Territórios políticos da arte (Parte II)

Revista Beira
Revista Beira
Published in
9 min readJun 4, 2019

Por Scheilla Franca

La Manuela (2017), dirigido por Clara Linhart

“É a própria política da poesia, a maneira pela qual ela configura o espaço em que se inscrevem suas produções” (RANCIÈRE, 2017 p. 81)

Um filme pode ser lido diante da perspectiva de Jacques Rancière, como uma forma de redesenhar a experiência do sensível, a partir da ocupação das posições que vão permitir a existência da obra. Esse gesto seria, assim, essencialmente político. Daí, então, que estética e política sejam um par de relações bastante intrincadas, partes de um território comum ou zonas porosas da experiência humana, social. Seguimos mergulhando nas sessões Territórios, da Mostra do Filme Livre, percebendo mais nuances desta experiência do cinema brasileiro atual.

Na sessão Territórios 5, o filme La Manuela, realizado por Clara Linhart, parte de uma delicada relação afetiva entre a narradora, Clara, também realizadora do filme, e Manuela, ativista e jornalista que foi presa em uma manifestação no Equador. Na ocasião, Manuela teve diversos direitos e documentos confiscados, dando a ver a vulnerabilidade da exposição das vidas e vozes que ousam se erguer a favor da causa indígena e contra a exploração ambiental. O filme funciona como espécie de diário do episódio que se estende, ao que indica, por mais tempo do que o esperado, chegando a durar mais de dois anos. As demandas indígenas ganham foco no documentário, por conta da relação da protagonista com o líder do movimento indígena no Equador, Carlos Pérez. A obra apresenta a prisão e o fato de Manuela ter sido deportada e impedida de entrar novamente no país, como forma de testemunha de uma crise dos governos de esquerda na América Latina, sobretudo pelo fato destes governos seguirem comprometidos com a agenda capitalista de exploração ambiental sem consciência, sem responsabilidade, nem com a terra nem com os povos indígenas, dentre outras questões de visibilidades e direitos humanos. O documentário reflete ainda o lugar de construção da imagem de Manuela, clivada entre o universo íntimo, familiar, entre amigos, e o cenário político, público. Ela surge como espécie de líder, atravessada por interesses e discursos midiáticos e partidários. O filme de Linhart vai na contramão da postura de construção panfletária, como a que Manuela se vê envolvida, onde sua vida privada é apropriada por discursos externos, para se ver como bandeira e ser a estampa de grupos e movimentos.

A obra aproxima-se do cotidiano e da intimidade da protagonista, sem evitar as controvérsias, refletindo sobre a construção e apropriação da imagem da ativista. O filme mostra, ainda Manuela em seus muitos exílios na Alemanha, França e Estados Unidos, durante os dois anos passados longe de Carlos Pérez, longe de sua família e de Chimborazo, a montanha equatoriana que representa o seu lugar no mundo, seu lugar de conexão com a terra, não por acaso o ponto do mundo mais próximo do Sol. A intimidade é o dispositivo que desconstrói mitos e faz brotar a mulher, a amiga que expõe suas dores e controvérsias, adensando-se à medida em que a obra avança.

A sessão Territórios 6, composta por Elã! e Bloqueio, traz dois filmes que são construídos através de arquivos. No caso do primeiro, filme de Lúcio Branco, as fotografias em preto e branco performam vozes e certos enfrentamentos de abril de 1964, através dos discursos de Leonel Brizola em torno da resistência e do então governador Carlos Lacerda sobre o fortalecimento e adesão ao golpe militar. A relação entre a forma como os arquivos são apresentados e a maneira como a banda sonora é trabalhada revela um interessante esforço de (re)criação de narrativas, em uma interface direta com o momento doloroso e ainda pouco elucidado na história do país: os anos ditatoriais dos governos militares. No prólogo, fotografias históricas desse momento são apresentadas e trabalhadas através da montagem com dinamismo de cortes e (re)enquadramentos que abrem as imagens de arquivo às múltiplas histórias que podem contar e guardar. A banda sonora, por sua vez, tem uma trilha trabalhada para dar ritmo e aumentar o efeito de dinamismo e abertura de olhares para os arquivos. Com o fim do prólogo, temos ainda os discursos dos personagens principais, Lacerda e Brizola, acompanhados da dinâmica imagética dos arquivos fotográficos, já elaborados no início do filme. Ambos os discursos, proferidos originalmente no dia 1º de abril de 1964, um no Rio Grande do Sul e outro no Rio de Janeiro, são montados quase em forma de diálogo, de onde emanam dois olhares distintos sobre certos personagens do evento em curso.

