A série gráfica

Revista Beira
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3 min readNov 3, 2016

Por Maria Bogado

Em A Série Gráfica, realizada este ano (2016) na Gráfica LIS, Leandro Dittz se atém às forças materiais que constituem os livros, jornais e revistas. Aqui interessam os rostos e gestos dos nomes não creditados nas publicações. O seu olhar escava um pouco do trabalho manual invisivelmente impresso sob o trabalho intelectual dos textos que saem frescos destas grandes máquinas aí. A vivacidade dos corpos irrompe como micro acontecimentos esgarçando e friccionando as retas da geometria dura que compõe o espaço. Em que livro estará a marca do cansaço deste trabalhador com rosto recostado ali no canto?

Foto: Leandro Dittz

A curvatura de um braço tensiona todas as linhas que o antecedem. É como se a compressão muscular destes dedos semi dobrados pressionasse a estabilidade desta matéria dura. O isolamento da mão, destacada do resto do corpo, e em contraste com a grandiosidade da máquina, a confere uma grande expressividade. Um desvio gritante. Se, por acaso, viesse a figurar em algum livro que saísse por ali naquele instante, sairia certamente como um ponto de exclamação perdido numa página branca (ou um borrão que desfizesse a simplicidade deste traço seguido de um ponto: !)

Foto: Leandro Dittz

Essa posição arriscada, que sugere quase uma queda iminente, somada às dobras desta roupa e todas as suas ondulações, remete à efemeridade de cada instante de um corpo vivo. Se o objeto livro é durável, arquivável e catalogável, aqui o que se desdobra (estando paradoxalmente registrado) é tudo aquilo que escapa à fixação.

Foto: Leandro Dittz

Os músculos destes braços fortes desafiam a topografia do espaço. Os relevos sublinhados pela blusa um tanto dobrada (fazia calor?) são imagens de um corpo cuja força física bem trabalhada se inscreve e dá a ver. Seus traços são aqui ressaltados com a opção monocromática.

Foto: Leandro Dittz

Numa cena de Dora Bruder, romance de Patrick Modiano, descreve-se a dificuldade de assistir a um filme antigo projetado no cinema. De repente, a tela se embaçaria sem falha técnica aparente. Surge a hipótese de que talvez todos os olhos que alguma vez já haviam assistido aquela mesma película tivessem aos poucos — e quase imperceptivelmente — se deixado capturar por aquela matéria. Como uma espessura estranha e um tanto indecifrável, a adição destes olhares flagrados agora se lançava diante dos olhos que a assistiam. Oferecendo-lhes, então, uma brusca, embora altamente poética, imprecisão.

Foto: Leandro Dittz

Talvez seja esse ensaio um elogio assombroso a todos esses co-autores desconhecidos, a essa coreografia e suas nuances nunca repetidas sob as mesmas paredes e barras de luz fria. Será que esses ghost writers — por algum lampejo de segundo — nos encaram num virar de página?

Leandro Dittz

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