“Boca de Loba” (2018), de Bárbara Cabeça

Anotações sobre a imaginação

Revista Beira
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5 min readOct 17, 2018

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Por Duda Kuhnert

Boca de Loba inaugurou a Mostra Competitiva do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Ali naquela tela monumental, corpos femininos correm por uma cidade distópica e deserta, se unem no subterrâneo para cuidar umas das outras e saem de lá para resistir e enfrentar um mal comum e anônimo. Dirigido por Bárbara Cabeça, majoritariamente executado por mulheres em diversas funções, o curta parece dar o tom do que seria uma preocupação da curadoria da mostra: a busca por uma igualdade de gênero no cinema. Ainda assim, ao mesmo tempo em que nos emocionamos e vibramos com cada prêmio que fora entregue a uma mulher, não deixamos de nos surpreender com a esmagadora maioria de homens que ocupa aquelas poltronas do cinema destinadas aos profissionais de imprensa. Infelizmente os números endossam o que poderia ser apenas uma impressão: entre os cem associados da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) apenas 21 são mulheres¹. Imediatamente surgem as perguntas: será que o patriarcado e o seu falar-verdadeiro masculino tem parentesco com a pretensa — e ilusória — avaliação objetiva da arte? Ou melhor, em que momento os modos de dizer que partem das mulheres potencializam uma escrita crítica em proximidade máxima com as obras, o que poderia ser compreendido como um produzir junto? Como se utilizar de uma condição de fragilidade que nos é dada como estratégia para construir e reconstruir a experiência fílmica a partir de um discurso mais errante, que foge das certezas incontestáveis e fortalece os comentários que permitem rasuras e hesitações tão benéficos para a produção de pensamento? São questões sobre as formas de dizer e fazer que são, elas mesmas, questões políticas. A inventividade estética de Boca de Loba encoraja a pensar em algumas possíveis respostas para tais perguntas.

Sentimos o peso do perigo logo de início. Um grupo de mulheres ocupa as ruas vazias de uma cidade distópica como se estivessem lutando ativamente pela própria vida — de uma e de todas ao mesmo tempo. Existe um inimigo velado nessa cidade. Não vemos, não nomeamos, não encontramos, mas sabemos que ele orienta um certo projeto de mundo. Em meio a essa busca incessante, enquanto ainda não é possível olhar nos olhos dele, uma guerreira destrói os seus símbolos. O torso de um homem engravatado foi eternizado na pedra do monumento e embaixo dele um outro homem o sustenta. Mas ela o degola. O patriarcado produz homenagens que parecem já nascer mortas e Boca de Loba desordena esse estável obituário. Afinal, a luta das mulheres faz uso de uma imaginação visionária que inventa múltiplas formas de atuação.

Jota Mombaça, escritorx e performer não-binária, diz que o poder opera por ficções². Na fantasiosa configuração do patriarcado, a simples existência desses monumentos-personagens aparece como evidência da violência que marca esse regime de poder. Não à toa seus espaços na cidade devem ser disputados. Boca de Loba os coloca à prova a todo momento: a câmera parece denunciar a presença hostil desses inúmeros signos que nos rodeiam. Não somente as estátuas masculinas erguidas em enormes pedestais, as quais nos esforçamos imensamente para ver a partir do chão, mas também a sinalização das ruas que carrega o nome de homens notáveis. Torna-se urgente propor uma aproximação aqui: há algumas semanas deputados recém eleitos pelo Partido Social Liberal quebraram a placa de rua que homenageava Marielle Franco, vereadora carioca brutalmente assassinada em março desse ano, um crime político ainda não solucionado pelas investigações³. O episódio nos recorda do risco que corremos de perder territórios já conquistados: dias após o assassinato, a placa com a indicação “Rua Marielle Franco” foi colocada sobre a da Praça Floriano, nome oficial da Cinelândia, onde fica a Câmara dos Vereadores no Rio de Janeiro. Ao reivindicar tais territórios, as mulheres rearticulam os elementos ficcionais do patriarcado de forma a liberá-los de um certo domínio totalizante, ainda que seja um conflito que trabalha com forças que parecem impenetráveis, afinal “(…) não tem nada a ver com declarar uma guerra. Trata-se de afiar a lâmina para habitar uma guerra que foi declarada à nossa revelia.”⁴.

Boca de Loba é um filme sobre a experiência de viver na cidade habitando um corpo feminino. A fabulação surge como estratégia para pensar o assédio expandindo os limites do real. Dessa forma, Boca se aproxima de um movimento contemporâneo do cinema brasileiro que busca produzir versões alternativas de mundo como forma de encontrar um outro modo de vida, muito inserido num contexto de enfraquecimento da confiança no futuro. Recorro mais uma vez à Jota Mombaça: “O poder insuspeitado das ficções é o de ser cimento do mundo, porque, como propõem pensar as co-editoras do livro Octavia’s Brood, Walidah Imarisha e Adrienne Maree Brown, ‘não podemos construir o que não podemos imaginar’, de modo que tudo que está construído precisou, antes, ser imaginado.”⁵. A elaboração estética que aparece em elementos como figurino, direção de arte e cenografia do filme nos leva para uma temporalidade irreconhecível e dissonante, em um espaço estranho, ainda que familiar. Como um exercício de resistência fruto de uma imaginação distópica, que aparece mesmo quando a imaginação não é mais possível. A heterotopia fílmica que envolve a atmosfera de Boca de Loba afirma o poder das ficções na mesma medida em que desmonta a ficção do poder patriarcal.

“Boca de Loba” (2018)

Ainda que pese a atribuição misógina de valor universal à cultura masculina, é impossível não notar em Boca de Loba as nuances e particularidades que carregam os modos de fazer feminino. Elas estão nas marcas estéticas que destroem o olhar voyeurista masculino, aquele que a teórica e cineasta britânica Laura Mulvey se dedicou a analisar e que está em ameaça na fotografia assinada por Irene Bandeira no filme aqui em questão. Mulvey afirma a potência do golpe nas formas clássicas de fazer cinema que perturba o jogo de olhares produzido para o prazer masculino, cuja destruição se torna uma arma política. Boca de Loba desafia esse contrato tácito entre imagem e espectador que compreende o homem como “o dono do olhar”⁶. A mesma cumplicidade que vemos em cena, no cuidado que marca a relação das lobas no subterrâneo dessa cidade fantasma, encontramos também nos afetos que envolvem outras formas de olhar tais imagens. Algo que se aproxima de uma aliança feminina que denuncia a misoginia nossa de cada dia.

1. Disponível em: https://abraccine.org/about/

2. MOMBAÇA, Jota.“Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!”. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi

3. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,candidatos-do-psl-destroem-placa-com-homenagem-a-marielle-franco,70002531740

4. MOMBAÇA, Jota.“Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!”. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi

5. Op. cit

6. MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”. in XAVIER, Ismail. “A experiência do cinema”. Editora Paz e Terra. 2018

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