Still do Filme “El Meraya” (2018)

Conversa com Coletivo Distruktur

Revista Beira
Revista Beira

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Por Bárbara Bergamaschi

No terraço onde o cineasta Glauber Rocha filmou a célebre cena de “Terra em Transe”, um grupo de alunos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage filmava o verde das montanhas do maciço da Tijuca através das lentes de uma câmera da U.R.S.S.. Como explicar o uso de uma câmera obsoleta do período da Guerra Fria em pleno calor tropical carioca?

Registro da Oficina “Subversões Fotoquímicas” (2018). Fotografias de Gustavo Jahn e Melissa Dullius.

O exercício com a película em 16mm, fez parte do curso de férias “Subversões Fotoquímicas”, realizado pela dupla Melissa Dullius e Gustavo Jahn, fundadores do Coletivo Distruktur (https://distruktur.com/). Por conta de minha pesquisa de doutorado me inscrevi no curso onde pude acompanhar de perto o processo de produção, filmagem, revelação em laboratório dos filmes artesanais da dupla de artistas. A partir deste primeiro encontro a dupla aceitou conceder uma entrevista inédita para a Revista Beira.

Naturais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, hoje residentes do velho continente há 13 anos, Melissa Dullius e Gustavo Jahn contam com mais de 10 filmes em sua filmografia, realizados exclusivamente com tecnologias analógicas de Super 8 e 16mm. A dupla começou a fazer filmes em Porto Alegre no ano 2000, mudou-se para Berlim em 2006 e juntou-se ao grupo fundador do coletivo LaborBerlin, quando passou a incorporar práticas experimentais de filmagem e revelação ao seu processo criativo. Além de conceber e produzir filmes, trabalham também como atores, músicos e técnicos de laboratório de cinema, realizando grande parte da pós-produção de suas obras. Seus trabalhos tomam forma no gênero que conceitua-se como cinema expandido, sendo não apenas exibidos de forma tradicional nas salas de cinema de festivais do mundo todo, mas também como instalações, filmes performance, fotografias, textos e materiais gráficos.

O filme que ganhou maior projeção e distribuição nas salas de exibição comercial no Brasil foi o longa-metragem Muito Romântico (2016), selecionado para festivais como Forum Expanded da Berlinale, Festival de Turim, Semana dos Realizadores, entre outros. A partir de Muito Romântico o público das salas de cinema teve contato com o trabalho experimental da dupla que mora em Berlim desde 2006. Distruktur foi homenageado recentemente na Mostra do Filme Livre de 2019, tendo quatro dos seus filmes exibidos pelo festival sediado no CCBB do Rio de Janeiro. A presença cada vez maior do coletivo nas salas de cinema e festivais, demonstra que sua produção tem chamado atenção de críticos e pesquisadores.

Boa viagem à todos!

Catete, Rio de Janeiro, Verão de 2018

Bárbara: Uma característica marcante do longa-metragem Muito Romântico (2016) é o trabalho de vocês como um coletivo. Vocês se colocam no filme como personagens de si mesmos, em uma auto ficcionalização do casal. Vejo no filme tanto a noção romântica, no senso comum, atrelada ao amor, quanto ao movimento do Romantismo Alemão. Por exemplo, há no filme uma clara referência ao Der Blauer Reiter, uma das correntes do Expressionismo Alemão nas artes plásticas, que sabemos que foi influenciado em parte pelo Romantismo. Além disso o filme é muito colorido, tem uma relação forte com as cores que não são, de modo algum, figurativas.

Vemos também muitas paisagens no filme Muito Romântico. Por exemplo, as obras de construção civil em contraposição às paisagens da natureza, as imagens do mar e do pôr do sol. O filme também me parece marcado por essa divisão do urbano e do natural, essa ideia de fugere urbem e da prosopopéia — quando os sentimentos e figura humana se confundem com a natureza — uma figura de linguagem muito utilizada na literatura romântica. Gostaria de entender esse lado romântico que o trabalho carrega e qual é a relação de vocês com o Romantismo, seja como uma referência direta ou indireta?

“Rotes und blaues Pferd” (1912) de Franz Marc.

