Movimento defende que alunos sofrem sequestro intelectual por professores. Foto: Revista Fórum

“Escola Sem Partido trata professor como criminoso”

Iniciativa esconde valores de direita sob capa de neutralidade, diz Fernando Penna

Revista Apuro
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9 min readJul 20, 2016

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O movimento Escola sem Partido, grupo criado pelo advogado Miguel Nagib em 2004, ganhou impulso nos últimos dois anos e virou um dos principais temas de debate na mídia e nas redes sociais recentemente, em especial após os comentários do historiador Leandro Karnal sobre o tema no programa Roda Viva da TV Cultura no último dia 4. Em linhas gerais, o projeto capitaneado por Nagib enxerga haver no país um processo de doutrinação ideológica nas escolas por parte de professores de esquerda que acabam por manipular e moldar o pensamento de seus alunos. Contra isso, o EsP defende a afixação em todas as salas de aula do país de um quadro que apresente os deveres e limites da prática docente.

Se vem angariando apoiadores país afora — já foram apresentados projetos de lei baseados nos preceitos do Escola sem Partido em centenas de câmara municipais, 11 assembleias legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado — , o grupo também tem sido alvo de forte ataque de professores, movimentos estudantis e outras organizações de classe. Apuro conversou com o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e criador da página Professores contra o Escola sem Partido, Fernando Penna, para saber qual a visão de docentes e estudiosos da educação sobre o movimento e a ideia de doutrinação ideológica nas salas de aula.

Antes, vale um esclarecimento. Apuro pretendia que o tema Escola sem Partido fosse o primeiro de uma série de debates promovido por nós. Ao longo das últimas duas semanas, buscamos contato com Miguel Nagib. Em seguida, o gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) — autor do projeto do EsP na Câmara Municipal do Rio de Janeiro — foi procurado e não indicou participante para o debate. Por fim, contactamos o movimento via e-mail e Facebook e nos foi informado que não havia representante do grupo disponível no Rio de Janeiro. Apuro reforça aqui o convite aos organizadores do Escola sem Partido.

Como surgiu o movimento Escola sem Partido?

O movimento surge em 2004 por iniciativa do advogado Miguel Nagib que narra que sua filha foi vítima de doutrinação ideológica na escola. Segundo ele, foi ao colégio conversar com diretores e pais e, para surpresa dele, as pessoas defenderam o professor. A partir daí, ele interpreta que essas pessoas, entre elas os alunos, sofrem de Síndrome de Estocolmo, onde o sequestrado se apega emocionalmente ao sequestrador. Na visão dele, o professor é um sequestrador intelectual e os alunos são uma audiência sem iniciativa própria que fica à mercê desses professores que podem manipulá-los. Isso mostra como o Escola sem Partido trata o professor como criminoso.

Por que o crescimento recente do EsP?

O movimento ficou sem maiores impactos até 2014 quando o deputado estadual Flavio Bolsonaro (PSC-RJ) entra em contato com Nagib e encomenda a criação de um projeto de lei que capturasse as ideias do movimento. Inclusive é da própria cabeça do Flavio Bolsonaro o nome Escola sem Partido. Algumas semanas depois, o vereador Carlos Bolsonaro apresenta um projeto quase idêntico de âmbito municipal. Uma vez criado o projeto, Nagib o transforma em anteprojeto de lei para que seja difundido em outros estados. Hoje, ele já foi apresentado em 10 estados mais Distrito Federal e já foi aprovado em Alagoas e em duas cidades. Além disso, há dois projetos tramitando na Câmara e no Senado.

O que está previsto nos projetos de lei com base no Escola sem Partido?

Apesar dos líderes do movimento dizerem que querem apenas que a Constituição seja cumprida, o Projeto de Lei 867/2015 é inconstitucional. Ele pretende estabelecer princípios orientadores da educação, mas isso é algo que já está previsto pela Constituição Federal. Por exemplo, o segundo princípio inscrito no PL 867 é o do ‘pluralismo de ideias’. Na Constituição está previsto ‘pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas’. Em outro momento, eles dizem que não existe liberdade de expressão durante o exercício profissional do professor. Na verdade, o que o PL propõe é mutilar dispositivos constitucionais que garantem a liberdade do professor.

