Sua herança

Revista Beira
Revista Beira
Published in
5 min readJul 12, 2019

Por Valquiria Oliveira

Rio de Janeiro, 05 de Julho de 2019.

Pai,

Essa semana faz 11 anos. Também nesta semana você completaria 72, 73, nunca sei direito. A última vez que nos falamos foi no seu aniversário, 7 de julho. Eu liguei pra te dar os parabéns e para quem sabe alegrar um pouco sua vida que eu sabia, andava bem dura. Falar com você nunca era tarefa fácil, éramos diferentes, e acho que muito parecidos também. Você falou da doença e do seu cansaço em lutar contra ela, das injustiças do mundo, da sua aposentadoria que não sairia, pelo visto. Vou morrer e isso não sai, você disse. Sua voz não era de raiva, era de dor. Lembro de desligar o telefone e comentar ao meu então companheiro: meu pai vai morrer. Encarnada de tristeza, daquelas que pousam com uma calma irreversível no corpo da gente, dizia pra ele e principalmente pra mim. Estávamos certos, eu e você, dali uns seis dias e tudo aconteceu. Rápido. E pensar que quis tantas vezes sua morte, tantas. Quis de verdade como se pode querer o melhor e o pior pra si e para o outro.

A tristeza que me encarnava era de ver que o mundo estava sendo tão duro com você. Assim como você foi comigo a vida toda. Com a gente. E agora ali de coração ligeiramente amolecido pela doença, a doença do coração inclusive, eu pude perceber que a sua dureza era a dureza do mundo, pai. E nem no final, quando você mesmo não tinha mais forças para endurecer, a dureza persistiu pra você.

Da minha infância com você, poucas lembranças festivas. Teve o Chico, tão presente nas fitas cassetes que embalavam nossos domingos no pré-almoço. Eram os dias em família com algum refresco. E muito álcool. Também hoje entendo o desassossego que você banhava em álcool, que no início, pequena mesmo, ainda via de alegria, mas depois virou braveza, apenas. A mesa redonda de madeira, que nos acompanhou desde sempre, cuspia lascas que deixavam a mostra a falta de verniz. Sobre ela pousavam os ingredientes do preparo da comida, em geral quiabos e mais quiabos, ou batatas e cenouras pra maionese. Enquanto você batucava e cantarolava junto: não chore ainda não, que eu tenho uma razão pra você não chorar. Gostava de te ver cantando apontando os olhos pra mim. Pra mim não chorar. Depois, jovem, agradecia sem muita convicção de estar agradecida, por você ter me dado aquelas canções de presente. Talvez você não saiba disso, mas você me deu. Acho que sem saber, eu já te admirava: ver um homem semianalfabeto, desejante das letras e conhecimento. Lembro da época que carregava para o trabalho, junto com a marmita em alumínio, o livro de Freud, O Inconsciente, você queria saber dele. O livro surrado já, envelhecia mais do cimento e da poeira que vinha do seu trabalho. Olhava curiosa, certa de que um dia aprenderia sobre aquilo também.

Era muita dureza. E muita falta. A minha sorte foi ter a rua toda inteira pra mim, isso você não me negou. A rua foi o melhor brinquedo que tive. Brinquedos também podem machucar, é verdade, mas vai ver isso faz parte. Brinquedos que, na avidez de prová-los, provam da gente sangue e carne. Quantas vezes não tive pedaços do meu dedão do pé arrancados, algumas vezes arrancavam sobre o buraco feito na semana anterior, sem que esperasse refazer a carne perdida. Obrigada por não ter me negado a rua. Pelo menos até eu crescer, mas esta é outra história.

Depois já longe, em outra cidade, chegou meu filho, e pude ver doçura. Uma criança seria capaz de abrir uma fenda no seu peito (que a esta altura já começava a adoecer) e fazer alegria. Eu desconfiava daquilo. Certa vez vi você defendê-lo. Ele não tem fome, por isso não come, você nunca teve isso? Falta de vontade de comer? Deixa o menino não comer. Vou levar ele na praça pra passear, ele tá aborrecido com alguma coisa, nem tudo é comida. Eu tinha vivido pra ver você atacar a minha insensibilidade diante do meu filho. Você combatia a minha dureza, possivelmente herdada de você e da qual sempre me orgulhei, a mesma dureza que sempre feria a mim, mais que a todos. E ainda fere. Te vi tão diferente com meu filho no colo. Na volta do passeio você estava feliz de ter conseguido fazer nosso menino tomar um refresco de caju, e junto ter cessado o choro, e me reapresentá-lo de olhinhos calmos. Nosso menino estranhava a casa que um dia eu vivi, as pessoas. Estranhávamos, eu e ele, a todos, mas agora com algum espaço para outra coisa.

Por ali comecei a ver diferente. Mas eu morava longe e era raro nosso encontro. Desculpe, precisei ir pra longe, a dor era insuportável. Não fizesse isso e nem sei se estaria aqui hoje, de modo que, quando teve aquele telefonema eu ainda não tinha me aproximado o suficiente. É que talvez fosse preciso outra vida inteira pra que fosse possível fazer isso. Te levaria para ver o mar, andar de avião e comer fora. Coisas que você não fez e que eu sempre desejei. Você tem mania de grandeza, isso não é pra gente, completava aos gritos, quando não, aos lamentos de álcool, endereçados a mim. É que eu tinha mania de grandeza mesmo, e ainda tenho, às vezes a vida se impõe pequena, mas noutras ela vem grande, gigante. E eu vivo na esperança de ter muitas grandezas, do querer ao ser, mas principalmente de estar.

Tem uma moça, uma artista dessas que faz a vida valer a pena, que dizia (ela também se foi):

Dancem, dancem, ou estaremos perdidos.

Pina tinha razão, queria também te levar pra dançar, porque estar aqui simplesmente é demais pra mim, ou de menos, não faz diferença, do mesmo jeito que o que importa é que não cabe. Danço pra me distrair dessa falta de cabimento que mora em mim.

Feliz aniversário pai, de vida e de morte.

Nunca te disse isso, mas ainda que pareça meio forçado dizer a um morto aquilo que não se teve coragem ou vontade de dizê-lo em vida, eu me insisto e tiro de mim: te amo.

PS: Muitas coisas aconteceram neste tempo, mas o que vale a pena contar é que consegui voltar a amar minha mãe. Dizem que amar resolve tudo, ou pelo menos torna suportável (anda na moda essa máxima), mas o que não dizem é o quanto é difícil isso, dá um trabalho danado, mas posso dizer que tenho gostado e que você teria gostado também.

— —

Valquiria Oliveira é atriz, escritora, gestora e produtora cultural. Desde 2004 atua no campo da ação social, em diálogo com a arte, cultura e cidade. Dos principais projetos da sua trajetória, vale citar o Home Theatre — Festival de Cenas em Casa e a Agência de Redes para Juventude.

--

--