Detalhe de “Portrait of Hugh Gaitskell as a Famous Monster of Filmland” (1964), de Richard Hamilton

Tolos¹ e sábios — reflexões sobre o fim da presidência de Trump

Revista Beira
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9 min readJan 18, 2021

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Por Jacques Rancière

Traduzido por Pedro Caetano Eboli*

Após a tomada do Capitólio, pudemos nos surpreender vendo os apoiadores de Trump tão determinados a negar os fatos a ponto de caírem em uma violência fanática. Alguns os vêem como mentes ingênuas, enganadas por notícias falsas. Mas como ainda acreditar nessa fábula, quando vivemos em um mundo onde a informação e os comentários que “decifram” a informação são tão abundantes? Na verdade, se alguém rejeita o óbvio, não é por ser estúpido, mas para mostrar sua inteligência. Sinal de uma perversão inscrita na própria estrutura de nossa razão.

É fácil rir dos erros de Donald Trump e se indignar com a violência de seus fanáticos. Mas a irrupção da mais pura irracionalidade, ocorrida no seio do processo eleitoral do país melhor equipado para administrar alternâncias do sistema representativo, também nos coloca questões sobre o mundo que compartilhamos com ele: um mundo que acreditávamos ser o do pensamento racional e da democracia pacífica. A primeira pergunta seria, sem dúvidas: como é possível alguém estar tão determinado a não reconhecer fatos, mesmo que eles sejam muito bem comprovados, e como essa obstinação pode ser tão amplamente compartilhada ou apoiada?

Alguns ainda gostariam de se agarrar a uma velha bóia de salvação²: aqueles que não querem reconhecer os fatos são ignorantes mal informados ou espíritos crédulos enganados por notícias falsas. Trata-se do ideal clássico de um povo bondoso que se deixaria levar pela inocência, e que deveria ser ensinado a se informar por fatos e a julgá-los criticamente. Mas como podemos ainda acreditar nesta fábula da ingenuidade popular, quando vivemos em um mundo onde os meios de informação, os meios para verificar a informação, e os comentários que “decifram” toda a informação abundam e superabundam à disposição de todos?

Devemos então inverter o argumento: se alguém rejeita os fatos, não é por estupidez, mas para mostrar que é inteligente. E a inteligência, como se sabe, consiste em desconfiar dos fatos e perguntar-se qual é a utilidade dessa enorme massa de informações que todos os dias são despejadas sobre nós. Se responde, muito naturalmente, que estas informações só poderiam servir para nos enganar, pois o que é demasiado evidente só pode estar aí para encobrir a verdade, de modo que seria preciso descobrir algo que está oculto sob a falaciosa aparência dos fatos consumados.

A força dessa resposta é que ela satisfaz, ao mesmo tempo, aos mais fanáticos e aos mais céticos. Uma das características notáveis ​​da nova extrema direita é o lugar ocupado pelas teorias da conspiração e pelo negacionismo. Elas apresentam aspectos delirantes, como na teoria da grande conspiração internacional de pedófilos³. Mas esse delírio é, em última instância, apenas a forma extrema de um tipo de racionalidade geralmente valorizado em nossas sociedades: aquele que não apenas nos obriga a ver, em qualquer fato particular, a consequência de uma ordem global, mas nos impõe recolocá-lo no encadeamento geral dos fatos, revelando, ao final, algo muito distinto do que se esperava a uma primeira vista.

A possibilidade de negar tudo não é uma questão de “relativismo”. É uma perversão inscrita na própria estrutura de nossa razão.

Sabemos que o princípio de explicar tudo pelo conjunto das suas conexões também pode ser percorrido ao contrário: desse modo, é sempre possível negar um fato invocando a ausência de um elo na cadeia de condições que lhe tornariam possível. É assim, como sabemos, que os intelectuais marxistas radicais negaram a existência das câmaras de gás nazistas, porque seria impossível deduzir sua necessidade da lógica geral do sistema capitalista. E ainda hoje intelectuais engenhosos vêem o coronavírus como uma fábula inventada por nossos governos para nos controlar melhor.

As teorias da conspiração e o negacionismo dependem de uma lógica que não é reservada apenas às mentes ingênuas e aos cérebros doentios. Suas formas extremas testemunham a parte de irracionalidade e superstição presentes no cerne da forma dominante de racionalidade das nossas sociedades e nos modos de pensar que interpretam seu funcionamento. O que torna possível negar tudo não é o “relativismo”, posto em questão por mentes sérias que se imaginam os guardiões da universalidade racional. Trata-se, antes, de uma perversão inscrita na própria estrutura da nossa razão.

Se dirá que não basta estar munido intelectualmente para negar tudo. Seria necessário ainda querê-lo. Isto é muito justo. Mas temos que ver em que consiste essa vontade, ou melhor, esse afeto que leva a acreditar ou a não acreditar.

