55 anos de O Sheik de Agadir e o lugar de Glória Magadan na telenovela

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7 min readJul 29, 2021

Douglas Colarés*

Antes da telenovela brasileira se estabelecer no estilo naturalista (mais próximo do cotidiano), “O Sheik de Agadir” foi uma das grandes representantes da linha de histórias de capa e espada, adotada pelas emissoras de tevê nas décadas de 1960. Mas por trás do melodrama rasgado, um ingrediente especial: a adoção de uma narrativa policial, no uso do chamado “Quem Matou”? — tradução da expressão literária “Who done it?”.

Henrique Martins (o Sheik), Yoná Magalhães (a mocinha), Amilton Fernandes (o protetor) e Marieta Sevo (a vilã) encabeçavam o elenco

Completando 55 anos de sua estreia neste mês de julho, “O Sheik de Agadir” foi um dos primeiros sucessos da então inaugural Rede Globo, o que conferiu considerável poder à autora cubana Glória Magadan, uma das mais relevantes escritoras de telenovelas latino-americanas. Posteriormente, sua influência foi minguando com a chegada de Janete Clair à Globo, levando à guinada da produção teledramatúrgica para como conhecemos hoje. Abaixo um pouco do que trata a trama da novela:

Durante a ocupação nazista na França, o aventureiro sheik árabe Omar Ben Nazir viaja ao país para propor aos alemães uma aliança, tornando-se assim inimigo do capitão francês Maurice Dumont. Durante sua estadia, o sheik conhece e se apaixona pela aristocrata francesa Jeanette Legrand, noiva do Capitão Dumont, que o repudia. O sheik rapta Jeanette e a leva para Agadir, cidade do Marrocos na costa do Oceano Atlântico, com a intenção de transformá-la em odalisca. Prisioneira, ela tenta fugir várias vezes. A princesa árabe Eden de Bassora, apaixonada pelo sheik e louca de ciúmes, passa a fazer todo tipo de maldade contra Jeanette. O capitão Dumont não se dá por vencido e resolve resgatar a noiva partindo para o deserto e enfrentando os árabes ocultos em seu caminho (Reprodução: TELEDRAMATURGIA).

A referida trama adaptou o romance “Taras Bulba”, de Nicolai Gógol, sendo uma das mais representativas da “Era Magadan”: recheada de raptos, vingança, espionagem, fuzilamento, acidentes. Além de grandes duelos — como o embate final do Sheik e do Capital pelo amor de Jeanette — ambientados em um deserto arábico (na verdade, um areal fluminense). Uma obra figurada como narrativa de excesso, conforme o melodrama clássico é definido por autores como Peter Brooks, Ivete Huppes, Ben Singer e Jesús Martín-Barbero. Um sedutor excesso presente nas caracterizações e expressões de vilões (aqui, princesas cruéis e nazistas usando tapa-olhos), no modo de atuação exagerado, nas personagens sempre no limite (jovens sequestradas, guerrilheiros no front…), na perseguição ao bem, em viradas espantosas e na estética extravagante.

Mas por trás dessa estrutura rígida, Magadan propôs uma das primeiras hibridizações do gênero ao construir o mistério de um assassino de luvas pretas. Embora não seja o primeiro “Quem Matou?” das telenovelas, a obra foi pioneira na criação dos seriais killers. Assim, nasceu o “Rato”, antológico personagem que estrangulou metade das personagens de “O Sheik” e causou comoção no público quanto à sua identidade.

A criação de um subgênero

Embora o melodrama e o policial apresentem distinções como gêneros — o primeiro privilegia um forte efeito de primazia e acesso à psique das personagens, enquanto o segundo estabelece uma narrativa restrita em informações –, eles se aproximam ao passo que obedecem uma estrutura canônica, com construção de catarses deflagradas em viradas espetaculares e por celebrarem a consagração do final feliz, em um cenário que os criminosos são desmascarados e a ordem é restaurada.

Mais adiante, a inovação de Magadan se espraiou para a telenovela realista. Em um levantamento para esse ensaio, foram localizadas mais de 70 telenovelas que lançaram mão do referido artifício nas sete décadas da tevê — uma média de uma obra por ano. Por volta de 50 dessas produções são referentes à Rede Globo, e mais da metade no horário das 20h/21h, que historicamente compreende tramas codificadas como realistas e, notadamente, mais violentas. Já as produções das 19h, marcadas como comédias românticas, apresentam menos de dez produções do tipo. Janete Clair, Gilberto Braga, Silvio de Abreu e Walter Negrão foram os maiores adeptos desse artifício na emissora. Cristiane Fridman, outra fã desse subgênero, contou com a fatídica pergunta em ao menos cinco de suas obras na Record TV. O canal, aliás, recorreu à tática por praticamente 15 anos, em mais de 15 produções — quase todas centradas em violência e suspense.

As principais emissoras comerciais do país — excetuando as nichadas como MTV Brasil, TV Cultura, TV Aparecida etc, — recorreram às narrativas policias: ou seja, Tupi, Excelsior, TV Itacolomi, Bandeirantes, SBT, Manchete e até mesmo a CNT (que nunca produziu telenovelas, mas contou com um seriado policial) flertaram, ainda que em menor grau, com o “Quem Matou?”.

