais a própria unidade, e fica localizado na Avenida Dom Hélder Câmara no Jacaré, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Uma vez confirmada a data da visita, no mesmo dia, o inspetor me contatou perguntando sobre a possibilidade de nosso encontro ser mais tarde, pois eles estavam em uma operação policial no Complexo do Chapadão, um conjunto de treze comunidade localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro.

Ao chegar na portaria, esperei pelo inspetor vir e liberar minha entrada, pois seria impossível entrar de outra forma devido ao alto esquema de segurança. Ao adentrar na Cidade da Polícia, o mesmo fez questão de me mostrar o espaço, alertando para os altos investimentos que o atual governo tinha feito em equipamentos e instalações para o treinamento e exercício dos policiais. Aparentemente, o inspetor Fábio tinha uma certa popularidade dentro da polícia, talvez em decorrência dos mais de dez anos de carreira, pois cumprimentava a todos que passavam em tom informal e amistoso.

Pude observar um alto número de jovens e mulheres no quadro funcional da Polícia Civil, contrariando minhas expectativas, mas o que logo foi confirmado pelo inspetor Fábio, em seguida: tem muito mais mulheres e gente nova agora, é uma nova polícia. Tem uns que nem se parecem com tira de verdade.

Diante dessa fala, e utilizando os conceitos extraídos de Pierre Bourdieu, compreendi que a heterodoxia comportamental desses “novos” policiais os segregava, de alguma forma, dos policiais com uma hierarquia superior, símbolos da manutenção dos comportamentos ortodoxos alusivos ao habitus do campus estudado.

Ao chegar nas instalações da sede da CORE, me deparei com o forte aparato bélico que a unidade possui. A justificativa para se ter equipamentos dignos de um exército em guerra (automóveis e helicópteros blindados, armamentos de grosso calibre) se extraía da lógica de guerra: porque senão, como nós vamos enfrentar os “vagabundos”.

Na área comum do prédio, senti os ânimos exaltados, pois os mesmos ainda comentavam sobre a operação no Complexo do Chapadão, relatando a facilidade com que os “marginais” fugiam, e a ousadia dos mesmos em dar tiro no veículo blindado de tão perto, algo em torno de dez metros.

Até então, ainda notava um estranhamento dos policiais em relação a mim, olhares com certa desconfiança, e sempre questionando ao meu interlocutor sobre quem eu era, nunca diretamente a mim.

O estranhamento inicial logo foi se transformando em uma aceitação, pela qual, no primeiro momento, faziam piadas quanto à natureza da minha relação com o inspetor Fábio: esse aí é teu sobrinho, né Fábio? Já vi como isso funciona nas novelas! A partir desse momento de maior acolhimento, fui encaminhado para uma conversa com um dos integrantes mais antigos da CORE, o Comissário Nunes, que tinha trinta anos de polícia, destes, apenas dois fora da Coordenadoria.

Foi uma conversa bastante elucidativa, com diversas interrupções de outros policiais que ouviam e complementavam as falas do Comissário, relembrando algum caso, ou dando maiores informações. É importante ressaltar que eu estava munido apenas de um caderno e uma caneta, e sempre ao abri-lo para anotar alguns pontos interessantes, o Comissário sempre esticava o pescoço para ver o que eu estava escrevendo. Sendo assim, muitos dos detalhes que eu ficaria constrangido a escrever, foram guardados na memória.

Os policiais americanos se envolvem em uma troca de tiro, e no dia seguinte vão ao psicólogo, ficam afastados. Nós não! Nós voltamos para a rua

A conversa começou com demonstrações nítidas de orgulho de quem ocupava a elite da corporação: nós somos altamente treinados, o que a gente faz aqui nenhuma força policial do mundo faz. De vez em quando, vem umas equipes da SWAT e do FBI pra cá, e eles falam que nunca fariam isso, que é loucura, é pior que a guerra deles. Nessa fala, notei que o contato com outras forças policiais do mundo resultavam na percepção deles ao flagrante desemparo por parte das demais instituições governamentais: os policiais americanos se envolvem em uma troca de tiro, e no dia seguinte vão ao psicólogo, ficam afastados. Nós não! Nós voltamos para a rua, para outra troca de tiro.

Posteriormente, essa desassistência se fez ainda mais evidente pelas reações a uma notícia trazida por uma senhora de que o RAS (Regime Adicional de Serviço), que de acordo com os policiais nada mais é do que um bico institucionalizado, seria mais regulado, com um tempo maior de descanso. Claramente havia um descontentamento geral e um descompasso entre quem estatuiu a resolução e as vontades e opiniões dos policiais: agora querem cuidar de nós! Nunca cuidaram da nossa saúde! Na época do Alemão, ficamos uma semana quase sem dormir, comentou um inspetor em alusão à grande operação orquestrada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro em dezembro de 2010 no Complexo do Alemão.

Tem delegados que a gente chama de delegado jockey, polícia é política!

Mesmo que institucionalizada, não existe uma hierarquia normativa bem estabelecida e estanque na Polícia Civil, como no caso da Polícia Militar. Pude perceber, inclusive, em algumas falas que a política dentro da carreira de um policial é um fator determinante para a rápida ascensão, ou uma estagnação completa. Assim como me foi confirmado por um dos inspetores presentes: como aqui a gente não tem muito essa de hierarquia, dependendo de quem tá no poder, você vê inspetorzinho de merda mandando em delegado de primeira classe. Tem delegados que a gente chama de delegado jockey, polícia é política!

