Leblon, Rio de Janeiro. 17 de jul. de 2013, três dias após o assassinato de Amarildo.

2013: o trabalho sonoro nas palavras

Revista Beira
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6 min readJan 4, 2017

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Por Bernardo Girauta

Um Estado, seja ele qual for, não poderá ser livre nem popular.

Lenin, 1917

Há muito peso na luz que emana do trabalho nas palavras. Precisamos arrastá-lo se quisermos nos movimentar em um campo político: uma vida, uma língua…

Um peso não é um custo: atravessa e se faz necessário. Não pode, contudo, ser um crivo, um critério final. Há mortes sendo arrastadas pelas línguas em seus significados.

A demarcação de um território político, ao pretender-se realista e prática, torna-se, contraditoriamente, viciada no emprego metafísico das palavras. Legalidade, democracia, liberdade: conceitos abstratos para os quais não encontramos acontecimentos. Devolver a política à vida passa por uma torção de supostas fronteiras a separar as palavras. Mesmo um significado é mais sintático do que semântico. Há guerras sendo travadas dentro de nossas bocas e entre elas. Uma linguagem: o seu uso prático define o campo de batalha político, violência perpétua.

A pergunta “ainda existe ‘esquerda’ e ‘direita’?” é estéril, esvaziada de sentido pela prática. Antes, poderíamos nos perguntar duas coisas: o que fazem essas palavras?; e como podemos tomá-las (seize), expropriá-las?

Há um latido na língua, é preciso lembrar. Nosso modelo humano pouco se distingue, na prática, de um cão ou um pombo. Quando buscamos uma definição essencialista do Homem ou da Mulher, sob quaisquer critérios, não nos limitamos a discutir palavras, pois essas explodem, produzindo um engessamento de corpos em uma função organizada e sustentada por critérios de objetividade definidos politicamente. Porém, se lutamos para tocar os fluidos e os óleos das máquinas defeituosas, nos aproximamos do pombo e do cão e nos afastamos cada vez mais do “humano”. Essa guerra pode ser ouvida e vista nas palavras e no modo como elas delimitam nossas possibilidades de movimento e existência.

Em relação à suposta tarefa histórica de tomada dos “meios de produção”, telos de uma tradição que persiste, pode-se falar em fracassos e repetições de tentativas. Essas repetições incessantes geraram um sentido para certos formatos de luta política, um sentido inevitavelmente ligado à ideia de futuro — e o futuro inspira cautela. O significado de certas palavras, a partir do trabalho gerado pelos seus usos em círculos intelectuais, militantes, partidários, etc., ainda tem o instante da tomada dos meios de produção como termômetro político, mesmo que de modo difuso, discreto. Tal característica, fundada em uma noção de um momento absolutamente desconhecido e inimaginável — a revolução –, concede às formas de luta política uma estabilidade sonora. As diferenças, os latidos e os ruídos são escondidos pela luz das palavras, cujo peso passa a ser usado como propriedade essencial e critério para a luta política daqueles que entendemos como “esquerda”. As consequências são o imobilismo e a busca sintomática pela derrota. A definição esquerdista da palavra “trabalhador”, por exemplo, é atropelada pelo seu uso prático. Muitas vezes o trabalhador não é definido, como se costuma crer, como aquele que trabalha, ou mesmo como aquele que sofre, mas sim como aquele que se comporta de modo previsível e pré-definido diante de certas violências estruturais. É por esse motivo que qualquer desvio em relação ao comportamento de rebanho faz com que um grupo de trabalhadores passe a ser definido por outra palavra: vagabundos, grevistas, sindicalistas, bandidos, folgados. Em qualquer situação, o significado está ligado a uma estabilidade em relação à expectativa.

Os aspectos sonoros do trabalho nas palavras são mais fugidios do que a luz. A matéria sonora guarda às palavras uma tendência ao imaterial? É importante não se esquecer da relação próxima entre trabalho e guerra; sendo assim, mesmo a luz é um pouco som e vice-versa. Há sempre a possibilidade de captura e controle dos trabalhos sonoros. Mas não deixemos que a constatação da fragilidade das fronteiras entre os significados se transforme em nova metafísica. Atenção ao uso, e este garante diferenças, mesmo mínimas, entre as palavras: luz; som; trabalho; guerra.

