Manifestações pelo ataque homofóbico em Orlando não tiveram mesma repercussão de outros atentados. Foto: Mindy Schauer/The Orange County Register

Je suis Paris, mas e Orlando?

Repercussão dos dois ataques mostra incapacidade da mídia e da sociedade em tratar a questão LGBT

Revista Apuro
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9 min readJul 13, 2016

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Reportagem: Victor Soriano e Vitória Régia

Um mês depois do ataque à boate Pulse, em Orlando, o mundo parece já ter esquecido o que aconteceu. Comparado a outros atentados, como os ocorridos em Paris em novembro de 2015, a ação homofóbica nos Estados Unidos teve repercussão reduzida e parte da sociedade sequer conseguiu compreender que o massacre de Orlando foi motivado fundamentalmente por ódio aos LGBTs. Para evidenciar as diferenças de repercussão entre os dois eventos, Apuro comparou seus desdobramentos na cobertura midiática, atos em solidariedade às vítimas, homenagens ao redor do mundo e pronunciamento de líderes nacionais e internacionais.

Ataques em Paris

Série de ataques em Paris matou 150 pessoas em novembro de 2015. Foto: Getty Images

A série de ataques coordenados na noite de 13 de novembro de 2015 em Paris e arredores provocou comoção mundial e foi alvo de cobertura midiática extensa e detalhada. Ao todo, foram seis fuzilamentos em massa e três explosões no espaço de poucas horas. A ação que deixou mais vítimas se deu no teatro Bataclan, onde terroristas fuzilaram o público que assistia a um show de rock e mantiveram reféns até o início da madrugada. O Estado Islâmico reivindicou a autoria dos ataques e informou que eles eram retaliações pela participação francesa na coalizão contra o EI na Síria e no Iraque. A noite de terror deixou saldo de 130 mortos e 352 feridos.

Imediatamente após os ataques, o presidente da França, François Hollande, decretou estado de emergência, três dias de luto, fechou temporariamente as fronteiras do país e ordenou toque de recolher na capital. O Estado francês, em alerta desde o ataque ao Charlie Hebdo, em janeiro do ano passado, direcionou toda seu aparato de segurança para identificar e capturar os autores dos atentados e impedir novas ações. Hollande também decretou “guerra ao Estado Islâmico”. O vice-prefeito de Paris, Patrick Klugman, disse à rede CNN que o momento era de profunda tristeza para os franceses.

“Estamos muito além do número de mortos de janeiro. Estamos enfrentando um inimigo desconhecido em Paris. Já sabíamos que entrávamos em uma era de ataques, mas agora estamos experimentando algo que nunca foi feito”, afirmou.

O Itamaraty manifestou solidariedade ao povo francês e “consternação pela série de bárbaros atentados” , em nota à imprensa ainda no dia dos ataques. A presidenta Dilma Rousseff, pelo Twitter, expressou “repúdio à violência” e manifestou “solidariedade ao povo e ao governo francês”. Barack Obama classificou a situação como “ultrajante” e um “ataque contra a humanidade”. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, se disse chocado pelos eventos em Paris. Reis e rainhas da Europa também prestaram condolências e solidariedade às vítimas.

Cristo Redentor foi um dos monumentos iluminados com as cores da bandeira francesa. Foto: Flickr

Em todo o mundo, monumentos e prédios foram iluminados com as cores da bandeira francesa, como o One World Trade Center, em Nova York, a Opera House de Sydney e os muros da Cidade Antiga de Jerusalém. No Brasil, o Cristo Redentor e o Palácio do Planalto também receberam as cores azul, branco e vermelho. A Torre Eiffel, principal símbolo de Paris, teve suas luzes apagadas em sinal de luto. Hollande também pediu aos cidadãos franceses que colocassem bandeiras na frente das casas para homenagear as vítimas.

Vigílias e atos também foram realizados em diversas partes do globo. Berlim, Londres, Barcelona, Vancouver, Moscou, Hong Kong, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro foram algumas das cidades que receberam manifestações de solidariedade. Os líderes mundiais reunidos na Cúpula do G20 em Antalya, na Turquia, fizeram um minuto de silêncio em respeito às vítimas de Paris.

A cobertura midiática dos atentados foi ampla no Brasil e no mundo com jornais e sites de notícias acompanhando o passo a passo das investigações. No mesmo período, atos terroristas na Nigéria e na Síria deixaram mais vítimas que o massacre na Europa e não tiveram a mesma atenção da imprensa, o que gerou críticas, principalmente de internautas africanos, quanto à desigualdade das coberturas.