Melissa: Começamos a fazer esse filme em um navio, mas achamos que o filme deveria continuar quando chegamos em Berlim, que ele não terminava com o desembarque. Então criamos os dois personagens, Ruby Red e Blauer Reiter. Esse casal era como os nossos alter-egos, um pouco heróicos, que tinham pequenas aventuras. Ele tinha uma bicicleta azul e aquelas imagens são da nossa primeira casa em Berlim. Eu acho que a gente cita o Romantismo de uma maneira múltipla. Após uma sessão do filme na Rússia, uma pessoa falou que o filme não era Romântico, no sentido do movimento artístico, e sim muito Simbolista. Outra pessoa, como você, vai dizer que talvez ele seja mais Expressionista. Usamos essas referências de uma maneira não irresponsável, mas bem ampla. Isso porque o Romantismo no Brasil, por exemplo, acontece no mesmo período, no século XIX, mas tem uma outra cara, muda de acordo com cada cultura. Então, acho que o filme seria romântico em um sentido bem amplo. Tem gente que entende o fato de usarmos película como algo romântico, uma mídia de outra época, uma coisa atemporal.

Still do Filme “Muito Romântico” (2016)

Bárbara: Sim. Muito Romântico (2016) começa com uma poesia que vejo quase como uma metáfora para o filme todo, como se sintetizasse toda a narrativa ali. Acho muito bonito o verso: “guardar na memória uma imagem de tudo o que viu”. Outro verso que é dito em off no filme me chamou atenção foi: “Ondas, espumas, consistentes, vistosas e vítreas de pele rígida”. A imagem da pele me remeteu à ideia da película também por ela ser uma espécie de pele: a “pele” da imagem.

Melissa: Você falou que a gente se coloca nos filmes como casal, mas creio que como dupla ou como duplos. Como um casal mesmo, em um sentido romântico, é só nesse filme.

Gustavo: Essa frase que leio no filme — “É preciso aceitar que o romantismo acabou” — vem do livro Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, mas não tem nada a ver com o Romantismo. Ele usa de uma maneira quase irônica. O filme tem um pouco dessa ironia, porque quando se fala do romantismo se associa a movimentos e à ideia de um amor romântico do casal, que é isso o que Melissa falou. Muitas pessoas assistem o filme para ver isso, mas não encontram e ficam um pouco decepcionadas, às vezes de uma maneira boa, como uma surpresa. Já outras pessoas defendem que esse amor romântico está lá.

B: Mas não é aquele romantismo estereotipado, de novela, melodramático.

G: Mas está lá. A história é a seguinte: em 2014, quando filmamos a parte ficcional, que é o momento em que o filme se encerra, estávamos começando a escrever cenas para o roteiro de um outro filme que envolvia um coro e vários personagens. Esse coro estava ensaiando uma música do Caetano Veloso. A gente se deu conta que estava começando a escrever um outro filme, então guardamos e separamos aquilo para ser usado posteriormente. O que guardamos dessa experiência foi o título ("Muito Romântico "), então foi algo que veio pela tangente, não foi nem com a intenção de fazer uma crítica ou uma ironia, mas porque o roteiro estava indo nessa direção mesmo. Começamos a nos dar conta que justamente essa ironia era interessante para o filme. A própria atitude que temos no nosso trabalho de misturar arte e vida, cinema e vida, é uma atitude romântica. Normalmente você faz um projeto, filma e depois vive, né? Não temos muito essa divisão. Estamos sempre com a câmera, que está sempre com filmes, filmando alguma coisa que vai entrar em algum lugar. Ou seja, essa tensão constante já estava ali bem presente. O Muito Romântico fala também disso, que é algo também um pouco dolorido.

B: Mas essa mistura de arte e vida é justamente uma utopia romântica, (principalmente no 1o Romantismo Alemão de Jena), como por exemplo a proposta de criação e autoria coletiva do poeta Friedrich Schlegel,né?

G: Sim, é uma espécie de utopia.

