Foto: Hudosn Pontes / Agência O Globo

“E se a gente incendiasse o jornalismo?”

Uma conversa entre Geneton Moraes Neto e um (ainda) estudante de jornalismo

Revista Apuro
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10 min readAug 23, 2016

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Por Leandro Resende

Quando esta Revista Apuro era um sonho distante (ainda é, mas caçará jeito), quando ainda era estagiário de reportagem Club de Regatas Vasco da Gama, quando nunca poderia imaginar que iria cobrir política em um jornal diário, quando sequer poderia conceber que a obra de Antonio Candeia iria me render um prêmio jornalístico, quando a perspectiva de usar a voz para noticiar em uma rádio seria entendida como um devaneio, aconteceu: entrevistei Geneton Moraes Neto, que foi ser gigante na redação do céu, nesta chuvosa segunda-feira de agosto. E no fundo, tudo o mais que acredito veio daquele encontro.

Arranjado às pressas via Facebook, a entrevista foi marcado na manhã do dia 09 de maio de 2013, para aquela mesma noite. Queria me salvar em ‘História do Jornalismo’, disciplina obrigatória da Escola de Comunicação da UFRJ, cujo trabalho final foi por mim descoberto às vésperas da data marcada para entrega. Escrevi sobre o encontro em quatro páginas de word, espaçamento 1,5, fonte Times New Roman 12, conforme reproduzo abaixo. Enviei para Geneton, que respondeu com elogios sinceros, agradecimentos e palavras motivadoras. Ordenou-me que não desistisse da ideia de escrever sobre a história das pessoas e das coisas. (Obrigado por registrar conversas, Facebook)

Falamo-nos somente mais uma vez, quando lhe enviei a matéria que fiz sobre Candeia, publicada no jornal O Dia, coisa de fã, tiete mesmo. Escreveu-me: “Olá. Obrigado pela mensagem e bola pra frente! De fato: uma das coisas úteis que o jornalismo pode fazer é "produzir memória" - seja sobre o samba, seja sobre política, seja sobre qualquer tema..abs”.

Do encontro de maio, o único ao vivo, resta o texto abaixo, e o café que me foi pago por ele na Cinelândia, o qual só poderei retribuir na eternidade. O escrito guarda certa inocência que perdi, porque a vida em redação muda tudo — ele e outros grandes que encontrei na vida me alertaram isso. Reescreveria algumas coisas, faria outras referências, mas mantenho o original, porque a mensagem que Geneton me passou naquele dia, e em todas as outras matérias, textos, postagens, vídeos dele, é a mesma, responsável pela minha motivação diária: o jornalismo tem jeito. E eu, que optei por ser estudante para sempre, irei procurá-lo.

Descansa, mestre.

Geneton Moraes Neto saiu da missa de sua Primeira Eucaristia para entrevistar Caetano Veloso. Isso não é um fato. É uma brincadeira, feita por um amigo do repórter, e serve de paradigma indiciário de uma carreira que começou muito cedo e transitou por fronteiras pouco usuais do jornalismo. Outro amigo, mais famoso, (Joel Silveira, considerado por muitos o maior repórter que já escreveu nos jornais deste Brasil) chamou Geneton de “coisa investigativa”. E de fato o homem de cabelos e barba grisalhas, sotaque pernambucano inconfundível e detentor de vasto conhecimento da história recente do país investigou. Revirou a mente de personalidades — de Roberto Carlos a Fernando Collor — , produziu dossiês — da Copa de 1950 a Fernando Gabeira — , revisitou a História do país e, sobretudo, produziu memória. Não a oficial, mas um “rascunho da história”, sobre o qual se debruçarão os historiadores que estão no porvir.

Encontramo-nos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, pequeno prédio na Rua da Alfândega número 5, centro do Rio de Janeiro, na qual Geneton exibiu uma de suas duas incursões no cinema documentário: Garrafas ao Mar — a víbora manda lembranças, filme sobre as aulas de jornalismo que tomou na rua Francisco Sá, no emaranhado entre Copacabana e Ipanema. Em miúdos, trata-se de uma compilação das conversas entre Geneton e Joel Silveira, seu amigo e mestre, entremeados por depoimentos gravados de João Cabral de Melo Neto, Fernando Sabino, Darcy Ribeiro e Carlos Drummond de Andrade. Entram em cena também trechos de alguns dos incríveis textos de Joel, interpretados com vigor por Carlos Vereza e Othon Bastos, exemplos de que, no jornalismo deste país, onde hoje reina o óbvio e a objetividade factual, já foram realeza a forma literária e autoral da escrita.