Elã! (2017), dirigido por Lúcio Branco

Bloqueio, por sua vez, longa-metragem dirigido por Victória Alves e Quentin Delarroche, acompanha a manifestação e paralisação de caminhoneiros em maio de 2018, revelando faces autoritárias de diversos discursos que, dentre outras questões, pedem intervenção militar no Brasil atual. O filme, que adota quase sempre o tom observacional, foi iniciado em Seropédica, Rio de Janeiro, no sétimo dia da paralisação da greve que começou em 27 de maio de 2018. Muitos momentos oscilam entre o “Fora Temer!” e o desejo de intervenção militar. Como acompanhamos em uma das discussões, o grupo de caminhoneiros filmados não parece ter noção clara das diferenças de implicações entre uma e outra questão, manifestando-se através da ideia de que a ditadura militar tiraria todos os políticos corruptos e traria o Brasil para o rumo “certo”. O questionamento em torno da viabilidade desse projeto, que tira o direito de voto do brasileiro, é concebido junto ao argumento da descrença nas urnas, um dos pontos levantados ao longo das eleições de 2018, pelo então candidato Jair Bolsonaro. Em diversos momentos, sobretudo a partir do diálogo proposto pela professora Bárbara com os caminhoneiros, ficam difusos os limites e a relação entre as causas defendidas pelo movimento, como a questão da representação política e o enlace com os universos políticos e religiosos. O filme não se furta a registrar e narrar as controvérsias da manifestação, que é representada como espaço atravessado de interesses de classe, mas permeado ainda por fortes discursos políticos e religiosos que apareceram fortemente em outros eventos ao longo dos últimos anos, desde o impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff — onde as justificativas dos nossos parlamentares eram quase sempre permeadas por falas de natureza semelhante, ou seja, oscilando entre o pessoal, o político e o religioso — até o ano passado, ano de disputa eleitoral.

Bloqueio (2018), realizado por Victória Alves e Quentin Delarroche

A última sessão Territórios é composta pelos filmes Baixo Centro e Conte isso àqueles que disseram que fomos derrotados. Baixo Centro, longa dirigido por Ewerton Belico e Samuel Marotta, centra a força e potência estética de sua experiência na incorporação do espaço como personagem principal que se relaciona com os corpos em cena e com os corpos da cena, do cinema, da fotografia, da imagem. As histórias contadas das sacadas, ao ar livre, em festas ou encontros a dois criam espaços para evidenciar as relações entre o território e os demais personagens em cena. O rigor da composição fotográfica dos planos, assim como o ritmo da montagem e algumas de suas escolhas sofisticadas e precisas — como as de narrar o encontro através da fotografia -, permitem, através de planos de temporalidades mais alongadas, convidar o espectador a habitar aquelas ruas e casas, ler os grafites de seus muros, esperar o ônibus em esquinas mal iluminadas, à luz amarela dos postes que mais escondem do que mostram. O filme se pergunta daquilo que se vê e como se vê, da maneira como se percebem os espaços e relações, desde o momento em que apresenta o seu personagem: ele veste colares, algo que pode ser visto como suas guias (embora isto não seja claramente demonstrado no filme), em uma leitura dentro de um espectro de religiões de matriz africana. Em seguida, ele veste sua câmera, outro amuleto e instrumento também responsável por guiar o olhar e a experiência do personagem. O filme é construído na dinâmica entre visível e invisível, entre ruas e afetos, ao longo de toda narrativa que parece permear também a relação dos personagens e dos realizadores com o território filmado.