É pouco provável que os setenta e cinco milhões de eleitores que votaram em Trump sejam todos cérebros deficientes, convencidos por seus discursos e pelas informações falsas que lhes foram veiculadas. Se eles acreditaram, não é no sentido de que tomaram o que ele disse como verdade, mas no sentido de que ficam satisfeitos em ouvir o que ouviram: um prazer que pode, a cada quatro ou cinco anos, ser expresso por meio de uma cédula de votação, mas que se expressa de forma muito mais simples a cada dia por um simples like. E aqueles que disseminam fake news não são ingênuos a ponto de imaginarem que elas sejam verdadeiras, e tampouco cínicos que sabem que são falsas. São simplesmente pessoas que querem que seja assim, desejosos de ver, pensar, sentir e viver na comunidade sensível que essas palavras tecem.

“Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” (1956), de Richard Hamilton

Como pensar sobre essa comunidade e sobre esse desejo? Aqui espreita uma outra noção muito cômoda, a do populismo. Ela não mais invoca uma população bondosa e ingênua, mas, inversamente, um povo frustrado e invejoso, pronto a seguir quem saiba encarnar e apontar a causa do seu ressentimento.

Trump, ouve-se com frequência, é o representante de todos os pequenos brancos angustiados e raivosos: aqueles que ficaram para trás na transformação econômica e social, que perderam não apenas seus empregos com a desindustrialização, como também seus marcadores de identidade com as novas formas da vida e da cultura, aqueles que se sentem abandonados pelas elites políticas distantes e desprezados pelas elites intelectuais. Não há nenhuma novidade nessa história: o desemprego também foi usado, nos anos 1930, como uma explicação para o nazismo e reutilizada indefinidamente para explicar qualquer impulso da extrema direita em nossos países. Mas como poderíamos acreditar seriamente que os setenta e cinco milhões eleitores de Trump atendem a esse perfil de vítimas da crise, do desemprego e da desclassificação? Devemos então abandonar a segunda bóia do conforto intelectual, a segunda figura do povo tradicionalmente relegado ao papel de ator irracional: esse povo frustrado e brutal que é a contrapartida do povo bom e ingênuo.

Devemos, mais profundamente, questionar essa forma de racionalidade pseudo-erudita que faz, das formas de expressão política do sujeito-povo, traços pertencentes a esta ou aquela camada social em ascensão ou declínio. O povo político não é a expressão de um povo sociológico que o precede. Ele é uma criação específica: o produto de um certo número de instituições, de procedimentos, de formas de ação, mas também de palavras, frases, imagens e representações que não expressam os sentimentos do povo, mas criam um determinado povo, ao criar para ele um regime de afetos específico.

A paixão a qual Trump faz apelo não tem nada de misteriosa, é a paixão pela desigualdade.

O povo de Trump não é a expressão de camadas sociais em dificuldade e em busca de um protetor. É antes de tudo o povo produzido por uma instituição específica onde muitos insistem em ver a expressão suprema da democracia: aquela que estabelece uma relação imediata e recíproca entre um indivíduo, que se supõe encarnar o poder de todos, e um coletivo de indivíduos, que se reconheceria nele. É também o povo construído por uma forma particular de endereçamento, este endereçamento personalizado, possibilitado pelas novas tecnologias de comunicação, em que o líder fala todos os dias a todos, tanto como homem público como homem privado, usando as mesmas formas de comunicação que permitem a cada um e a todos dizerem cotidianamente o que estão pensando ou sentindo.

Trata-se, enfim, do povo construído pelo sistema específico de afetos que Donald Trump mobilizou por meio desse sistema de comunicação: um sistema de afetos que não se destina a nenhuma classe em particular e que não joga com a frustração mas, ao contrário, com a satisfação de uma condição, não com um sentimento de desigualdade a ser reparado, mas com um privilégio a ser mantido, contra todos aqueles que desejam violá-lo.

Não há nada de misterioso na paixão que Trump invoca, trata-se da paixão pela desigualdade, aquela que permite, igualmente a ricos e pobres, encontrarem uma multidão de inferiores sobre os quais devem, a todo custo, manter a superioridade. Na verdade, há sempre uma superioridade da qual podemos participar: superioridade dos homens sobre as mulheres, das mulheres brancas sobre as mulheres negras, dos trabalhadores sobre os desempregados, dos que trabalham nas profissões do futuro sobre todos os outros, dos que podem desfrutar de uma assistência privada sobre aqueles que dependem da solidariedade pública, dos locais sobre os migrantes, dos nativos sobre os estrangeiros e dos cidadãos da nação-mãe da democracia sobre o resto da humanidade.