Imagem foi compartilhada no Facebook do Escola sem Partido.

Além do ocorrido com Nagib, qual a fundamentação teórica do grupo?

As fontes para entender o pensamento do movimento são o site e a página no Facebook do projeto. Lá se vê que eles tem uma concepção de escolarização e não de educação para o Brasil. Eles indicam, por exemplo, uma ‘biblioteca politicamente incorreta’ que consiste em quatro livros. O primeiro é ‘Professor não é educador’, de um indivíduo chamado Armindo Moreira. A tese do livro é uma dissociação entre o ato de educar e o ato de instruir. Educar seria responsabilidade da família e da religião. O professor deveria se limitar ao ato de instruir, transmitir conteúdo neutro, sem veicular valores e sem discutir a realidade do aluno. Essa concepção é absolutamente equivocada, não existe nenhuma corrente de pesquisa educacional que acredite na possibilidade de transmissão de conhecimento neutro.

Há outra seção chamada ‘Flagrando o Doutrinador’ em que aponta práticas que ajudariam o aluno a reconhecer o professor doutrinador. A primeira delas é “quando o professor se desvia frequentemente da matéria para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional”. Percebe o absurdo disso? É dizer que a realidade não pode ser mencionada, que o professor não pode discutir nada disso. E esse é o primeiro critério. A gente não pode aceitar os termos que eles usam para tentar enquadrar a atividade do professor como doutrinação ideológica, ideologia de gênero, marxismo cultural. Eles cunham termos para proibir atividades corriqueiras e desejáveis na escola, como discutir a realidade do aluno.

O movimento prega de fato a neutralidade ou há um combate a opiniões de esquerda transmitidas pelos professores?

Recentemente, Miguel Nagib fez um vídeo com membros do movimento Revoltados Online e foi perguntado sobre a necessidade do Escola sem Partido. Ele é explícito ao dizer que o petismo saiu do poder mas ainda domina a máquina do Estado, especialmente o sistema educacional. Ou seja, é sem partido, mas na hora de justificar o projeto fala do petismo. E com uma ideia de petismo que é na verdade toda a esquerda, todo o pensamento progressista. Na página do Facebook, há inúmeras referências ao PT, dizem até que o Paulo Freire defendia que se usasse a escola em prol do PT. Há uma imagem questionando quem lucra com a doutrinação nas escolas com uma estrela do PT ao fundo. Eles insistem que os professores são todos “petralhas”. Toda charge de professor, ele está com uma estrela do PT, nunca com o símbolo de outro partido. É sempre o professor associado a essa visão deturpada do petismo. Eles dizem que querem impedir todo tipo de doutrinação, mas só falam de um lado da moeda.

Miguel Nagib foi colaborador do Instituto Millenium entre 2009 e 2011.

Por que o Escola sem Partido esconde seu caráter de direita?

Eles fazem isso porque seria muito estranho deixar explícito a adesão a uma determinada corrente política com o discurso ‘sem partido’ que eles fazem. Para a propaganda é importante que ele seja representado como neutro. Mas a máscara da neutralidade cai muito rápido. Há um exemplo emblemático. Miguel Nabig escreveu por alguns anos para o site do Instituto Millenium (think tank de direita criado em 2005). Lá, escreveu o texto ‘Por uma escola que promova os valores do Millenium’. Hoje, esse texto está assinado pela ‘Comunicação Millenuim’, mas há capturas de tela que provam que ele é de autoria de Nagib (aqui e também ao lado). E quais são os valores que a escola deveria defender para ele? Meritocracia, liberdades individuais, propriedade privada. Esses valores são neutros? Esses valores o professor pode discutir? Além da oposição educar e instruir, eles insistem muito na oposição neutralidade e ideologia. Para eles, ideológico seria tudo que é progressista, de esquerda e o neutro seriam valores de direita, que não tem absolutamente nada de neutro.