M: Eu diria talvez mais um idealismo do que uma utopia. E sobre o poema que você cita, ele não é nosso. Os filme tem diversas citações. Aquele poema é de uma autora, Marie Luise Kaschnitz(1), que viveu no auge do século XX e escreveu de tudo. Quase nada é traduzido para o português, apenas dois contos. No momento, temos um projeto baseado na literatura dela, não bem na vida mas no universo dos seus personagens literários. E ela escreve aquele poema em um navio vindo da Alemanha para o Brasil. Ela vai para Salvador, mas ela nem chega lá, no livro ela fica nesse entre-lugar, entre a terra e o mar.

B: Onde e em qual contexto foram feitas as cenas filmadas no mar, no navio de carga, de Muito Romântico?

M: Somos nós indo para Alemanha.

G: Nos mudamos para Berlim no final de 2006 e fizemos a mudança em um navio cargueiro. Embarcamos em Rio Grande do Sul e viajamos durante vinte e dois dias: sete na costa brasileira, oito cruzando o Atlântico e mais sete no Canal da Mancha até Hamburgo. Depois desembarcamos e fomos para Berlim. Ali começa o Muito Romântico. Justamente onde começa a nossa transição para a vida nova na Alemanha. Ali também começa nossa dupla, até então trabalhávamos juntos mas nos dividíamos em funções. São vários começos que acontecem ali, o de Muito Romântico também. Quando chegamos em Berlim, fomos filmando aos poucos até o filme tomar forma.

B: Pensei que a citação da poeta poderia se referir à questão da imigração dos europeus para o Brasil, até mesmo dos escravizados, essa questão do “desterro” que a história do Brasil carrega.

G: Sobre o poema que a aparece noMuito Romântico, queríamos muito colocá-lo no filme principalmente quando descobrimos também que a autora, Marie Luise Kaschnitz, o escreveu em uma viagem reversa, quando vinha para o Brasil. Tentamos usar as palavras escritas sobre as imagens, mas não funcionava bem. Mas achávamos que se usássemos o poema, teria que entrar na sua integridade! Não podíamos mudar, porque é como um corpo, né? E um dos últimos decisões da montagem foi jogá-lo para o começo, justamente com essa ideia que tu falou, que ali o filme está inteiro. Um prólogo como uma síntese do todo, afinal é um filme que depois vai para o buraco negro, para um lugar mais cósmico. Esse movimento de ir cada vez mais para as estrelas também está no poema. Kaschnitz começa no mar, nos peixes e depois vai subindo, subindo, subindo, até parar nas estrelas.

B: Para mim esse poema tem muita relação com o El Meraya (2018) e também com o filme A Nostalgia da Luz, do Patricio Guzmán. Ele faz uma metáfora parecida entre as estrelas e o cinema. As estrelas são uma luz que vem de um tempo-outro que já se passou. Ou seja, é o passado que chega na Terra, o que segue a mesma lógica das imagens já que quando as olhamos para uma imagem estamos diante de um tempo que já passou. Então há sempre um certo paradoxo temporal, né? O El Meraya traz ainda outra camada, justamente pelo fato de vocês usarem uma câmera de filmar antiga com uma textura de película analógica, uma estética que parece do passado, mas que é produzida no presente. Então surge uma certa aporia, um nó, fulcro de tempos, como se o próprio filme fosse uma estrela que está chegando de um outro tempo. Há também a metáfora da viagem da luz, uma luz que caminha: vocês como viajantes do tempo que estão imigrando para a Alemanha e seguem em trânsito. Vejo bastante a idéia de trânsito nos filmes de vocês. Em El Meraya, o filósofo Heráclito é citado ao dizer que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. A água é também muito presente nos filmes de vocês. Assim como as imagens, a água conecta e separa as pessoas. Vocês estão sempre em um certo caminhar, em um ato de deslocamento, mutação, de passagem, enfim de fluxo.

Still do Filme “Éternau” (2016)

G: Um labirinto, às vezes.

B: Sim! Vocês acham que o fato de terem sido imigrantes por tantos anos contribuiu para constituir uma sensibilidade para pensar filmes que são marginais? De alguma forma, essa condição criou um modo de pensar e fazer cinema de forma mais coletiva e artesanal? Como uma prática que seria também resultado desse lugar da alteridade, de estar no lugar do “outro”.

