“Sonho de deriva”, vídeo instalação de Gabriel Mascaro (2013).

Breves notas sociológicas sobre sono e trabalho

Revista Beira
Revista Beira

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Por Gabriel Gorini

As presentes notas são os primeiros passos de uma investigação ainda em curso.

I.

João Cabral de Melo Neto, o poeta, em uma conferência que deu ainda jovem, especula sobre a importância do sono para a poesia. Intitulada “Considerações sobre o poeta dormindo”, a “tese”, como o próprio chamava, mais por força do momento (era um congresso de Poesia em Recife) do que por rigor da fala, procurava afirmar o sono como fonte da poesia — não o sono como apenas trampolim para o sonho, mas o sono enquanto tal, “um poço em que mergulhamos, em que estamos ausentes.”

II. O sono

A sociologia costuma dizer que o sono se dá no sentido de uma não-consciência, uma não-ação, uma não-experiência. Em outras palavras, um momento em que, de alguma forma, estamos fora do mundo. Tal o sentido da “ausência”, de que fala João Cabral. Mas como é uma não-experiência, se dormimos? De maneira usual, associamos a experiência a uma determinada presença da consciência. “Consciência” é associada a estar de olhos abertos e perceber o que se passa. Mais do que isso, é tida como uma espécie de percepção da percepção. Contudo, associamos a percepção a uma atividade intencional e que se dá, principalmente, através da lembrança. Tal atividade, para nós, está completamente associada à visão — o que faz com que não reparemos com a mesma intensidade os outros sentidos. Assim, por exemplo, quando vejo o mar como o percebo? Perceber é se voltar atentamente a isto que é o mar suas ondas, como se formam, como a água sobe na areia, quais são as cores da água, o efeito do vento sobre a superfície da água. Porém, ter consciência de que percebemos é perceber a nossa própria percepção do mar.

Quando durmo, não sei exatamente em que momento o faço. Me preparo para dormir: deito na cama, às vezes tomo um banho antes de deitar, coloco uma roupa confortável ou deito sem roupa nenhuma. Contudo, apenas isto não me faz dormir. O sono não é, na maior parte das vezes, um ato de consciência deliberado. Não é a partir da vontade de dormir que se dorme. Primeiro de tudo é preciso estar com sono, e o sono é uma condição corporal que nos mostra o desgaste: a cabeça cansada, as pernas pesadas. Deitamos e fechamos os olhos, às vezes respiramos um pouco mais devagar, mas não sabemos exatamente em que momento dormimos. Não sabemos em que momento ultrapassamos esse limite, essa linha diferenciadora de estados. Se falo do sono, é porque falo acordado, já saído desse estado. Apesar disso, nós lembramos, de alguma forma lembramos. Sabemos se dormimos bem ou se dormimos mal, sabemos não porque temos a memória consciente, a imagem da lembrança, a percepção visual de que percebemos, sabemos porque, de alguma forma, sentimos os efeitos: talvez uma falta de disposição, o corpo ainda um pouco estranho, a dificuldade de concentração. Que tipo de memória é essa que eu não sei exatamente o que é, mas posso saber como foi por conta da minha experiência posterior, uma lembrança que se abate sobre nós não a partir de um esforço de lembrar, mas como algo que não pode e pode ser lembrado ao mesmo tempo. Quando dormimos mal, sabemos que dormimos porque o nosso estado nos diz, ou seja, sabemos através das consequências da experiência. Ao mesmo tempo, dormir é uma atividade necessária e incontornável. Ela pertence a essas atividades que são comuns a todos os seres humanos (e não só aos seres humanos), independente de gênero, classe ou qualquer outra categoria sociológica. Sentir sono é, por um lado, da mesma ordem de sentir fome, ou sentir vontade de cagar ou mijar. Ou seja, é um imperativo do corpo. Por outro lado, o dormir se diferencia porque não é algo que colocamos ou expelimos do corpo, é um ato do corpo para o próprio corpo, com o próprio corpo.