Ainda nesse sentido, e influenciado pelas queixas salariais gerais, um dos delegados presentes contou que estava na fila para ser promovido há muito mais tempo de que um terceiro, e que já haviam tido três reuniões e o aumento dele não se concretizava, enquanto a promoção do outro foi logo na primeira reunião. Em tom uníssono, os demais policiais disseram que não era surpresa, pois fulaninho está lá do lado do homem, né! Não pude identificar quem era esse homem, mas presumi que fosse alguém hierarquicamente superior e que tivesse poder decisório sobre a questão.

Inevitavelmente, surgiu a comparação com a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), a qual me conduziu a questionar sobre a relação que eles teciam com os policiais militares e com os demais policiais civis. Apesar de uma f lagrante disputa interna foi possível observar, de forma reiterada, a tentativa de congregar os policiais em uma única equipe, talvez, em uma tentativa de fortalecer seu meio social com vistas a impor seu poder simbólico sobre os demais campos sociais, exercendo grande interferência, mas sempre sob o aspecto de um corpo unido. Desta forma, repisando esse argumento, o Comissário respondeu que não havia rivalidade ou problemas maiores, já que eles lutavam do mesmo lado, e que, inclusive, uma equipe da Polícia Militar já tinha salvado a vida dele em uma ocasião em que fora baleado.

Centro de treinamento de incursão em Favelas. Créditos: PCERJ

No tocante ao relacionamento com os demais policiais civis, nota-se um tom de superioridade decorrente da lógica deles serem “combatentes diários” expostos aos riscos iminentes de uma guerra, muitas das vezes, inflamada por eles próprios. A especialização e a aptidão para certas operações, assim como o espírito de equipe aguçado, forjado no estresse contínuo das trocas de tiro e dificuldades provenientes do exercício da profissão, dão aos mesmos um perfil, ainda que homogêneo, um pouco diferente do resto da polícia civil: na CORE só tem maluco! Pegaram todos os malucos da Polícia Civil e botaram aqui!

A essa altura do dia, o convívio já tinha sido mais intenso com os policiais presentes e, diante disso, “respostas menos polidas” foram surgindo à medida em que eu os indagava a respeito do trabalho do Ministério Público e dos defensores públicos. A resposta foi unânime em falar que o sistema judiciário, em sua totalidade, era condescendente com vagabundos, e que com eles, o funcionamento desse mesmo aparato judicial era diferente: se eu erro, o promotor não procura saber como foi direito, ele cai em cima. Eles não sabem como acontece na verdade, o vagabundo fica atirando e se escondendo atrás de mulher e criança para se safar, aí eu não posso dar tiro. Ainda nesse sentido, outro policial falou: é muito fácil falar quando você está sentado com a bunda na cadeira, no ar-condicionado, e não tá lá, levando tiro de vagabundo.

Essa tensa interação entre delegados e promotores de justiça, já observada por Maria da Glória Bonelli, é aumentada pela proximidade hierárquica que ambas categorias profissionais possuem. A mesma autora apontou que existe apenas uma questão que unifica todos os profissionais do campo da justiça: o descontentamento com o Legislativo, principalmente no que se refere ao estado da legislação e das leis processuais, consideradas ultrapassadas e inadequadas para o andamento eficaz do sistema judiciário.

tem que mudar, não adianta! A gente prende o “vagabundo”, no dia seguinte, ele tá solto, rindo da nossa cara!

Desta forma, pude confirmar que um dos assuntos que mais mexeu com as emoções dos que estavam presentes foi no tocante às normas brasileiras. Foram inúmeras as reclamações e apelos por mudanças legislativas, especificamente nos Códigos Penal, de Processo Penal e na Lei de Execução Penal: tem que mudar, não adianta! A gente prende o “vagabundo”, no dia seguinte, ele tá solto, rindo da nossa cara! As leis são brandas demais com delinquente! Teve uma audiência em que eu fui depor, que eu encontrei com um vagabundo que eu tinha prendido cinco meses atrás, e ele já estava na rua, solto! E outra, quando o vagabundo fere ou mata o policial, tem que responder duplamente pelo crime contra agente público.

O comentário de maior impacto durante toda minha presença no campo foi dado por um inspetor logo quando eu me preparava para deixar a sede da CORE. Ao ser perguntado sobre a importância do Direito em sua atuação diária, o mesmo exclamou: Direito? Aqui é o direito da bala! O choque não veio pelo ineditismo da notícia, mas pela sinceridade e segurança com as quais o policial disse. Desta forma, me convenci de que havia conquistado um pouco mais da aceitação deles e fiquei mais satisfeito com as informações colhidas em campo.

Na medida em que ia embora, passei a me atentar mais para as informações no mural de avisos da unidade, até que uma folha impressa com uma frase sutil me chamou a atenção dentre aos inúmeros papéis afixados, era uma citação atribuída ao cantor Jimi Hendrix: quando o poder do amor superar o amor pelo poder, o mundo conhecerá a paz.

Felipe Avellar, 6º período da FGV DIREITO RIO.

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