G: Tínhamos uma ideia bem romântica e utópica, um pouco fantasiosa até, quando fomos para Alemanha. Estávamos começando nossa prática artística e lembro que lemos em algum lugar sobre os poetas japoneses (2) que, aparentemente, mudavam de cidade a cada cinco anos. Assim mudavam de nome também para se renovar e continuar com esse olhar e com esse frescor, um desamparo mesmo de estar no estrangeiro. Eles criavam essas situações para se reinventarem. Ou seja, quando fomos para lá, apesar de estarmos começando ainda, já tínhamos essa ideia de que o meio iria influenciar muito como iríamos viver. O deslocamento da língua, do espaço, da comida, da cultura causa uma estranheza, uma falta de chão, uma insegurança que pode ser muito fértil para criar, justamente por nunca apreendermos as coisas completamente. Estamos sempre tentando aprender.

G: Gostaria de fazer um parêntesis: a ideia de Muito Romântico era criar um sistema e filmar dentro dele, que era justamente o apartamento. A vida está passando dentro daquele quarto de dormir e tu, enquanto espectador, não consegue apreender completamente o que ocorre, porque não é possível ver a situação que eles acabaram de viver. Ela está refletida ali dentro, eles estão projetando dentro do quarto uma situação que vai acontecer, eles estão falando sobre ela, mas tudo é tratado ubiquamente. A experiência de ser estrangeiro é um pouco isso. Tu botas os pés no chão e encontra algum tipo de firmeza para fazer as coisas que tem que ser feitas. No nosso caso, fazer cinema, fazer arte. Então isso é um pouco consciente. Fomos pouco a pouco criando essa situação de deslocamento permanente. Começamos a viajar bastante. O primeiro filme que fizemos foi no Egito, se chama o Triangulum (2008), antes do El Meraya. Fomos para Rússia, Lituânia e muitas vezes voltamos para o Brasil, fazendo coisas aqui, colaborando com outras pessoas. Trabalhamos no Animal político (2016) Os residentes (2010) , O som ao redor (2012).

M: Começamos o nosso modo de trabalhar no Brasil, não mudamos tanto de lá para cá. Até esperávamos que as coisas seriam diferentes. Não queria usar essa palavra, mas que trabalharíamos de um modo mais “profissional”. Mas nós somos os produtores dos nossos próprios filmes, que são autofinanciados majoritariamente. Ou seja, não temos nenhuma instância de controle acima de nós. No máximo, temos algumas parcerias que estão no mesmo nível de produção. Há muitas trocas simbólicas, muitas responsabilidades mútuas. Até hoje, o No Coração do Viajante (2013) foi nosso único filme comissionado, para uma galeria. Não precisamos apresentar um roteiro ou algo assim, mas tínhamos um prazo bem definido e isso nos levou a trabalhar de um modo em que ele foi filmado já quase montado. Mas a verdade é que nossos filmes acontecem muito no momento da montagem. Por isso que eles têm esse caráter de quebra-cabeça mesmo, podem levar muito tempo para ficarem prontos. No caso do Muito Romântico e do El Meraya, ambos levaram anos para serem montados.

Still do Filme “No Coração do Viajante” (2013)

G: Começamos a fazer Super 8 em um coletivo em Porto Alegre. Cada um fazia seu filme e os outros ajudavam em diferentes funções, alguns tinham funções fixas. Todo mundo continuou, alguns migraram para as artes e eu e Melissa ficamos mais com os pés no cinema. Então, começamos usando película para filmar e isso foi se intensificando. Posteriormente, fizemos outro coletivo em Porto Alegre, com quem produzimos o Éternau (2006). Já em Berlim, em 2007, encontramos um grupo que estava começando o LaborBerlin e nos juntamos a eles. E isso permitiu, ao longo do tempo, que começássemos a revelar, copiar e entender toda a produção como uma coisa que poderíamos fazer com as próprias mãos. O crédito disso tem que ir para Berlim. Nós viemos de uma prática de trabalhar em coletivo e Berlim é uma cidade onde isso floresce muito. Há muitos coletivos, é uma característica da cidade. Talvez em outra cidade a gente teria tomado outro caminho, apesar de já termos essa verve. Em Berlim realmente encontramos muitas outras pessoas que trabalham assim, um trabalho baseado na troca. É uma cidade muito boa para experimentar artisticamente porque tu consegue acessar os meios de produção, é relativamente simples. Existe também muito lugar para exibir, então facilmente você consegue mostrar seu trabalho, e há muito público.

