Vasta Carne
Por Bárbara Bergamaschi
“Vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras.
Vamos invadir o corpo desta mulher com palavras…”
As luzes se apagam, o filme se inicia. Uma tela preta se impõe sobre os espectadores. O público é deixado no escuro por cerca de oito minutos. Mas ele não está sozinho. Uma voz grave nasce do breu no extracampo. Em um sobrevôo de pássaro a voz-personagem vaga buscando um local de pouso. Como fluxo de consciência que brota em jorro, em um afã vertiginoso ela invade os mais inusitados corpos. Habita o creme, o café, a mostarda, as estalactites, o pato e, assim, vai nos introduzindo a esse estranho universo cambiante de devires, onde há “Vozes vorazes pelas matérias”. A voz-personagem se apresenta não apenas como eu-lírico narrativo, mas como experiência empírica: a ouvimos e a sentimos com todo o corpo, através da vibração das caixas de som do sistema surround da sala. Vaga Carne, filme de estreia da atriz Grace Passô como diretora de cinema e codirigido por Ricardo Alves Jr., encomendado especialmente para abrir a Mostra de Tiradentes deste ano, fez, literalmente, as estruturas do festival tremerem.
O média-metragem é uma adaptação da peça homônima, protagonizada e escrita por Grace Passô, que circulou o país e lhe rendeu os prêmios Cesgranrio e Shell de Teatro. O filme nos surpreendeu por não optar por um caminho fácil e já bastante trilhado quando se trata de temas como representação e identidade, que correm o risco de cair em chavões vulgarizados e palavras de ordem desgastadas. Passô, ao contrário, aposta nos limites da linguagem para investigar o seu lugar de fala de mulher negra. O título mesmo da obra já comporta em si sentidos distintos. ”Vaga” pode assumir três definições: a primeira remete ao verbo “vagar”, ato de vaguear, andar a esmo e sem rumo; a segunda se refere ao adjetivo “vago”, que pode comportar dois significados: vazio e desocupado, como também algo da ordem do impreciso e sem clareza. É nesta ambivalência que não se permite facilmente classificar que reside a riqueza de Vaga Carne.
Passô toma para si a difícil tarefa de transcriar a experiência cênica de sua performance para o cinema. Durante debate na Mostra, a diretora ressaltou: “não existe realismo no teatro, o tema primário de todo espetáculo ou peça é a relação, a presença, o jogo. É como um terreiro. Teatro é um ritual”. Ao comparar o meio teatral ao cinema, a atriz observou que o cinema recorta e quebra a unidade dos espaços: “vemos um espetáculo mediado por máquinas”. Dessa maneira, uma das soluções pensadas pela dupla de diretores para invocar a presença corporal do jogo cênico foi explorar justamente os recursos técnicos cinematográficos, em especial o som. Na mixagem aumentaram os graves e distorceram a voz de Passô para que se reforçasse a autonomia da voz sobre o corpo da atriz e também de forma a produzir uma vibração desejada nos corpos da platéia — efeito, segundo eles, mais complexo de ser produzido ao vivo no teatro. Vaga Carne transmuta-se em cinema, portanto, não de forma epidérmica, descritiva ou literal, fugindo à alcunha de ser classificado como um mero “espetáculo filmado”, mas se afirmando enquanto potência poética, explorando as potencialidades e limites do próprio meio fílmico.
É curioso apontarmos que esta primeira experiência puramente sonora do público com Vaga Carne se opera na contramão de toda tradição retiniana do cinema. Nos remete a 4:33 de John Cage, aos filmes de longa duração de Andy Warhol, Sleep (1963) e Empire(1964) e o curta-metragem Not I (1973) de Samuel Beckett — guardadas as devidas proporções. Flerta, portanto, com o cinema instalativo e experimental. Em vez de apostar nas qualidades ópticas da imagem, o início do filme convoca percepções hápticas da sensualidade da matéria, colocando o espectador em um novo território dos sentidos. Invocando o que Susan Sontag em Contra Interpretação definiria como “sentidos outros”, tais como tato, olfato e audição que, para a ensaísta foram relegados ao segundo plano em favor de um modelo cognitivo-cartesiano que se fundamentou prioritariamente na visão como forma privilegiada para interpretar o mundo.
A medida que a voz vai ganhando contornos de algo que possa ser descrito como uma identidade, a diretora de Fotografia, Andrea Capella, alterna seu jogo de enquadramentos e luz. A câmera vai se afastando do corpo da atriz gradualmente, saindo do plano fixo fechado no rosto com iluminação dura e de contrastes, para planos frontais e com luz mais suave. Há, entretanto, um fundo negro que torna a presença do indefinido uma constante. Da mesma maneira que a voz se entende como um corpo e sai do esconderijo de dentro de si, a imagem também vai se materializando e, enfim, traz à tona o corpo da atriz. A voz vive uma longa jornada da “encarnação”, escapa enfim da escuridão do não-ser, para aos poucos ir se in-formando.
