23h, a hora de inovar

Karine Silva
Bem-Te-Vi
Published in
7 min readJun 27, 2018

Segundo afirma a própria emissora, a Globo utiliza a faixa das 23 horas para “ousar”. No horário, explorado com mais intensidade desde 2011, já assistimos a tramas com temáticas como sexo, drogas e violência com abordagens muito mais fortes e diretas do que em outros horários. Além disso, são comuns narrativas mais curtas, com menos personagens e núcleos — características típicas de séries.

A vontade de utilizar o horário para inovar se expressou também pelos formatos: se até 2014 vimos remakes de quatro telenovelas — O Astro, Gabriela (2012), Saramandaia (2013) e O Rebu (2014) — em 2015 foi a vez da estreia de séries inéditas, começando com Verdades Secretas. Em 2017, porém, estreou a primeira produção nomeada supersérie da TV brasileira, Os Dias Eram Assim.

Após a estreia da trama não faltaram perguntas, tanto da crítica especializada quanto da audiência: mas afinal, o que é uma supersérie? o que ela tem de diferente de uma novela ou de uma série? por que uma nomenclatura própria?

Virginia Mousler, fundadora e diretora da agência de pesquisa WIT (World Information Tracking) afirmou, em evento promovido no Brasil pela International Academy of Television Arts & Sciences em 2015, que as superséries estão entre as grandes tendências do mercado televisivo internacional.

Segundo a definição de seus realizadores, elas são produções localizadas entre as séries e as telenovelas, se diferenciando principalmente pela duração — uma média de setenta capítulos, número maior que o de uma série, menor que o de uma telenovela. A estratégia do formato seria atrair públicos mais jovens, especialmente os consumidores de TV por streaming, sem perder os cativos das tradicionais novelas.

Questionada pelo portal UOL sobre as razões para a mudança da categoria das produções,a Globo afirmou que percebeu, com o passar do tempo, uma mudança na linguagem das narrativas, que as tornava mais próximas de séries.

“Com o tempo, e todos os nossos investimentos em séries, passamos a olhar para o horário de 23h de outra forma. Por tudo o que horário permitia e pelo espaço diferenciado, levamos para esses produtos uma linguagem mais de série. Foi aí que percebemos que havíamos criado um produto híbrido: ele tinha valores de novela (a história aberta e longa), mas também várias características das séries (o arco dramático, o desenvolvimento das personagens e poucos núcleos).” (Declaração da Rede Globo — Via Portal UOL online).

A afirmação da Rede Globo nos leva a pensar que o termo supersérie é apenas uma nova nomenclatura — provavelmente com fins comerciais — para definir um formato narrativo híbrido que, de certa forma, já está consolidado na faixa das 23h mesmo antes da existência do termo “supersérie”. O que no âmbito da produção se anunciava como inédito acabou não sendo tãão novidade assim.

Comentário de Nilson Xavier. Fonte: Portal Uol

Se em termos narrativos a supersérie não é exatamente inovadora, o que podemos dizer de seu tratamento estilístico? Walter Carvalho, diretor de fotografia já frequente na faixa das 23h, afirmou em entrevista à Folha de São Paulo: “Nesse horário, quem está diante da TV está mais concentrado. Passa das 22h, um número de pessoas desliga a TV. Passa das 23h, outro número desliga. Quem fica não está jantando nem conversando. Está desejando ver aquilo. Você pode ter uma linguagem mais complicada”.

Os Dias Eram Assim: o documento na ficção

Até então, a Globo já exibiu duas superséries: a já citada Os Dias Eram Assim, em 2017 e, em 2018, Onde Nascem os Fortes.

Os Dias Eram Assim foi uma supersérie que contou a história de um romance entre jovens de duas famílias antagônicas durante o período da ditadura. O relacionamento é cheio de encontros e desencontros, sendo afetado pelos acontecimentos políticos do período (a trama se inicia em 1970, bem próximo ao início dos Anos de Chumbo) .

Embora a emissora tenha declarado que o foco do produto seria o romance, o pano de fundo da Ditadura Militar tomou os holofotes. Até então, somente outras três produções haviam tomado o período como o mote para a narrativa (Anos Rebeldes (Globo, 1992), Queridos Amigos (Globo, 2008), Amor e Revolução (SBT, 2011).