G: Exagerando um pouco: o underground em Berlim é o mainstream. A lógica é invertida, não tem muita coisa grande, tudo é pequeno. Isso está mudando com o tempo, com a gentrificação, mas é a natureza da cidade. Então, a questão não é só ser estrangeiro, voltando para sua pergunta de uma maneira mais precisa, mas ser estrangeiro em Berlim, uma cidade que tem essas características peculiares.

B: Vocês veem isso como uma posição política, de resistência a um certo tipo de cinema, um cinema contra hegemônico?

M: Sim. Não sabemos até que ponto isso é uma escolha ou se é o jeito que somos e fazemos as coisas. Não houve um momento em que escolhemos dizer não ao mainstream e ser underground. Não sei se é uma escolha. Poderia ser simples também, separar a arte e a vida, seria mais tranquilo talvez. Tivemos uma conversa publicada na Revista Cinética, em que discutimos que a palavra experimental funciona também de maneira muito ampla. É possível pensar o experimental como um gênero, no caso da Europa e dos Estados Unidos, e a versão brasileira pode se chamar cinema de invenção ou údigrudi.

B: Do Jairo Ferreira.

M: Ele cunhou assim, mas o Júlio Bressane fala que o cinema brasileiro será experimental ou não será.

G: Údigrudi é o termo pejorativo que o Glauber Rocha cunhou para destratar o underground.

M: Mas destratava amando, né?

G: Com certeza. Ele faz o Câncer (1972) justamente a mesma coisa que os adeptos do údigrudi estavam fazendo.

M: Nós nem sabíamos o que era o experimental exatamente. Começamos fazendo no Brasil, em película, entre amigos e aquilo já era experimental.

B: Por exemplo, o cinema estrutural americano é bem diferente, bem conceitual, pensa as questões dos elementos mínimos cinematográficos: o flicker, a distensão no tempo, o zoom…

M: Existem elementos no nosso trabalho que se exibidos sozinhos entram nessa pegada. Por exemplo, Muito Romântico tem aquela animação do Hermes Trismegisto e o trilho do trem. A gente gosta de se mover nessa fronteira.

B: Mas vocês não abrem mão de ter personagens.

G: Isso também nos desloca, porque o cinema experimental, pelo menos no meio em que convivemos, está muito nessa linha. Começa mais narrativo, com a Maya Deren, e vai avançando até o Estruturalismo, que marcou tudo o que veio depois. Tem o flicker, aquela voz falando com espectador em primeira pessoa, que oferece uns comandos. Claramente nosso trabalho está no meio desses dois e dialoga com isso.

B: Não é programático, no sentido de ser o mínimo estruturante, diminuindo ao máximo os elementos. Não tem um manifesto rígido, né? É um trabalho mais orgânico.

G: Começamos com um sistema, mas sempre acaba virando outra coisa. Gostamos muito da ideia de sistema. Usamos isso em Muito Romântico, simplificamos o máximo possível. Então, o filme é o navio, a cidade e o quarto. É isso que nos interessa falar: sobre os espaços. Isso abre para questões sobre obliquidade, o tempo passando e o que a gente aprende ali.

M: Existem três níveis, falamos sobre esse gráfico da montagem do filme em uma entrevista para o Senses of Cinema.

