Cena do filme Flash Happy Society (2009), de Guto Parente

Vândalos

Revista Beira
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4 min readOct 28, 2016

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Por Theodor W. Adorno

O que foi observado desde o advento das grandes cidades como pressa, nervosismo e instabilidade agora se expande de modo epidêmico, como outrora a peste e a cólera. Nisso assomam forças que os apressados transeuntes do século XIX nem imaginavam. Todos têm que se dedicar a algo o tempo todo. O tempo livre exige ser gasto até o fim. Ele é planejado como empreendimento, preenchido com visitas a todos os eventos possíveis ou pelo menos com deslocamentos em velocidade máxima. A sombra disso cai sobre o trabalho intelectual. Ele se dá com má consciência, como se fora roubado a quaisquer atividades urgentes embora só imaginárias. Para justificar-se perante si próprio ele se faz de apressado, sob alta pressão, de empreendimento acossado por falta de tempo para o qual toda consciência, incluindo a própria, é estorvo. Amiúde parece que os intelectuais reservam para sua produção específica única e exclusivamente aquelas horas que lhes restam das obrigações, saída, reuniões e inevitáveis distrações. Repugnante, embora de certo modo racional, ainda é o ganho de prestígio daquele que se pode apresentar como figura tão importante que tem que estar em todo lugar. Ele estiliza sua vida com insatisfação propositalmente mal representada como um único ato de presença. A alegria com que recusa um convite aludindo a um já aceito anuncia o triunfo na concorrência. De modo análogo a isso se repetem em geral as formas do processo de produção na vida privada ou nos domínios do trabalho alheios a essas formas. A vida inteira deve assemelhar-se à profissão e esconder sob tal semelhança aquilo que ainda não está dedicado de imediato ao ganho. O medo que se exprime nisso reflete outro, muito mais profundo. As inervações inconscientes que ajustam a existência individual aos ritmos históricos fora dos processos de pensamento apercebem-se da ascendente coletivização do mundo. Como, todavia, a sociedade integral não traz a si positivamente os indivíduos mantendo-os como tais, mas ao contrário os comprime numa massa amorfa e dócil, assim cada indivíduo se atemoriza diante do processo de absorção no todo, que sente como inexorável. Fazer coisas e ir a lugares é uma tentativa do aparato sensitivo de criar uma espécie de limiar de proteção contra a ameaçadora coletivização e habituar-se a ela, ao adestrar-se a si mesmo como membro da massa precisamente nas horas aparentemente deixadas à liberdade. A técnica para isso consiste na aposta em ir além do perigo. De certo modo vive-se ainda pior, logo com ainda menos ego do que se espera ter que viver. Ao mesmo tempo o lúdico ensina tal demasia de desprendimento que viver seriamente sem ego não deveria ser mais difícil, antes mais leve. Por isso tem-se muita pressa, pois os sinos não avisam do terremoto. Quando não se acompanha — e isso quer dizer, quando não se nada fisicamente na corrente humana — teme-se algo semelhante ao ingresso demasiado tardio no partido totalitário, que é perder a ligação e atrair sobre si a vingança do coletivo. A pseudoatividade é um segundo seguro, expressão da disposição a se entregar, que é o único meio do qual ainda se espera garantir a preservação de si próprio. A segurança acena na adaptação à insegurança extrema. Pensa-se nela como salvo conduto na fuga, que leva com a maior rapidez possível a outro lugar. No amor fanático aos automóveis ressoa o sentimento de desabrigo. Ele oferece a base para aquilo que os burgueses injustamente costumavam chamar de fuga de si mesmo, do vazio interior. Quem quer acompanhar não pode se distinguir. O vazio psicológico não é ele próprio senão resultado da falsa absorção social. O tédio do qual fogem as pessoas somente reflete o processo de fuga no qual há muito estão envolvidos. É só por isso que se mantém em vida e infla cada vez mais o monstruoso aparato de entretenimento, sem que uma só pessoa tire divertimento disso. Ele canaliza o impulso a estar junto, que de outro modo se aferraria de modo indiscriminado, anárquico, como promiscuidade ou agressão selvagem ao coletivo, que de resto apenas consiste no conjunto dos que estão em movimento. Seus similares mais próximos são os viciados. Seu impulso reage com precisão ao deslocamento da humanidade, tal como ele conduz desde a obscura confusão entre cidade e campo e a eliminação da casa, passando pelos semblantes de milhões de desempregados até as deportações e transferências de povos inteiros no destruído continente europeu. O que há de nulo e de carência de conteúdo em todos os rituais coletivos, desde o movimento juvenil, apresenta-se retrospectivamente como antecipação tateante de esmagadores golpes históricos. Os inumeráveis que de súbito sucumbem em enxames à própria quantidade e mobilidade abstrata e ao deslocamento como a um narcótico são recrutas da invasão dos bárbaros, em cujos espaços restituídos à selvageria a história burguesa se apronta para perecer.

Publicado originalmente em português no livro Minima Moralia (2008) pela Beco do Azougue Editorial Ltda. Tradução de Gabriel Cohn. Edição original alemã Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main (1951).

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