Descobrimos então que a voz não é uma voz qualquer, é uma voz de mulher. Não se trata, portanto, de uma voz universal do “homem” — como sabemos, historicamente encarnada no figura do macho, branco, heterossexual e europeu. Passô consegue imprimir sua mensagem política sem abrir mão do poético. Sua posição se consolida sem a necessidade de elaboração discursiva didática explícita em palavras. Se faz evidente quando a câmera filma a platéia e todos, sem exceção, são mulheres e homens negros. São rostos de figuras marcantes da cena cultural e negra de Belo Horizonte: Zora Santos, Dona Jandira, André Novais, Sabrina Hauta, Hélio Ricardo, Aline Vila Real, Tásia d’Paula, Valéria Aissatu Sane, Ronaldo Coisa. Não é preciso palavras, em silêncio o corpo fala. Não são corpos quaisquer, são “Cor-corpo” como diz Grace em certa altura da narrativa. O fato dessas corporeidades específicas ocuparem o espaço historicamente reservado à branquitude já é em si um gesto de potência disruptiva e política.
O filme propõe, nas palavras de Grace Passô, uma espécie de nova “trajetória do herói” desencarnado. Todos os elementos da tragédia grega estão presentes no roteiro: o desvelamento da razão do sujeito no mundo e os obstáculos encontrados pelo herói em sua trajetória. Eliane Robert Moraes relembra que, segundo a interpretação clássica de Hegel, no pensamento ocidental, Édipo representa a metáfora do homem que toma consciência de si, realizando os desígnios da célebre inscrição do templo de Apolo: “conhece-te a ti mesmo”. Ao decifrar o enigma da Esfinge, fazendo com que a criatura monstruosa se lance no abismo, o herói vence a dúvida e opacidade projetadas no espírito humano. O autoconhecimento resulta em um afastamento das forças animais que habitam o coração ancestral do homem. O mito pode ser levado para o plano simbólico da conquista do pensamento racional cartesiano. Édipo figura como grande precursor do nepotismo masculino que tem como corolário o triunfo da razão sobre o caos primitivo.
Se opondo à tragédia fundadora do ocidente que inaugura a concepção da unidade do sujeito ocidental no homem Édipo, este novo mito de Grace Passô funda uma epistemologia, não mais centrada na imobilidade e unidade do ser, mas justamente no seu oposto, na pluralidade. Apesar de caminhar em direção a definição de uma identidade, a voz de Grace está o tempo todo em debate e conflito consigo mesma, com os outros, com seu próprio corpo, em um constante estado de mutação que demonstra que os caminhos trilhados para conquista e compreensão de si são árduos e dolorosos. A identidade contém em si um paradoxo, uma faca de dois gumes. Funciona como ferramenta de libertação, positivando de maneira afirmativa as vivências e formas de ser, mas também pode servir de grilhões quando usada para limitar os corpos às certas categorias, estereótipos e nichos. As perguntas que Grace Passô parecem nos colocar é, afinal, o que pode uma voz? O que pode um corpo? Que vozes são geralmente ouvidas? Quais corpos são vistos? Pode um corpo transbordar-se para fora de si?
Passô positiva o vagar, o movimento, os lugares limiares, o intercâmbio entre os corpos e vivências, a porosidade entre o humano e o animal, em um relação vertiginosa entre as palavras e as coisas. Como o Cavalo na Umbanda — que de certa forma se assemelha à prática da atuação — não se trata mais de identidade, mas sim de uma entidade, da capacidade de atravessar e ser contagiado por outros devires, de um corpo em eterna construção. Como afirmou o crítico e pesquisador Juliano Gomes, no debate durante o Festival, uma “ode a sincronia dos seres, da vida e da morte, com uma veia de politeísmo”.
Ao final, a atriz foge do palco, chega a sala de máquinas e se auto-imola entrando em uma espécie de comunhão carnal com os objetos inanimados. Da sua boca escorre um líquido preto semelhante a óleo — uma referência talvez à cena icônica de Helena Ignez cuspindo sangue no filme “A Família do Barulho”, de Bressane. O filme se encerra com Grace olhando fixamente para objetiva, dizendo “já sei quem ela é! Já sei! Ela é uma mulher, ela é negra! Ela está aqui diante de vocês hoje e gostaria de dizer que…” e de sua boca articulam-se palavras mudas que não são audíveis nem compreensíveis. Cena simbólica, representa o silenciamento aos quais os corpos negros e femininos estão sujeitos historicamente, como também afirma a aporia da existência humana, onde as palavras, a linguagem e as imagens nunca poderão dar conta plenamente. A carne é vaga, mas também é vasta.
Referências:
MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. A decomposição da figura humana de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2002.
SONTAG, S. Contra a Interpretação. Porto Alegre: LP&M, 1987.