As crianças que se banham na maré de sangue

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Bem-Te-Vi
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6 min readSep 14, 2023

Por Davi Alfeu, Douglas Herculano, Elen Batista, Felipe Silva e Letícia Oliveira.*

Frame de “Morri na Maré” (Foto: Reprodução/Agência Pública)

Existe jornalismo neutro? Isento de subjetividade e escolhas editoriais? O gênero videorreportagem, que mistura elementos tradicionais do jornalismo televisivo com contribuições do gênero documentário, coloca em discussão qual a importância do jornalista em cena, questionando se a ausência dessa figura é sinônimo da inexistência de intencionalidade. “Morri na Maré” é uma videorreportagem da Agência Pública, financiada por crowdfunding e publicada em 2014, que aborda as principais consequências e impactos da violência policial no combate ao tráfico de drogas, em especial no Complexo da Maré, norte do Rio de Janeiro. Com maior foco nas crianças e adolescentes, a obra não coloca a figura do jornalista diante das câmeras, pelo contrário, esse permanece atrás do aparato técnico e o tempo todo “mudo”.

Críticas à violência, cenas de luto, depoimentos confusos, palavras inflamadas, medo e resistência, são os principais elementos da videorreportagem em questão. Uma contínua exposição do cotidiano que se segue após o absurdo, a calmaria depois da tempestade e a necessidade de continuar em frente, no mesmo cenário que há pouco foi de terror. As escolhas videográficas são feitas com bastante atenção aos detalhes. Em “Morri na Maré”, é estabelecida maior aproximação com as crianças e jovens que estão ali, narrando seus medos, revoltas e descontentamentos. Suas vozes são ouvidas sem mediações ou controle aparente. São retirados de cena os narradores, entrevistadores e repórteres. Dessa forma, a audiência não sente qualquer distanciamento com os testemunhos daquelas vítimas, que têm suas vozes e olhares como únicos destaques. O resultado é a criação de um protagonismo absoluto das crianças da Maré.

Mesmo que exista um controle jornalístico, de certa forma inerente às produções no meio, esse não fica explícito na obra. Ele é sutil e opera como fio condutor invisível, utilizando de pequenas escolhas conscientes. As mãos dos autores se mostram na escolha e ordenamento dos trechos, na forma de expor e no uso de informações. Poucas e essenciais, elas são apresentadas em lettering, nas passagens, para manter a condução da narrativa.

Frame de “Morri na Maré” (Foto: Reprodução/Agência Pública)
Frame de “Morri na Maré” (Foto: Reprodução/Agência Pública)

A videorreportagem apresenta um caráter de proximidade ao fazer cinema e isso faz com que seja necessário analisar elementos de sua produção relativos a essa característica. É preciso prestar atenção e compreender a forma de filmar, as escolhas que vão dar qualidade ou falta de qualidade proposital à certas imagens, a escolha dos personagens que serão apresentados e destacados, de tudo aquilo que se escolhe colocar na tela, isto é, o mise-en-scene (posto em cena, em francês) da obra. Esse é o foco central da videorreportagem como gênero jornalístico: ela usa da mise-en-scène, um elemento característico do cinema (documentário ou ficcional) como elemento de expressão jornalística, já que ela está enquadrada dentro de uma produção de cunho jornalístico. Filma-se o cotidiano, deixa-se as pessoas serem as pessoas em frente à câmera.

O filmar sempre vem de baixo. Em algumas cenas, as vítimas ocupam toda a tela, os policiais são mostrados de maneira imponente, mas, ao mesmo tempo, distantes. As crianças sempre estão centralizadas, sejam em seus medos ou em sua inocência. Vítimas, vilões e heróis são apresentados com clareza. Toda a construção e narração são realizadas no dia-a-dia e na rotina do Complexo da Maré, que possui marcas invisíveis e internas, como afirma a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello.