Ademir Menezes fala a Geneton Moraes Neto sobre a derrota brasileira na Copa de 1950. Foto: Reprodução

Graças ao relato de Joel — cujo apelido de víbora fora dado por Assis Chateaubriand, pelo tom ácido de seus textos-, como o do menino morto que viu no curso de uma revolta popular colombiana, ou o da não-entrevista com Getulio Vargas, Geneton demonstra crer no Brasil como local de florescimento do New Journalism, estilo de escrita pretensamente estadunidense, de mescla entre narrativa jornalística e literária, cujos maiores expoentes foram Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote, em meados dos anos 1960. Recorre às aulas da Francisco Sá para criticar a auto-pontificação dos jornalistas desde século, excessivamente pretensiosos: para Geneton, como Joel dissera, o jornalista tem que “ver a banda passar”. Num sentido buarqueano, traduz-se que o repórter não deve se colocar acima dos fatos e tentar fazer parte da banda que está passando.

Nascido no Recife, em 1956, era um menino de 12 anos quando Artur da Costa e Silva deu o golpe dentro do golpe militar de 1964 e fechou os últimos ranços de liberdade do país com o AI-5. Iniciou sua carreira em 1972, no Diário de Pernambuco, quando o país vivia sob a mão de chumbo de Emílio Garrastazu Médici. Viveu, enfim, a ditadura militar que asfixiou o Brasil por 21 anos. Um passado triste, cinza, revisitado por Geneton em 2010, na série de entrevistas que realizou com membros do regime, como o general Newton Cruz.

Gente que não participou ativamente da construção da memória dessa época, mas que tinha muito a dizer. Portanto, Geneton diz ter ido “desarmado” para as entrevistas, sem intenção de fazer juízo de valor ou responder às provocações dos generais — como a que dizia que o Brasil não teve exilados, e sim fugitivos, ou que Wladimir Herzog com certeza se suicidou. Chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, Newton Cruz era da “linha-dura” e hesitou antes de conceder a entrevista ao repórter. Resistiu, mas a chatice garantiu que Geneton (e o Brasil) escutasse detalhes do mal fadado atentado ao Riocentro, em 30 de abril de 1981 e ouvisse, da boca de Newton Cruz, que ele desmontara uma nova tentativa de atentado arquitetada durante o governo de João Figueiredo. De brinde, o repórter foi premiado com os versos “falam de mim/mas quem fala não tem razão/ um rapaz como eu/ não merece ingratidão”, de Zé da Zilda, da Estação Primeira de Mangueira, cantados por uma das bocas mais fervorosamente comprometidas com o regime militar do país.

As entrevistas de Geneton foram exibidas no programa Dossiê Globonews, o qual, segundo ele, são o resultado audiovisual de uma experiência pessoal com jornalismo histórico que produziu outros dossiês, literários, como o de Carlos Drummond de Andrade, lançado em 1994. “Todo profissional deve ter uma bandeira para defender”, e a do pernambucano tem as cores do jornalismo de memória. Desta feita, ele acredita que precisamos “perder a ideia de que o Brasil é um país desmemoriado”, pois as portas para este estilo estão sendo abertas.

Seja qual for a cor da bandeira escolhida pelo jornalista, este deve ter em mente a cláusula pétrea da profissão:

- Não se faz jornalismo com tédio. Jornalista existe para levantar, não derrubar assuntos. — resumiu Geneton em texto publicado em seu blog, tendo repetido, com outras palavras, em nossa conversa após a exibição de Garrafas ao Mar. Acrescentou também que o bom jornalismo, numa definição simples, consiste em “contar a alguém algo que não se sabia”.

Com essas ideias em mente, lá foi Geneton entrevistar Roberto Carlos, a “única mega-celebridade brasileira”, numa das tradicionais coletivas de fim de ano que o Rei dá, na qual lança um novo cd e prepara o público para as “novidades” de seu especial de fim de ano na Globo. Subvertendo a lógica da entrevista atual, exultante e vangloriosa, Geneton disparou, no alto de uma bela suíte, de frente para o mar, no Rio de Janeiro:

- Roberto Carlos, você conversa com as plantas?

O Rei, portador de Transtorno Obsessivo Compulsivo, não se fez de rogado, e disse que sim, confirmado a veracidade de uma das lendas veladas e não discutidas em torno de seu nome. A intenção do repórter era tocar no maior tabu da música brasileira: o acidente sofrido por Roberto Carlos que o obriga a se locomover com uma prótese mecânica em uma das pernas.

Como marcador a se defender de um habilidoso ponta-esquerda, Geneton cercou antes de dar o bote. Falou de crítica musical lida outrora, na qual vira que determinada música era a mais confessional da extensa carreira do Rei. Ele confirmou. Em seguida, perguntou se dizia respeito a algum trauma, e ele também assentiu. Hesitou, porém, na hora de confirmar se a tal letra confessional dizia respeito à perda de parte de sua perna, mas o fez, mergulhando a suíte do hotel no mais escuro dos desconfortos.

Era fato: Geneton conseguira, em áudio e vídeo, um breve destrinchamento do maior tabu da música nacional. No dia seguinte, entretanto, a secretária de Roberto Carlos telefonou e, candidamente, solicitou que a Globo não veiculasse a declaração da enfermidade sabida do Rei. Geneton concordou e ganhou a promessa de que, quando este assunto tiver de vir à baila, será ele o repórter encarregado da entrevista.