Especialmente no início da supersérie, quando os índices de audiência eram maiores, cenas que remetiam à repressão eram muito frequentes na narrativa.

As escolhas estilísticas, ou seja, o arranjo específico entre imagem e som, utilizados para contar a história, trouxeram um aspecto documental à obra. Com apoio da equipe de pesquisa da emissora, investiu-se em uma fotografia próxima às dos anos 70 e 80, período em que a trama é ambientada. Fotos e vídeos de arquivos se mesclaram às cenas dos atores, ajudando a construir a narrativa.

Na própria abertura da supersérie, o recurso foi bastante utilizado. A trilha sonora, cantada pelos atores e composta para Os Dias Eram Assim, tem um tom melancólico e por vezes tenso, que ajuda a compor a atmosfera de tempos difíceis.

No GShow, o diretor artístico da trama, Carlos Araújo, destacou:

“Quisemos mostrar, através de imagens reais de uma época conturbada da nossa história político-social, um pouco do que as pessoas conviviam no dia a dia. A trama da supersérie fala exatamente de como tudo o que estava acontecendo refletia diretamente na vida das pessoas comuns. Usamos imagens de comportamento social em contraste com a repressão militar e manifestações pela democracia, mostrando um pouco do que todos tiveram que conviver nesse período complicado da nossa história. A forma desconstruída no desenho da montagem cria essa costura entre os fatos e mostra como tudo influenciava o todo na vida dos brasileiros”.

Mesmo em cenas gravadas com atores, a preocupação estética no programa foi forte. Em uma das cenas em que o personagem Gustavo (Gabriel Leone) é torturado, a iluminação e os planos abertos são fortes elementos narrativos. O tom sombrio e desumano das ações são visíveis e contados pela imagem, sem necessidade de maiores explicações.

Onde Nascem os Fortes: um novo sertão televisivo

Onde Nascem Os Fortes, a segunda supersérie da Globo, conta a saga de uma jovem aventureira em busca de seu irmão gêmeo, desaparecido no sertão do nordeste. A procura envolve amores impossíveis, vingança, ódio e perdão, e tem como pano de fundo as regras de uma região em que, às vezes, quem vence é o mais forte e não a lei.

A produção artística ganhou destaque entre a crítica especializada tanto pelo tempo dedicado (a equipe passou mais de seis meses imersa no sertão paraibano), quanto pela preocupação em mostrar não só a típica aridez, mas também uma contraposição com a modernidade na região.

O trailer oficial, por sua vez, nos conduz a uma narrativa tensa e marcada por conflitos, com uso de trilha sonora marcante, luzes estouradas, que reforçam o clima quente da região e a intensidade dos conflitos que nela acontecem, planos fechados nas expressões dos personagens, capazes de nos apresentar seu medo e sua preocupação, que estão nesse contexto de violência e ausência da lei.

Um espaço de inovação na TV

Analisar a função de recursos de estilo — som, iluminação, movimentos de câmera, planos, entre outros — empregados em uma narrativa requer, com certeza, muito mais detalhamento do que o que utilizamos aqui. Existem, inclusive, grupos de pesquisa que se dedicam com afinco a isso, como é o caso do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Televisualidades — COMCULT, da UFMG.

Essa breve reflexão, porém, chama atenção para uma coisa: se em termos de sua natureza narrativa não se tem certeza sobre qual é o destaque das superséries, é inegável a preocupação em utilizar som e imagem a favor da construção de uma narrativa mais complexa e sensorial. Em promover o afetamento e a assimilação por meio de recursos visuais e não só pelo diálogo.

Nesse movimento, a importância de diretores artísticos, de fotografia, entre outros, cresce cada vez mais na TV — algo novo para o meio, onde normalmente os destaques são os autores. Tais mudanças estão relacionadas a mudanças de modos de produção, consumo, técnicas, e certamente a uma negociação com os públicos para aceitação de novas formas de produzir TV. Afinal, não existe televisão sem que a audiência se identifique com a mesma.

Entre tantos fatores, uma coisa é certa: cada vez mais, se enfraquecem críticas que desprezam a potencialidade artística da TV e a classificam como um meio sem preocupações estilísticas. E a faixa das 23h está aí para isso.

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