A greve dos caminhoneiros na TV: uma disputa (desigual) entre personagens

GRUPO COMCULT UFMG
Bem-Te-Vi
Published in
7 min readJun 22, 2018
Foto: Reprodução Folha de São Paulo

Por Gober Gomez.

“O país refém da paralisação dos caminhoneiros.”

Foi assim que Carlos Tramontina, âncora do Jornal da Globo, abriu a escalada na edição do dia 24 de maio. A notícia era sobre o acordo entre Governo e lideranças do setor de caminhoneiros, que desde outubro do ano passado têm feito uma série de reivindicações. Entre elas, a redução a zero dos impostos sobre o diesel.

Na busca por arranjos nas políticas que definem os custos dos serviços e pela intervenção do Estado na sua regulação, as associações de caminhoneiros autônomos informaram, na terceira semana de maio, a interrupção total de atividades e por tempo indeterminado. Daí, a necessidade de acordo.

Na mesma edição, porém, o telejornal enunciou a fragilidade do acordo em que o governo se comprometia a cumprir as exigências dos manifestantes. Afinal, ao mesmo tempo em que se falava de conciliação, os bloqueios e concentrações dos caminhoneiros nas principais estradas continuavam, sugerindo os resultados inócus da negociação.

Voltando à edição do dia 24 do Jornal da Globo, após a escalada foram apresentados um resumo da jornada de negociação, os temas pactuados, as estratégias adotadas pelo governo para providenciar soluções, que geraram contradições entre diferentes instâncias.

Entre essas, destacam-se os os conflitos entre a decisão do Governo Federal e o Senado. Enquanto o primeiro concordou em bancar as perdas que a Petrobrás possa ter em função da redução de impostos sobre os caminhoneiros, o segundo debatia para excluir esse ponto acordado e reformar o projeto.

Em meio a tantos dilemas, os dias foram passando e a greve continuou, levada por algumas das associações que não concordaram com as medidas propostas pelo governo. Estabeleceu-se então, um clima de incertezas, ambiguidades e mal-estar social.

E qual a importância dos telejornais no meio disso?

Em meio a essa problemática, os telejornais foram palcos de visibilidade, demonstrando, mais uma vez, a sua importância como instituição social para articular a sociedade em assuntos que interessam ao desenvolvimento de toda a nação. Ou seja, suas narrativas fornecem pistas para que as pessoas compreendam a realidade e formem opinião sobre diferentes acontecimentos, inclusive esse.

Partindo dessa premissa, que entende a TV e o telejornal como mediações na construção de sentidos coletivos, nos interessa saber: qual foi a visibilidade dada aos atores dos conflitos e como eles aparecem no telejornal?

O Jornal da Globo, no dia 24, estruturou a sua narrativa definindo três personagens centrais: um governo inoperante, uma sociedade vítima e os grevistas sequestradores.

Para este raciocínio, fizemos uma conexão com o que autor Guillermo Sunkel aponta no livro Razón y Pasión*. Ele afirma sobre a existência de uma matriz simbólico-dramática nos jornais impressos e que, segundo o nosso entendimento, também estrutura a narrativa do telejornalismo. Essa linguagem opta por interpretar o mundo em termos maniqueístas, como bem e mal, certo e errado, bonito e feio.

Nesse contexto de predominância do melodramático, as imagens são importantes elementos para contar as histórias, que se baseiam menos na explicação e mais na demonstração de antagonismos.

Um governo inoperante

As principais vozes que apareceram na cobertura da negociação do acordo feita pelo Jornal da Globo vieram do governo e de especialistas. Os governantes aparecem como voz legítima para falar de política. Ao mesmo tempo, porém, fica evidente a falta de preparo e incapacidade de coordenação entre os seus órgãos. Em resumo, a inoperância para assumir um projeto de nação à altura do que os tempos contemporênos demandam.

Assistimos a vozes de autoridade, como o Ministro-Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, com discursos incongruente sobre a greve, o patriotimso e a família, buscando apaziguar os ânimos. Eduardo Guardia, Ministro da Fazenda, por sua vez, aparece com linguagem técnica, improvisando sobre a possível solução do problema.

Caminhoneiros, os “sequestradores” do país

“O país refém da paralisação dos caminhoneiros.” Esta foi a visibilidade conferida pelo Jornal da Globo aos grevistas. Os caminhoneiros não tiveram chance de interpelar ou contestar o que foi dito pelos funcionários do governo.

A cobertura da greve em si é feita nas ruas, com planos panorâmicos, contra-plongée, feitos em helicópteros, mostrando o tumulto causado por caminhões enfileirados nas rodovias e sugerindo um cenário sem legitimidade.