No dia seguinte aos ataques, o jornal O Globo estampava “Massacre em Paris” em sua capa. A Folha de São Paulo falava em “Explosões e tiros coordenados matam ao menos 153 em Paris” e o Estado de São Paulo seguia a mesma linha: “Atentados simultâneos em Paris matam ao menos 40 e ferem dezenas”. De maneira geral, as matérias explicavam em profundidade o desenrolar dos acontecimentos e classificavam as ações como ato terrorista.

Boate Pulse

Ação na boate Pulse, em Orlando, matou 50 LGBTs. Foto: Associated Press

No dia 12 de junho de 2016, o atentado na Boate Pulse vitimava 50 LGBTs e deixava outros 53 feridos. Omar Mateen, autor dos disparos, cometeu suicídio logo depois. Pronunciamentos oficiais e notícias de jornais evidenciaram, a todo o momento, a origem muçulmana do atirador e rotularam a ação como ataque terrorista. O debate sobre o crime de ódio a LGBTs foi insuficiente. A guerra ao terror camuflou o terrorismo diário ao qual estão sujeitos gays, lésbicas, bissexuais, trans e travestis.

Após o crime, o Itamaraty emitiu nota em que expressava “profunda consternação e indignação à notícia do ataque à casa noturna em Orlando”. Além de solidariedade aos norte-americanos, o Ministério das Relações Exteriores ressaltou seu repúdio a “todo e qualquer ato de terrorismo”, como o que provocou a morte “de mais de 50 pessoas”. O Consulado Brasileiro em Miami divulgou comunicado intitulado “Ataque Terrorista em Orlando”.

Já nos EUA, local da tragédia, Barack Obama tomou o ataque à Pulse como “ato de terror e ódio” e creditou à internet o papel de alimentadora do ódio de Omar Mateen. O presidente também declarou luto e pressionou o Senado para a aprovação de legislação mais restritiva ao acesso a armas de fogo, uma de suas principais bandeiras. Os presidenciáveis Hillary Clinton e Donald Trump também se pronunciaram. A democrata expressou solidariedade à população LGBT enquanto o republicano reiterou discurso xenofóbico pedindo medidas duras de Obama contra o islamismo.

A maior parte das lideranças mundiais prestaram condolências de forma semelhante. Todos lamentaram pelo ataque terrorista ou pela violência que os Estados Unidos sofreram. Não é de se espantar que alguns desses países não tenham citado o perfil homofóbico do massacre. Na Rússia, por exemplo, é proibido falar sobre LGBTs. O presidente interino Michel Temer seguiu a mesma linha e figuras homofóbicas da política também não levantaram a questão em suas manifestações aos ataques, como Apuro mostrou.

Ilustração: Victor Soriano.

Em todo o mundo, a comunidade LGBT pediu a devida nomeação do crime de ódio. Terrorismo sim, mas do tipo homofóbico. No bairro nova-iorquino Greenwich Village, em frente ao bar Stonewall, símbolo da revolução LGBT do fim da década de 1960, houve vígilia pelos assassinados na Pulse. Reuniões do mesmo tipo se repetiram em Paris, Tel Aviv e São Paulo. Ao mesmo tempo, grupos conservadores nos Estados Unidos também se manifestaram. Membros da Igreja Batista de Westboro, no estado do Kansas, foram às ruas com cartazes que diziam “Deus enviou o atirador” e “Deus odeia viados”. A marcha homofóbica ganhou maior repercussão que muitos dos eventos em homenagem às vítimas.

As cores do arco-íris iluminaram cartões postais e edifícios públicos, como a Torre Eifell, em Paris, o Saint George’s Hall, em Liverpool, o prédio municipal em Tel Aviv e o Elevador Lacerda, símbolo de Salvador. Estes atos também foram pouco noticiados em relação aos que seguiram os atentados de Paris.

No estado do Kansas, manifestação defendia ação do atirador da boate Pulse.

A cobertura dos principais jornais brasileiros foi insuficiente ao tratar da questão LGBT. A palavra homofobia não foi usada por Folha e Estadão, que falaram em morte de 50 pessoas em “boate gay”. O Globo também evitou o termo, preferindo referir-se ao “ódio homofóbico”. Faltou cuidado para tratar de um assunto que reflete todo o sistema. O momento poderia ter sido usado para trazer a questão da homofobia para o centro do debate, com uso de uma linguagem representativa, real e exata. O opção, no entanto, foi por termos excessivamente vazios e a associação do crime com o terrorismo de grupos como o Estado Islâmico.