G: A cidade é o trabalho, o navio é a viagem e o quarto é a intimidade. Assim segmentamos as categorias. Depois da cidade veio o quarto e a ideia de fazer a passagem dos anos, que se daria a partir da limitação ao quarto, à intimidade do casal. Uma vez vimos o último filme daquele casal português, Margarida Cordeiro e Antônio Reis, Rosa de Areia (1989). Tem uma cena de todo mundo no quarto, deitado e o quarto ganha essa dimensão. Também pode ser o quarto do navio, eles estão sempre navegando e nunca chegaram a lugar algum. Existem essas brincadeiras e possibilidades no filme. Em 2011 fechamos esse sistema quando Melissa ganhou uma bolsa para artistas mulheres em Berlim. Ela aplicou para escrever um roteiro, escreveu 30 cenas, todas com a mesma duração, mais ou menos 2 minutos e meio, curtas, sem distinção de personagem. Eram personagens X e Y. Ou seja, já tínhamos essa ideia desde 2012, só faltava filmar o quarto.

M: Outra coisa bem marcante em Rosa de areia é uma cena em que crianças entram correndo em um observatório astronômico. Uma voz lê um trecho do Cosmos, de Carl Sagan. Usamos esse texto sem saber que era do livro, pensando que era do filme português. Isso se relaciona com a sua pergunta sobre as estrelas. Temos um filme performance e em progresso que se chama Filme de pedra. Eu brinco que quase todo mundo ama o céu e as pedras, não é uma paixão exótica porque são o infinito, o tempo infinito. Estamos olhando para o passado e para o futuro. As pedras estiveram sempre ali.

B: Isso me lembra a poesia de João Cabral de Melo Neto, especialmente do livro A Educação pela Pedra (1965)…

M: Temos uma coleção de poemas de pedras. As pedras e o céu é tudo, são como os deuses do firmamento egípcio,Geb e Nut. A mulher é o solo e o homem é o firmamento. Ou vice e versa. Essa paixão tomou ainda mais corpo quando fomos para Moscou fazer Cat Effekt (2011). A ideia de conquistar o céu ou olhar para o céu como um espelho é muito forte lá. Foi uma conquista econômica da Guerra Fria, por causa da disputa para conquistar o espaço, mas a ideia do cosmismo na Rússia é muito antiga. Então, nos apaixonamos ainda mais por essa ideia dos cosmos, de que o céu do hemisfério norte não é o céu daqui. Uma das coisas que Marie Luise Kaschnitz mais se impressiona quando está no Brasil é ver o firmamento do hemisfério sul. Ela conhece um outro firmamento.

Still do Filme “Éternau” (2006)

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, freqüentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

(João Cabral de Melo Neto)

B: Isso me remete mais uma vez ao Romantismo. Isso não seria o sublime? Algo que é belo mas que, ao mesmo tempo, também é assustador. É de uma ordem imensurável, difícil de lidar. Não é possível dar conta da grandeza daquilo…

Still do Filme “Cat Effekt” (2011)

G: Certa vez estávamos na Lituânia, um país de uma grandeza tocante, emocionante, mas também assustadora. Acho que a questão do aparato é importante também. A câmera e o projetor tem um pouco a ver com a película porque são aparatos tão sedutores quanto táteis. Tu vê o que tá acontecendo na máquina. São possíveis máquinas do tempo, funcionam assim. O passado trazido para o presente é também o cinema como profecia. Rogério Sganzerla e o Júlio Bressane falavam muito disso.

M: Profecia e enigma. Constelação e órbitas. Fizemos o filme Cat Effekt quando estávamos na Rússia encontrando pessoas e depois vendo aquelas que se mantinham atraídas, tanto nós quanto elas, como uma constelação. Antes de ser Triangulum, o filme se chamava Constelação do Triângulo e demos o nome dos personagens baseado em uma constelação de três estrelas. Logo que começamos a namorar, o Gustavo estudava filosofia e fez uma disciplina de astronomia.

G: Só um semestre para pegar umas ideias para usar poeticamente [risos].

M: Há pouco tempo li algo muito bonito de um escritor alemão que diz que o firmamento é um alfabeto. É preciso aprender a lê-lo.

B: A cena das múmias em El Meraya me remeteu a um texto seminal da teoria do cinema, do Andre Bazin, A ontologia da imagem Fotográfica, em que o autor faz uma relação entre as múmias e o cinema, entre a luta contra a morte, a técnica da mumificação e a origem da fotografia. É uma luta pela conservação da aparência, através da manutenção do corpo, como uma casca. A fotografia e, consequentemente, o cinema teriam um princípio análogo. No fundo compartilham a mesma ideia: tentar lutar contra o tempo e entrar para a posteridade através da imagem, da aparência, da semelhança.