Nas manifestações de 2013, assistiu-se, como de costume, à criação de fronteiras estáveis na linguagem: os vândalos são uns, os pacíficos são outros.

Nem a linguagem cria vidas, nem uma vida antecede uma linguagem: é impossível dizer se a denominação antecede a prática ou vice-versa. De todo modo, observávamos, em 2013, práticas conectadas às palavras “pacífico” e “vândalo”, e todos compreendiam o que alguém queria dizer com essas palavras naquele contexto. Lembro agora, contudo, do que na época era óbvio: a fragilidade das fronteiras e dos acordos de significado, algo que se fazia evidente nas discussões inflamadas e confusas travadas entre os protestos. “Esquerda” e “direita” são também significados sob expectativas violentas.

Três anos e meio depois, ansiosos pela causalidade e insistindo no vício das explicações, ficamos só com a luz, traídos pela fantasmagoria do som. Aceitamos a estabilidade musical, garantindo passividade às estruturas de sentido da nossa luta política; engolimos as narrativas civilizatórias; deixamos a opressão das opiniões ou das objetividades esconder a guerra instável no coração do trabalho sintático e semântico; esquecemos as passagens de ônibus, o fogo no clube militar, o sete de setembro, o leblon destruído três dias depois do assassinato de amarildo, o choro dos idiotas pelos manequins e a greve dos professores de outubro na qual o trabalho nas palavras “vândalos” e “pacíficos” configuraram-se de modo a criar uma intensa zona de indiscernibilidade entre si. Deixamos nossa memória ser engolida pela linearidade causal daqueles que enxergam na elite política uma superestimada capacidade de mobilização, quando sua força vem, na verdade, da ação de captura de invenções, de imobilização e de controle das ressonâncias em direção a um centro, o Estado. A frase “quais as consequências de 2013 para a esquerda?”, se ligada exclusivamente à pobreza do campo institucional, é absolutamente vazia e ostenta uma mediocridade perceptiva. Passamos a ser pautados pelo medo, arrependidos de qualquer ação ativa, criadora de vidas e destruidora de mundos. Aceitamos, com isso, atrelar nossa ação política à reatividade, à condição de humanos democratas, animais domésticos de rebanho que participam do bom debate saudável, seja lá o que vocês querem dizer com isso. Trata-se de uma intensa violência sobre o trabalho de uma língua, silenciando sua guerra e criando um simulacro de estabilidade sob o manto da “democracia”. Alguns recusaram de imediato os critérios verticais do “bom debate” político à época de seu surgimento, torcendo as palavras de modo imprevisível e perigoso, sendo por isso condenados à perversão, à psicose e ao confinamento. Sem ouvir os loucos, é impossível incendiar as palavras e a política. Gilson, que lutou contra os manicômios nos anos 1980, não precisa de uma tonalidade para cantar, mas é ridicularizado pelos músicos por não defender suas escolhas estéticas a partir dos critérios de objetividade esperados.

Leblon, Rio de Janeiro. 18 de jul. de 2013. “Nunca vi maldade tão grande”, afirmou Eduardo Ballesteros, proprietário da rede Toulon. Rony Meisler, dono da marca Reserva, liderou uma campanha via redes sociais para ajudar a Toulon.

Se passamos por um golpe político em 2016 e queremos falar-agir sobre ele, pouco importa o significado metafísico da “legalidade” ou da “democracia”. Essas palavras estão entre as mais traiçoeiras que podemos encontrar em qualquer boca, justamente por jamais cumprirem as promessas luminosas que arrastam. Ao mesmo tempo, essa característica fugidia denuncia um intenso trabalho sonoro do qual precisamos nos apropriar. O que fazem essas palavras?; como tomá-las de modo oportunista?

Para construir a memória de 2013 e agir com ela é preciso escutar o trabalho sonoro da nossa sintaxe política, a indisciplina do fogo, os vidros quebrados, as gargantas rasgadas pelos gritos de euforia, mas também de ódio, essa arma que nos foi tomada — nunca destruída — pelas luzes da democracia. Espero, assim, que possamos afastar definitivamente qualquer resquício de culpa que os inimigos tentam nos imputar em relação aos nossos atos de criação. Essa é a condição básica para a nossa vitória: a tomada dos meios de produção semântica através do trabalho sintático dos sons e a consequente destruição dos códigos que sustentam nossa inércia vital.

Mas quem somos “nós”?

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