Quais mobilizações têm ocorrido contra o Escola sem Partido?

O Escola Sem Partido foi considerado durante muito tempo como inofensivo, coisa que não deveria ser discutida para não ganhar palco. Nessa linha, o EsP ficou propagando seu discurso sem nenhum movimento que tentasse refutar suas argumentações. E esse é um dos motivos para o crescimento do EsP. Já há professores demitidos por essa suposta prática de doutrinação ideológica. Muita gente só despertou para a ameaça real do movimento em 2015, quando o projeto nacional foi posto em pauta. Naquela época, comecei a discutir com meus alunos esses projetos e o desconhecimento até mesmo de professores me levou a criar a página Professores contra o Escola Sem Partido, que tenta mobilizar pessoas em diversas partes do Brasil, fazer circular informações contra o projeto. Além disso, foi lançada na última quarta-feira uma Frente Nacional contra o Escola sem Partido que envolve políticos de partidos progressistas, sindicatos e outras organizações. O movimento surgiu agora mas tem um potencial grande por congregar muitos grupos. É importante o movimento não se restringir apenas a professores e alunos e se espalhar para toda a sociedade.

Fernando Penna é um dos professores à frente do movimento contra o Escola sem Partido. Foto cedida pelo entrevistado.

Qual o diálogo do movimento contra o EsP e o movimento estudantil e de ocupação de escolas?

Eu falei sobre o Escola Sem Partido em uma escola ocupada e é curioso porque o projeto afirma que todo o movimento estudantil é dominado e manipulado por partidos de esquerda. Foi curioso ler para os alunos as concepções que o programa tem dos estudantes porque para eles aquilo é uma enorme piada. O movimento secundarista e de ocupação é a maior prova do equívoco do Escola Sem Partido. São alunos se mobilizando, gerindo espaços complexos como uma escola por uma causa própria e com ação estratégica. Para o EsP, eles são crianças débeis, sem capacidade crítica. Os alunos riem dessa imagem. Os movimentos estudantis estão muito preocupados com o Escola Sem Partido porque a escola que o EsP propõe é uma escola em que eles não querem estar, que suprime a iniciativa do aluno.

O que aconteceria no país após 20 ou 30 anos de doutrinação ideológica em sala de aula?

Isso é curioso porque o Miguel Nabig vive insistindo que a doutrinação virou regra no Brasil há 30 anos. Não por coincidência ele coloca esse marco logo depois do fim da ditadura militar. Segundo ele, portanto, nós já vivemos um processo de doutrinação ideológica nas últimas décadas. Assim, cabe perguntar por que nós ainda não vivemos em um regime socialista se os professores têm todo esse poder e se os alunos são realmente essas folhas em branco, tão estúpidos, tão acríticos? Esse argumento de doutrinação é tão frágil que não se sustenta nem mesmo dentro da lógica do movimento.

Ter que enfrentar o Escola sem Partido não pode ser um obstáculo para se discutir reais avanços na educação pública brasileira?

Sem dúvida. Mas na verdade eu vejo movimentos como o Escola Sem Partido como uma reação a conquistas que os professores tiveram nos últimos anos. Eles tentam proibir a discussão sobre a questão de gênero nas escolas porque nós tivemos a produção de materiais didáticos que lidavam com essa temática. Eles tentam proibir a discussão étnico-racial nas escolas porque nós temos hoje duas leis que tornaram obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. O EsP é um movimento de reação a conquistas dos educadores. Por outro lado, o que pode surgir de positivo dessa resistência é criar frentes bastante amplas que dificilmente se uniriam em outras ocasiões. Pode surgir daí um movimento de professores, estudiosos, sindicatos profissionais para reafirmar quais os valores que queremos na escola, discutir o que é educar, discutir realmente a ética profissional do professor. Mas isso deve ser feito por nós e o Escola Sem Partido em momento algum ouve os professores, os estudiosos do campo.

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