III. O trabalho

“O rico acorda tarde, já começa resmungar
O pobre acorda cedo, já começa trabalhar”

O trabalho, no Brasil, está associado historicamente a um problema político e estrutural: a escravidão. Quando falamos em trabalho numa sociedade como a brasileira, forjada a partir do trabalho escravizado, o que falamos? Num primeiro momento, o trabalho aparece associado à exploração do trabalho alienado, como a exploração de uma mão-de-obra desumanizada, e por isso tratada como apenas e somente meio de produção. Assim, o trabalho ficou associado a uma determinada posição social — as classes mais altas não trabalham, a aristocracia não trabalha. Porém, aqui não estamos falando do “trabalho” no sentido geral, mas de um tipo de trabalho específico, a saber, o trabalho alienado. O trabalho que não tem resultado para o trabalhador, que é excluído de sua obra, o resultado de seu esforço. Talvez contra essa noção de trabalho tenha surgido a palavra de ordem “o trabalho é a essência do homem porra nenhuma”.

A partir de uma certa tradição de pensamento, o que essa palavra de ordem confunde é o trabalho com o trabalho alienado. O trabalho é postulado como essência do “homem” porque é um determinado tipo de relação entre natureza e espírito. É nesse processo dialético que o trabalho transforma a natureza em cultura. Assim, o que o postulado sobre o trabalho nos diz é que ele é a essência do “homem” porque é a relação fundamental do “homem” com a natureza. Isto é, é a partir do trabalho que conseguimos viver.

Dessa maneira, chegamos a um outro nível sobre o significado do trabalho: o modo de relação específico do ser humano com a natureza. É através do trabalho que nós nos tornamos capazes de produzir nossas condições de vida, e é o que nos distingue do resto dos animais. Contudo, apesar do trabalho ser um modo de relacionamento crucial para o ser humano, ele não constitui uma atividade imanente. Nós não nascemos com o trabalho, mas ele se apresenta a nós como condição para a nossa sobrevivência, talvez uma espécie de mediador da relação que nós possuímos com a natureza.. É o que nos avisa Carneiro Leão:

“O homem não vive para trabalhar. Trabalha para viver. Na prática da vida, o trabalho — tripalium — não é uma atividade imanente, a saber, uma atividade, em que o homem se dirigisse para dentro e cuidasse de si mesmo. Diretamente, o trabalho se dirige para fora. É uma atividade transiente, que só por repercussão atinge o próprio homem.”

IV. A cidade

Na metrópole contemporânea, lugar próprio dos indivíduos modernos, é criado um ambiente de autorreflexividade. Na cidade que nunca dorme é propagada a ilusão do eterno dia, por isso somos incapazes de ver as estrelas: elas já não existem nas ilhas de luz elétrica e calor que nos rodeiam. Dormir não é permitido porque é desperdício de tempo, é o não aproveitamento da vida. Do “aproveitamento da vida” surge a maximização do lucro em todos os níveis de relações humanas e, como a acumulação indefinida é o norte, é preciso produzir. O sono se torna um empecilho para a produção. Assim, a batalha contra o sono é a batalha contra a morte, contra a finitude, contra o misterioso e o desconhecido, pela produção e expansão do domínio, pela autonomização da consciência. Pelo proveito máximo, maximizado. O sono aparece aí como o indesejado, o que impede que a vida aconteça.

Contudo, no capitalismo, é necessário comprar a vida. Por isso noções como “qualidade de vida” — o parâmetro para a boa vida, relacionado principalmente ao modo de vida urbano. “Qualidade de vida” é um produto que se compra e, por isso, é distribuído desigualmente na sociedade. O sono faz parte desse pacote. Aquele que tem mais possibilidade de dormir é também aquele que tem uma posição mais estável na estrutura social — aquele que compra tempo é também o que possui uma maior “segurança de vida”. Por outro lado, em consequência das diversas questões associadas ao hiperestímulo das cidades, as doenças da vida urbana, dormir se tornou uma batalha: dos remédios alopatas às terapias orientais, todos buscam o sono perfeito na direção da produção perfeita. Medimos os horários e quantificamos as horas de sono para, quem sabe, conseguirmos controlar um pouco mais a natureza.

V. O próximo passo

Entre o sono e o sonho

Fernando Pessoa

Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre —

Esse rio sem fim.

“Sonho de deriva”, vídeo instalação de Gabriel Mascaro (2013).

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