A co-presença, no Capitólio ocupado pelos capangas trumpistas, entre a bandeira dos treze estados fundadores e a bandeira do Sul escravagista⁴, ilustra muito bem esta montagem singular que faz da igualdade uma prova suprema da desigualdade, e da pursuit of happiness um afeto odioso. Assim como a um determinado estrato social, esta identificação entre o poder de todos e a coleção incontável de superioridades e ódios não pode ser associada ao ethos de uma nação específica. Sabemos do papel desempenhado aqui pela oposição entre a França trabalhadora e a França socialmente assistida, entre aqueles que avançam e aqueles que permanecem presos em sistemas arcaicos de proteção social, ou entre os cidadãos do país das Luzes e dos direitos humanos, e as populações atrasadas e fanáticas que ameaçariam sua integridade. E podemos ver, todos os dias na Internet, o ódio a todas as formas de igualdade sendo exaustivamente reiterado nos comentários dos leitores de jornais.

Assim como a teimosia em negar não é marca de espíritos atrasados, mas uma variante da racionalidade dominante, a cultura do ódio não é obra de camadas sociais carentes, mas produto do funcionamento de nossas instituições. Ela é uma forma de fazer-povo, uma forma de criar um povo que pertence à lógica da desigualdade. Passaram-se quase duzentos anos desde que o pensador da emancipação intelectual, Joseph Jacotot⁵, mostrou a maneira pela qual a desrazão desigual fazia funcionar uma sociedade onde cada inferior era capaz de encontrar um inferior e desfrutar de sua superioridade sobre ele. De minha parte, há apenas um quarto de século, sugeri que a identificação da democracia ao consenso produzia, no lugar do povo pretensamente arcaico da divisão social, um povo muito mais arcaico fundado sobre os efeitos do ódio e da exclusão⁶.

No lugar do conforto da indignação ou do escárnio, os eventos que marcaram o fim da presidência de Donald Trump deveriam nos incentivar a examinar de modo um pouco mais aprofundado as formas de pensamento que nós chamamos de racionais e as formas de comunidade a que chamamos de democráticas.

*Tradução, autorizada pelo autor, do artigo Les fous et les sages — réflexions sur la fin de la présidence Trump, publicado no dia 14 de janeiro de 2021 no jornal francês AOC [Analyse Opinion Critique]. Disponível em <https://aoc.media/opinion/2021/01/13/les-fous-et-les-sages-reflexions-sur-la-fin-de-la-presidence-trump/>. Com revisão de tradução por Antoine d’Artemare e Bárbara Bergamaschi.

Nascido em 1940 na Argélia, Jacques Rancière é professor emérito de Estética e Política na Universidade Paris VIII. Entre seus livros destacam-se A lição de Althusser (1975), A noite dos proletários (1981), O mestre ignorante (1987), Os nomes da história (1992), O desentendimento (1995), A partilha do sensível (2000), O inconsciente estético (2001) e Aisthesis: cenas do regime estético da arte (2011).

Pedro Caetano Eboli é graduado em Desenho Industrial na UFRJ, com formação teórico-prática na EAV Parque Lage. É mestre em Artes e Design pela PUC-Rio, onde atualmente cursa o doutorado. Suas investigações interrogam algumas das relações entre arte, política e movimentos sociais no Brasil contemporâneo.

Notas do tradutor (N.T):

  1. No original “fou”, que pode tanto significar “tolo” quanto “louco”.
  2. No original “planche de salut”, expressão que remete a um último recurso em situação de desespero.
  3. Jacques Rancière se refere ao QAnon, uma teoria da conspiração que circula pela extrema direita, envolvendo uma seita secreta de pedófilos canibalistas e adoradores de Satanás. De acordo com os defensores desta teoria da conspiração, a seita comandaria uma rede mundial de tráfico sexual infantil e um conluio contra Donald Trump, sendo integrada inclusive por atores de Hollywood e membros do Partido Democrata.
  4. Jacques Rancière se refere à bandeira do exército confederado dos Estados Confederados da América que durante a Guerra Civil Americana (1861 — 1865) lutou contra a abolição da escravatura nos EUA. Hoje a bandeira é apropriada pelo movimento alt-right supremacista americano.
  5. Em seu livro O mestre ignorante — cinco lições sobre a emancipação intelectual (Belo Horizonte: Autêntica, 2018), Jacques Rancière encontra, nas práticas do Ensino Universal propostas pelo pedagogo oitocentista Joseph Jacotot, algumas de suas próprias preocupações políticas e filosóficas. Com vias a provar o princípio da igualdade das inteligências, o autor tece uma espécie de teoria da educação, onde desvincula a inteligência, compreendida como a capacidade de conhecer, e o saber, o conteúdo dessa capacidade.
  6. Conferir Jacques Rancière. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

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