Quando você for fazer uma matéria pense: “O que só eu sei? Esse é o seu lide”, disse-nos a única professora mulher que preencheu nossa grade curricular no quinto período de jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ. Eis o nosso lide, aquilo que só nós LGBTs sabemos: a homofobia mata diariamente. Somos LGBTs em um país assassino e homofóbico e todos os dias nos levantamos gratos simplesmente por acordarmos. É a nossa realidade, é a triste verdade que vivemos.

Sangramos todos os dias e nenhum espaço é seguro para nós. A homofobia está presente nas ruas, nas conversas com familiares e amigos, na internet. Ela está presente até na universidade, que deveria ser espaço de aprendizado e desconstrução, mas se viu transformada em ambiente de ódio, violência e repressão. A universidade ainda não é um lugar receptivo para pessoas LGBTs. Deveria ser, mas não é.

Ilustração: Victor Soriano.

Há poucas semanas, em um dos banheiros da Escola de Comunicação da UFRJ, uma pichação homofóbica ameaçava: “Morte aos gays da UFRJ”. O que poderia ser visto como inofensivo se concretizou de maneira brutal. O estudante Diego Vieira Machado, 29 anos, foi assassinado a pauladas em um ato homofóbico no campus do Fundão. Negro, gay, pobre, bolsista e artista, Diego representava tudo o que grupos homofóbicos, que tem crescido de maneira assustadora no país, mais odeiam: uma pessoa marginalizada ocupando espaços de poder e mudança social.

A cobertura midiática do atentado homofóbico em Orlando mostrou como o jornalismo está perdido em sua própria guerra de narrativas e influenciado pela ideologia que exclui LGBTs. Não houve preocupação em se tratar de um tema tão delicado e que é uma realidade a ser descrita e informada. Até mesmo jornais que relataram o caráter homofóbico do massacre exploraram com maior veemência a ideia do terror aos EUA. O terror, nesse caso, é um sentimento que acompanha um LGBT por toda sua vida e isso não ficou claro em momento algum na imprensa.

A falta de tato com a linguagem também é um padrão nos jornais brasileiros. Já habituados a errar os pronomes ao tratar de transgêneros e travestis, as colocações — sempre muito generalistas — são pouco representativas ao tomar toda uma comunidade por “gay”. É como se a Boate Pulse fosse frequentada apenas por homens homossexuais. O peso das palavras importa, ainda mais se tratando da mídia que, por formar opinião, se constitui como poder.

É curioso também analisar o peso que tiveram matérias que trataram da possibilidade de Omar Mateen ser LGBT. O despreparo em tratar de tema tão complexo serviu para, mais uma vez, reforçar a ideologia homofóbica. Ora, como um homossexual matando outros homossexuais seria um crime homofóbico? Nesse caso, Omar Mateen continua, é claro, sendo assassino e o atentado continua sendo homofóbico. O sistema heteronormativo, binarista e machista faz com que LGBTs aprendam a ter ódio de si mesmos. Como muitos outros, Omar pode ter crescido sentindo que ser quem ele realmente era deveria ser motivo de vergonha, algo para ser encoberto, marginal, errado.

Já eram 23h de uma sexta-feira, quando voltávamos para casa depois de uma jornada tripla de faculdade, trabalhos e reunião de projeto. Dois jornalistas, LGBTs. Cansados, andávamos apressados pelas ruas de Botafogo a caminho do ponto de ônibus. Ainda não havíamos chegado na parada quando um motoqueiro passou por nós gritando “gay, gay, gay”. Seguimos andando, discutindo sobre esse poder de invadir liberdades. Passamos por um ponto de táxi e uma rodinha de homens já grisalhos ria alto: “meu neto tá muito mariquinha, vou falar com meu filho”. O riso ardeu nossos ouvidos.

Por sorte, o ônibus chegou. Demos boa noite e seguimos em direção à roleta. O boa noite do motorista veio entrecortado por um “eita” e ele logo começou a cantar um mesmo verso repetidas vezes. Curiosos, nos sentamos e copiamos o verso no Google. Era uma canção que dizia: “Vai ser comido de bicho/Vai ser comido de bicho/ Um certo Herodes, meu irmão/Que não quis adorar ao Senhor”. Herodes de todos os dias caímos às lágrimas.

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