Baixo Centro (2018), dirigido por Ewerton Belico e Samuel Marotta

Em Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados, curta realizado a oito mãos por Aiano Benfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito, temos uma proposta cinematográfica que se constrói à noite, no cenário obscuro com o qual lidamos nos últimos tempos, cada um à sua maneira. Destacamos a força com a qual a forma parece conjugar os espectros das ações humanas, sujeitos envoltos na sua criação, e dos não-humanos, como a maneira como a câmera performa um cinema gato-pardo-na-noite, através das formas de trabalho da fotografia, sobretudo com o foco, o tempo dos planos e movimento dos corpos, de modo a enfatizar o sentido estético e político da comunhão dos corpos em cena. A força de estarem juntos tateando a noite. Os registros foram realizados ao longo da formação de três distintas ocupações urbanas, em momentos diferentes, na cidade de Belo Horizonte.

A política própria da poesia cinematográfica e do fazer fílmico potencializa-se sobretudo por escrever-se, como vimos ao longo das breves apresentações das sessões, com corpos e vidas que lutam para existir, enfrentando barreiras, fronteiras, muros, questionando os limites e silêncios na injustiça cotidiana e muitas vezes institucionalizada. O psicanalista Christian Dunker, analisando as formas de vida no Brasil de 1984 em diante, diz que, com a redemocratização, nós, brasileiros, mudamos nossas formas de vida e, também, nossas modalidades de sofrimento e pertencimento. Segundo ele, o cinema seria uma janela interessante para abrir esse olhar sobre nós mesmos, o que no cinema da retomada teria sido representado pela violência, através das histórias de traição e vingança, invasão de privacidade, deriva errática de destinos, cosmética da fome e da pobreza (DUNKER, 2017 p. 245).

Com as transformações via afeto, intimidade e pertencimento, surge uma produção que mescla o privado e o público a partir da democratização do acesso às tecnologias, assim como aos cursos de formação audiovisual e às práticas de cinefilia e cineclubismo — como as que a MFL sempre engajou e fomentou . A partir desse panorama, o que podemos pensar sobre a relação entre a escrita, a arte, a política e a vida comum? O que as íntimas cartografias territoriais das sessões Territórios nos convidam a ver de nós, do Brasil atual? Como furar as bolhas e sair dos condomínios e das suas lógicas de separação? Como lidar com o que nos olha?

Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (2018), realizado por Aiano Benfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito

Já podemos ver algumas transformações, incentivadas pelas políticas implementadas nos últimos dez anos, fruto da luta popular e de um governo que esteve mais atento às políticas públicas e de identidade. Isso pode ser percebido nas transformações dos editais, mais regionalizados, na descentralização da produção do eixo Rio-São Paulo; pode ser observado também no incentivo à paridade de gênero, sobretudo nos editais dos últimos cinco anos, além da inclusão de discussões sobre gênero, raça, sexualidade, identidade, e também das questões de representação e representatividade. Os filmes aqui podem ser lidos como testemunhas desse processo.

Nas sessões Territórios e na Mostra do Filme Livre é possível também perceber algumas dessas mudanças ao longo das edições do evento. Este ano, ao inscrever o filme, o realizador poderia, caso desejasse, sinalizar sua identidade de gênero. Mudanças delicadas como essa trazem luz para a importância de proteger e incentivar esses e muitos outros avanços — como a visibilidade e o incentivo para a realização indígena ou a criação em periferias. Lembremos que nenhum direito é dado. Como conquista, ele precisa ser preservado e, mais ainda, ampliado de modo a possibilitar a criação de paisagens mais plurais no cinema brasileiro. Mas e agora? Que não falte o chão sob nossos pés, pés no chão e força para seguir lutando e realizando, longe da mente positiva e da alardeada “torcida para dar certo”, mas tendo consciência do nosso lugar, dos direitos já conquistados e de tudo o mais que há para caber nas telas de cinema, em termos de pluralidade, representatividade, visibilidade, reconhecimento e igualdade. Apesar de.

Suporte bibliográfico

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido. Martins Fontes, São Paulo. 2017

_________________. Políticas da escrita, Editora 34, São Paulo, 1995

DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. Ubu editora, São Paulo, 2017.

--

--