Em algum lugar do CEDOC da Globo está aquele que talvez seja o único registro de Roberto Carlos falando sobre sua perna mecânica. E deste episódio se extraem duas lições magnas para o jornalismo: a primeira delas é a de que não devem existir temas proibidos para o repórter. E a segunda é que o jornalista não pode dar nenhum assunto por encerrado. Afinal, a declaração foi obtida numa entrevista supostamente pasteurizada e cotidiana do Rei em todos os anos.

O próprio Geneton percebeu, durante a produção do seu Dossiê Gabeira, em 2009, que todos os assuntos ainda podem render. Tema para lá de debatido quando se fala em Fernando Gabeira é do envolvimento do político no sequestro do embaixador dos Estados Unidos em setembro de 1969. A descoberta do repórter a respeito deste episódio foi o envolvimento do ator Carlos Vereza, responsável pela maquiagens dos comparsas de Gabeira numa tentativa de fuga. Em si, este fato não é muito relevante para contar a história do Brasil e do episódio. Mas serve de exemplo para a necessidade de renovar a curiosidade do jornalista.

Caetano Veloso e Geneton Moraes Neto. Foto: Reprodução

De posse deste ideário, descobri que a entrevista mais marcante de Geneton (“pelas circustâncias”, ele frisou) foi com Nelson Rodrigues, na casa do dramaturgo, durante um jogo do Brasil pela Copa do Mundo de 1978. Na ocasião, seu conterrâneo (Nelson também nascera no Recife) tirou o volume da televisão e deu a entrevista assistindo ao jogo. Também descobri que o longo silêncio de Geraldo Vandré, quebrado pelo repórter, teve fim no dia do aniversário do cantor. Por fim, George W. Bush e Fidel Castro foram os nomes por Geneton citados quando perguntei quais entrevistas ainda faltam fazer.

Leonid Brejnev foi secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética entre 1977 e 1982, período marcado pela burocratização e sepultamento de um certo esplendor da URSS de alguns anos antes. Para Geneton, vivemos a “era Brejnev no jornalismo”: a eficiência tem sido prezada, o texto curto, o lide, uma verdadeira ditadura da objetividade. Perdemos o brilho e a ambição, mergulhando, por fim, numa “mediocrização generalizada”.

Para superarmos isso, Geneton defende a ressurreição do jornalismo autoral, ainda que “não apareça um Joel Silveira todo dia”. Diz ele que o jornalismo na internet é muito mais interessante pois opina e não se atém exclusivamente ao factual cotidiano. Sente saudades do seu tempo de estudante, época em que era confrontado com as opiniões e as críticas de periódicos como O Pasquim.

À Geneton, Darcy Ribeiro disse que se orgulhava de ter lutado pela reforma agrária, pelos índios e pela educação dos CIEPs, ainda que tenha perdido todas as essas batalhas. Maravilhado, o repórter derreteu-se em elogios ao antropólogo, dizendo que queria ter feito pelo menos um pouco de tudo aquilo que Darcy fizera, que ele o motivava. Em resposta, ouviu:

- Troco seu futuro pelo meu passado.

Depois de ouvir e conversar com Geneton, ficamos numa zona nebulosa, entre o passado, sua bandeira jornalística, o presente, no qual estão as características do jornalismo que, no futuro, temos o dever de modificar. Prova disso são suas falas finais. Ele fala sobre entrevista sua com Ariano Suassuna, no ar na GloboNews em junho deste 2013. Nela, a mente criadora de João Grilo e do Auto da Compadecida incorpora o ideário de mudança de Darcy Ribeiro e fala sobre a sua ambição de um Brasil diferente. E retoma os protestos de maio de 1968 em Paris, onde jovens picharam “ E se a gente incendiasse a Sorbonne?” , para provocar:

- E se a gente incendiasse o jornalismo?

Gilberto Gil, um dos personagens principais da outra incursão de Geneton pelo cinema documental (Canções do Exílio,filme sobre o período em que Gil, Caetano, Jorge Mautner e Jards Macalé ficaram fora do país durante a ditadura militar), cantou, em 1967, que “não é obrigado a escutar/quem não quiser me ouvir”. Cantando essa música sem mexer os lábios, deixei a Escola de Cinema Darcy Ribeiro e tomei a Rua da Alfândega em direção a Avenida Rio Branco. Desejei que, no futuro do exercício do meu ofício jornalístico, me escutassem, mas não obrigaria ninguém a isto. Tentaria apenas fazer de maneira diferente, “onde se diz o que diz”.

Se Geneton já conseguiu — ou conseguirá — incendiar o jornalismo, não sei. Mas minha cabeça crepita, inquieta, desde que ouvi a fala serena do pernambucano. Foi aí que, metaforicamente, troquei as canetas por palitos de fósforos, na tentativa de, em vez de escrever, atear fogo às idiossincrasias — as minhas e as da profissão que escolhi seguir.

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