Delírios da (Im)potência — A Viagem de Pedro de Laís Bodanzky

Revista Beira
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4 min readOct 22, 2022

por Bárbara Bergamaschi

Mês passado, no dia da comemoração da independência, vi no Cine Brasília a estreia do novo filme de Laís Bodanzky, “A Viagem de Pedro”. Sinto que ainda é tempo de comentá-lo, pois creio que a recepção da crítica ao filme foi um tanto fria. Talvez pelo fato dos filmes do gênero biopic inspirarem certa desconfiança pelo tom oficial que podem carregar. Mas este não é o caso de “A Viagem de Pedro”. Apesar de ser um filme de época, não se trata de uma reconstituição histórica oficial, muito menos de um filme inatual.

O filme narra a volta de D. Pedro I (também conhecido em Portugal como Dom Pedro IV), em 1831, para lutar contra seu irmão Dom Miguel (Isac Graça) que pretendia usurpar o trono. Bodanzky transforma o navio da viagem em um entre-tempo, espaço imaginário onde pode elaborar um “acerto de contas” sobre as culpas da coroa, personificados na figura de um impotente imperador (encarnado por Cauã Reymond) aplacado pela sífilis que viria a interromper sua vida precocemente.

Escorraçado da terra brasilis que ama e hostilizado em sua terra natal, Pedro é um pária nos dois mundos, no novo e no antigo. O navio se torna então uma ágora para discutir as dívidas da colônia com metrópole (o clássico conflito entre “tugas” e “zucas” que perdura), o sistema escravagista e a resistência dos povos escravizados, o atávico machismo que faz usufruto dos corpos femininos (sejam eles das mulheres negras ou das mulheres brancas) e os fracassos do colonialismo, debates atemporais que resistem até os dias de hoje.

O filme é costurado por uma pluralidade de vozes, sotaques e línguas. Escutamos alemão, francês, inglês, português lusitano, o "brasileiro", assim como o crioulo da Guiné-Bissau. O filme, no entanto, é narrado prioritariamente por vozes femininas. As mulheres com quem se relacionou voltam para assombrar ou desafiar Pedro ao longo de todo a travessia, sendo elas sua primeira mulher Leopoldina (Luise Heyer), sua amante Domitila (Rita Wainer), Amélia (Victória Guerra) sua segunda mulher e a escravizada Dira (Isabél Zuaa). Bodanzsky ensaia um retorno dessas vozes silenciadas pela história com H maiúsculo e mostra, como que com efeito, são elas a possuir maior coragem para enfrentar as adversidades, se revelando personagens mais fortes que o próprio imperador.

O filme não mostra a guerra fratricida com Dom Miguel, mas termina com o monarca subindo uma enorme montanha, demonstrando que caminhada que tem pela frente ainda é longa e árdua. A cena mostra o casal imperial chegando na ilha Terceira, nos Açores, terra que foi capital portuguesa antes da reconquista do seu país pelo Porto, esta por sua vez, a cidade invicta onde Dom Pedro deixou seu coração.

A estreia estratégica do filme foi pensada para casar com as comemorações do 7 de Setembro, independência do Brasil. Naquela mesma semana o coração de Dom Pedro I/IV chegou ao Brasil, sendo recebido com honrarias de chefe de estado no Congresso em Brasília (ouvi a janela do meu quarto tremer com os roncos dos jatos da FAB cruzando os céus da capital). Nas comemorações do centenário da Independência, tanto o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o coração do imperador escutaram os brados de “imbrochável”, aumentando ainda a carga irônica, se considerarmos que em grande parte do filme Pedro está irascível e inconformado com sua disfunção erétil.

A viagem de Pedro, me parece, enfim, não se tratar da viagem física de retorno do Pedro até a terra “mãe” mas sim do retrato de um delírio: o delírio da (im)potência masculina. Bodanzky denuncia como os governantes teimam em confundir desejo de potência com desejo de poder, coisas que, como já lembrava Deleuze, são bastante distintas. Assim a diretora realiza uma (essa sim!) potente crítica da frágil virilidade e profana a efígie das figuras masculinas, desconstruindo a figura do herói, intocável e inumano retratado nas inúmeras estátuas espalhadas pelas praças brasileiras e portuguesas (como aquela que Pedro mostra a seu filho no início da narrativa). E, ao fim, quem salva o trono de Pedro — lembremos! — é sua filha, a pequena Maria.

Confesso que desejei ver esse filme especialmente porque no último ano tanto o coração de Dom Pedro quanto eu fizemos esse périplo entre Brasil, Porto e Açores, em uma estranha rede de coincidências (espécie de trajeto da independência não só nacional, mas pessoal). Só consigo pensar na máxima Pascaliana, que o coração tem razões que a própria razão desconhece…Mas a história também parece guardar ironias e semelhanças que escapam ao nosso vão entendimento.

07 de Outubro de 2022.

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