Still do Filme “El Meraya” (2018)

M — É muito fantástico como estamos conversando com as coisas. Nesse caso, estávamos cientes de que era muito clichê e ingênuo levar a múmia ou o tapete voador para o Egito. Contudo, também era irresistível para nós, já que é essa a nossa ideia do Egito, de quem é de longe, do Sul do Brasil. Viajamos para confrontar e ver o que era a vida lá, mas resolvemos levar esses símbolos da infância mesmo. Eu anotei uma frase no Egito: men fears time but time fears the pyramids. (3) Quem não tem medo das pirâmides?

B: As pirâmides sobrevivem à tudo. Elas são muito enigmáticas. A cena do pôr do Sol em Muito Romântico me remeteu ao filme Green Ray, da Tacita Dean. Ela fala que o filme 16 mm é a única mídia que consegue filmar o raio verde do Sol ao se pôr no mar, e, por isso, ela passa um tempo filmando, pesquisando e indo atrás desse tal raio verde. Como a Tacita, vocês pensam que as câmeras em película podem captar algum tipo de atmosfera ou tem uma poesia dentro desse tipo de imagem e de textura que a gente perde com o digital? Vocês acham que o 16mm tem uma força plástica, poética?

M: Ninguém pergunta para alguém que desenha por que ela usa carvão, mas para nós, por ser uma coisa não apenas em desuso, mas em obsolescência, sempre temos que nos justificar… A película é um zumbi, um morto-vivo, foi declarada morta mas não morre. Temos um método de transpor a realidade para se tornar imagem. É a melhor ferramenta.

G: A película não é apenas sensível à luz, mas também à atmosfera local, àquilo que forma o ar que molda as formas. Cada lugar vai ter um tipo de vegetação, um tipo de fisionomia, um tipo de linguagem, no sentido de um pensamento que vai sendo moldado pela atmosfera local. A película pode capturar isso ou imprimir isso, de alguma maneira. Até indo mais longe, imprimir o magnetismo entre as pessoas. Ela é sensível e não é só à luz. Certa vez um amigo, o Andrei (Kochelov), nos falou que a película é mística.

B: No curso que deram na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, vocês falaram que a película é vegetal, mineral e também animal.

G: Ela tem uma composição muito complexa e tudo aponta um pouco para vida mineral, para coisas que são muito sensíveis, e há muitas variáveis envolvidas.

B: Por fim vou encerrar com uma pergunta meio difícil (risos): vocês consideram que a imagem pode ser associada à memória ou ao fluxo do tempo? A imagem, para vocês, é documento ou sonho?

M: Apesar de toda nossa crença no místico e no mistério do que vai acontecer quando se filma, acredito que toda imagem é documento, uma evidência. Sempre pode acontecer algo imprevisível, mas é um momento que se cristaliza. Não trabalhamos tanto sem câmera, atualmente estamos trabalhando um pouco sem ela, fazendo animação direto na película e dá pra dizer que é compor imagens de outra maneira. Mas a imagem é fluxo porque ela é sempre atualizada por quem vê. Somos muito bergsonianos!

  1. Nascida Marie Luise von Holzing-Berslett (1901–1974), foi uma escritora de contos, romancista, ensaísta e poeta alemã. É considerada uma das principais poetas alemãs do pós-guerra. Laureada com muitos prêmios, incluindo o Prêmio Georg Büchner em 1955 e o Prêmio Roswitha em 1973.Foi nomeada para o Prêmio Nobel de Literatura de 1967.
  2. O poeta japonês de Haikais, Matsuo Bashô, empreendia longas viagens solitárias para fortalecer o próprio espírito e encontrar inspiração. Um de seus livros mais celébres, “Diários de Oku” ou “Sendas de Oku”, o poeta relata a rota de 2000 quilômetros que percorreu no Japão em 1689. Segundo Bashô: “Cada dia é uma viagem, e a viagem a própria casa”.
  3. “O homem teme o tempo, mas o tempo teme as pirâmides.” Tradução nossa.

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