Célebres se tornaram alguns desses “Quem Matou?” ao ponto de “deixarem ruas desertas” na ocasião do crime ou da revelação do assassino. Janete Clair brilhantemente conduziu a curiosidade do público quanto ao assassino de Salomão Hayala em “O Astro” (1977). Até o presidente Ernesto Geisel. tentou arrancar, em vão, do diretor Daniel Filho a identidade do criminoso. Mas foi um crime ocorrido na véspera de Natal de 1988 que entrou para a história: três tiros mataram aquela considerada a maior vilã de telenovelas brasileiras, fazendo o Brasil indagar: “Quem Matou Odete Roitman?” Com tantos eventos marcantes, o jornal “O Tempo” listou os principais mistérios que envolveram o público.

Infográfico com principais “Quem Matou”? das telenovelas (O TEMPO, 2019).

O sheik louro e o assassino raquítico

O “O Sheik de Agadir” foi a primeira produção a colocar o público no papel de detetive por semanas. Enquanto tecia romances lacrimosos e consolidava uma polarização moral numa batalha entre nazistas e revolucionários, Magadan desenhava seu quebra-cabeças. Quem poderia ser o Rato? De que lado da guerra estava? Poderia ser uma mulher, mesmo os assassinatos sendo cometidos com força física? O apelido, aliás, aludia à rapidez da figura em cometer crimes sem ser pega. Dentre tantas, uma das vítimas do Rato foi o personagem de Sebastião Vasconcelos, eliminado por ser considerado parecido com Fidel Castro (como mencionado, a autora era cubana, exiliada do regime de Castro).

Conforme as mortes se avolumavam, o número de suspeitos diminuía e a curiosidade do público crescia. A emissora chegou a lançar um concurso, buscando premiar quem acertasse o assassino. Mas a resolução foi tão inesperada que ninguém logrou acertar. O Rato — ou poderíamos nomear de Rata — era ninguém menos que a princesa Eden, primeiro papel de Marieta Severo na TV. Bastante franzina e fingindo uma invalidez — andando pelo deserto em uma cadeira de rodas — a resolução foi outra extravagância da mente da autora, despida de qualquer “realismo” na escrita da obra.

Eu me lembro de uma luva preta, que era o Rato. Apareciam só as luvas pretas e enforcavam uns homões enormes. Eu acho que escolheram a princesinha porque era tão absurdo! Ninguém podia pensar jamais que aquela fragilzinha ia enforcar e fazer tudo o que fez. Mas tinha essa coisa maravilhosa que era a liberdade total na ficção que a Glória Magadan tinha. Era muito bom! Era a fantasia mais rasgada mesmo! Com um texto muito rebuscado, a linguagem muito fora do coloquial e do que virou a linguagem da televisão quando ela se aproximou da realidade brasileira, do nosso cotidiano […] (Marieta Severo para o MEMÓRIA GLOBO).

Contando com mocinhas sofridas e passivas, impiedosos criminosos e inverossímeis sheiks loiros de olhos azuis, o melodrama e o policial traçaram uma convergência na resolução dessa telenovela: a punição dos maus e a promessa que a verdade e o bem sempre triunfam! Também como convenção de gênero, a trilha impactante — elemento estilístico predominante no melodrama e no policial — se tornou uma das marcas da produção, permitindo que o espectador previsse a ação do assassino.

Ainda que suas obras fossem lidas como rocambolescas, Magadan possuía o método no respeito a canonicidade do policial clássico, respeitando determinadas convenções que indicam que o culpado deve ter relevância na história, ou seja, não deve ser uma personagem que surge no final; que há somente um assassino para os diversos crimes; que o culpado não deve ser um criminoso profissional (matador de aluguel, cangaceiro etc). E as pistas postas de forma a possibilitar que o público decifre o mistério.

O Rato em ação: o primeiro serial killer conhecido das telenovelas

E embora Magadan tenha sido rechaçada pela crítica e, depois, relegada como criadora de alguns clássicos da nossa televisão, ao lançar mão do artificio dos misteriosos assassinatos, propiciou a construção de um subgênero policial na teledramaturgia brasileira. Tática essa recuperada por diversos autores até hoje, ora como elemento norteador da trama, como o caso de “O Rebu” (1974), “A Próxima Vítima” (1995), “Vidas em Jogo” (2011); ora com o intuito de aumentar os índices de audiência, tal qual “Cavalo de Aço” (1973); ou como modo de driblar a saída de um ator da produção, observável em “Véu de Noiva”, em um dos mais reconhecidos usos do “Quem Matou?”.

Glória Magadan no auge da carreira

Naturalmente, não foram só essas as contribuições de Magadan. Na Globo, desempenhou funções de escritora, produtora e supervisora, sendo responsável direta pela industrialização da produção televisiva. O recurso popularizado por “O Sheik” seguiu em voga: Mais de 50 anos depois, “Salve-se Quem Puder” (2020–2021), igualmente tomou de empréstimo a sua receita para criar um melodrama de grandes paixões, vilões terríveis, aliado a um jogo de detetive. Mais tarde, a cubana foi para os EUA e México onde criou clássicos até hoje refeitos, em que seu estilo ainda impera. Propiciando, assim, a manutenção de uma imaginação melodramática. Não é acaso o Maga em seu sobrenome!

*Mestrando pelo PPGCOM/UFMG, pesquisador integrante do COMCULT.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com