A inexistência de imagens dos caminheiros no telejornal apontam para a ausência de uma interpretação e justicativa da greve. O foco fica nas falas de caminhoneiros apresentando seus périplos, dificuldades e motivações pessoais, por meio de relatos emotivos como razão de apoio à paralisação. Por outro lado, O telejornal posiciona os grevistas como algozes ou bandidos, que tomam a sociedade toda como refém e complicam a vida cotidiana.

Visibilizado a partir da voz institucional do tejornal em questão, a narrativa telejornalística define quem é o vilão da história. No lugar dos personagens Caminhoneiros, vemos em cena a sua ação: o bloqueio das estradas, a instauração do caos e os prejuízos causados à economia.

A população brasileira como refém

A cobertura do dia 24 de maio explora ainda o drama do dia-a-dia das pessoas, que enfrentam obstáculos para resolver suas atividades cotidianas. O que era rotineiro tornou-se uma verdadeira odisseia nos dias de greve: a escassez e alta de preços nos alimentos assim como da gasolina, a falta de transporte público…

Apesar de todos esses problemas serem anteriores à greve, eles se intensificaram durante os dias de paralisação. A instantaneidade da notícia privilegia a presentificação dos testemunhos das “vítimas”, que desabafam sobre seu drama individual, sem dar lugar para algum questionamento que leve os entrevistados a se posicionarem sobre a situação da greve e a conjuntura política.

Assim, a notícia empobrece e fragmenta a narrativa, dificultando a construção de um senso de coletividade. O que parece muito familiar na sociedade global contemporânea, baseada em vínculos sociais fragmentados e em subjetividades hiper-individualizadas.

Por outro lado, os intermitentes lampejos dos cidadãos que, a partir de seus próprios meios e repertórios apoiaram a greve, como o grupo de pessoas que “espontâneamente” impediu o abastecimento de gasolina bloqueando a entrada no posto, aparecem de modo circunstancial, um apêndice na notícia. Embora haja uma força do performance (gestos, movimentos, barulhos), a instantaneidade apaga a possibilidade o de indagar sobre um exercício de cidadania.

Por que o telejornal falhou?

Na edição do Jornal da Globo do dia 24 de maio, o que vimos foi que o telejornal atua como uma mediação dentro do institucionalmente legitimidado na democracia formal brasileira. Ou seja, embora ele evidencie as fraquezas, a falta de preparo e de eficiência do governo, ele não avança em debates como o da dependência do Estado em relação às dinâmicas do mercado global ou sua total aderência às diretrizes estabelecidas pelas instituições financeiras de abrangência planetária.

Ao mesmo tempo, há dificuldade por parte do governo — o personagem legitimidado pelo jornal — em levar a sério e inserir nas narrativas as demandas dos movimentos sociais, as mobilizações e manifestações coletivas pelo descontentamento de setores dinamizadores da economia. Afinal, isso exigiria uma reforma política de fundo.

Nesse dilema, seria papel dos telejornais promover uma reflexão mais aprofundada dos fatos. Ao invés disso, o que vemos são lampejos, imagens circunstanciais dos grevistas e dos cidadãos que os apoiam. O que ficou enquadrado, por um lado, foi a luta isolada de setores por interesses particulares, sem desdobramento de suas demandas a projetos de maior fôlego e em diálogo com outros grupos sociais.

E por que isso dificulta o fortalecimento de um maior mobilização?

Para refletir aqui sobre qual é o problema de uma cobertura individualizada de fatos isolados e com omissão de alguns personagens, recorremos a Raymond Williams**. Segundo o autor, para o fortalecimento da democracia e da nação é imperativo a construção de uma cultura comum que atenda a uma ética da solidariedade (diferente à ética do serviço, de vocação burguês) e na qual a diversidade e singularidade, seja a verdadeira “escala humana”, para equilibrar as forças que ainda legitimam as desigualdades e as injustiças.

Nesse contexto, é necessário pensar os meios de comunicação como lugares de disputa política e cultural, uma vez que eles constituem os modos de interpelação dos sujeitos e de representação dos vínculos que coesionam a sociedade. E foi justamente o que não vimos.

*Sunkel, G. Razón y pasión en la prensa popular: un estudio sobre cultura popular, cultura de masas y cultura política, Santiago de Chile, ILET, 1985

**Williams, R. Cultura y Sociedad: 1780–1950, de Coleridge a Orwell, Buenos Aires, Nueva Visión, 2001.

--

--

GRUPO COMCULT UFMG
Bem-Te-Vi

Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com