Um aspecto característico dos documentários, que é o uso e exploração de diferentes sonoridades, são usados aqui para conduzir as emoções do espectador. A videorreportagem se apropria desse elemento para produzir formas de acessar e compreender o que está sendo exposto na tela. Normalmente, gêneros jornalísticos tradicionais recorrem apenas ao som da captura e demais sonoras das imagens. No entanto, “Morri na Maré” emprega melodias tristes e outras selecionadas para situar o espectador, definir quais emoções deve sentir, em cada frame, e aumentar a dramaticidade do que está sendo exposto. Há uma reação emocional gerada no espectador através dos elementos sonoros em conjugação aos elementos visuais.

A videorreportagem sempre teve o caráter de se colocar no meio daquilo que é tema. Em “Morri na Maré”, não é diferente. As imagens e os relatos são capturados no coração do Complexo, colocando o holofote nos moradores. Isso vai de completo contraste com as imagens que a mídia tradicional veicula quando aborda a mesma situação, tiradas de fora e de longe, de forma que as pessoas não passam de borrões e pequenos detalhes. Imagens que não geram empatia, justamente por sua distância. Em contrapartida, a videorreportagem se apresenta como uma forma de ver o que “realmente” acontece no Complexo da Maré, reconhecendo a humanidade das personagens. A decisão de onde se filma importa, de fato.

Essa humanidade é ainda mais captada nos sorrisos. A filmagem de baixo e de perto, o principal elemento do mise-en-scene da obra, se junta ao contexto para gerar fortes imagens de resistência. Ao longo da videorreportagem podemos perceber como os sorrisos são mais expressivos conforme mais jovens forem as crianças filmadas. Essa alegria demonstra como, em alguns casos, o simples fato de ser colocada em frente da câmera, de receber alguma atenção ou se sentir protagonista faz toda a diferença quando parece que o mundo inteiro a esqueceu. O sorriso em tela costuma conquistar e convencer sem precisar dizer nada.

Frame de “Morri na Maré” (Foto: Reprodução/Agência Pública)

A estruturação também é interessante. A videorreportagem tem uma contextualização dramática da situação, trazendo cenas de críticas e luto, de modo mais generalizado. Em seguida, são colocadas em destaque as cicatrizes de diferentes membros de uma mesma família e a forma como lidam com o ocorrido. Os filhos, já adolescentes, são aqueles que mais demonstram revolta e indignação. Não há sorrisos por aqui. Por último, é colocada em destaque a escola alternativa Uerê e como os adultos tentam manter as crianças o mais saudáveis possível, almejando que elas coloquem para fora aquilo que pode corrompê-las por dentro. O desafio do projeto é desenvolver as crianças de maneira satisfatória, mesmo que o mundo ao seu redor desabe. É preciso tentar manter os sorrisos que restam.

Frame de “Morri na Maré” (Foto: Reprodução/Agência Pública)
Frame de “Morri na Maré” (Foto: Reprodução/Agência Pública)

Os autores da videorreportagem aliam à exposição da problemática uma sutil condução do espectador a diversos questionamentos. Como se manter humano e criança enquanto todo o resto é selvagem e adulto? Qual o futuro dessas crianças? A polícia compreende as consequências de suas ações? Por que tanta violência? Quando o resto do Rio de Janeiro e o Brasil vão fazer algo para mudar a triste realidade do Complexo da Maré? O que poderia ser diferente se a mídia abordasse suas temáticas de dentro, em vez de à distância? São todas questões que a produção levanta sem ao menos pronunciar uma palavra.

Percebemos, então, que a videorreportagem vai além dos limites do jornalismo tradicional, que é limitado em razão de seus aparatos técnicos e da sua relutância de chegar até lugares e comunidades sub-representadas. Esse formato jornalístico garante não só uma proximidade espacial, mas representativa também, uma vez que credibiliza as vozes das pessoas, não recorrendo a especialistas para provar que as vivências desses indivíduos são verídicas. É construída, cada vez mais, uma abordagem narrativa humanizada, fazendo com que os indivíduos sejam vistos e ouvidos pelas suas próprias expressões.

*Alunos do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com