Cidade Invisível é uma grande mistura? Um ensaio sobre os gêneros da série

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6 min readJul 28, 2023

Por Felipe Pellucci*

Imagem retirada da série Cidade Invisível (Netflix)

Depois de dois anos de espera, Cidade Invisível retornou para sua segunda temporada. A série, que ficou famosa por trazer lendas do folclore brasileiro para o contexto moderno, chegou ao top 10 da Netflix nas primeiras semanas. Apesar de sua recepção este ano ter sido mais polarizada, Cidade Invisível ainda manteve uma de suas fortes características da primeira fase, a mescla de gêneros audiovisuais para contar sua história. Porém, será que foi uma empreitada bem-sucedida?

Vamos recapitular:

A primeira temporada nos apresentou um universo místico que existia em paralelo com a realidade. O protagonista, Eric (Marco Pigossi), é um detetive do Departamento de Polícia Ambiental do Rio de Janeiro que se vê desolado com a morte de sua esposa Gabriela (Julia Konrad) em um incêndio florestal misterioso. A partir disso, ele começa a se deparar com diversos acontecimentos que o levam cada vez mais a adentrar o mundo das entidades folclóricas. Ao se envolver com figuras como Cuca (Alessandra Negrini), Iara (Jessica Cores) e outros personagens clássicos que habitam esse mundo, ele se vê dividido entre perseguir o mistério e estar presente para sua filha. Nesse dilema, descobre que sua trama está mais entrelaçada com o universo do que imaginava, e percebe que não tem mais como voltar atrás para sua vida normal.

O fim da primeira temporada deixou as coisas em um cliffhanger misterioso, com Eric aparentemente se matando para se livrar da entidade maligna Corpo Seco, mas sendo então declarado como “um deles” (uma das entidades) por sua falecida esposa em uma espécie de contato com a pós-vida. É dito que ainda tem uma jornada pela frente, e o personagem termina o arco com seu paradeiro desconhecido.

Imagem retirada da série Cidade Invisível (Netflix)

A segunda temporada retoma esse gancho com um pulo no tempo de dois anos, com Inês (Alessandra Negrini) e Luna (Manu Dieguez), filha de Eric, no Pará em busca dele. De cara, já somos apresentados ao tema central da temporada: a preservação ambiental e de terras de povos originários, que corre perigo devido ao garimpo ilegal promovido pela família Castro, os novos antagonistas. Alguns personagens importantes da primeira temporada deixaram saudades, como Camila (Jessica Cores) e a avó Januária (Thaia Perez), mas ao mesmo tempo conhecemos Bento (Tomás de França), Camila (Simone Spoladori), Lazo (Mestre Sebá), dentre outros.

Agora sobre os gêneros presentes na série:

Em seu primeiro ano, Cidade Invisível conseguiu criar uma narrativa interessante e diferente de outros seriados brasileiros da época. Sendo primariamente um drama policial sobre um detetive que se via preso em uma investigação ao prejuízo de sua família, apresentava semelhanças a outras produções como Bom Dia Verônica (2020-presente) nesse sentido. Mas colaborando com suas temáticas místicas, pudemos ver os episódios serem atravessados por estilos do terror e também da fantasia.

Imagem retirada da série Cidade Invisível (Netflix)

E o que esse hibridismo de gêneros agrega à série?

Bom, a dramaturgia de seriados deve ter como um dos objetivos conquistar a atenção do espectador. Ao misturar gêneros, a produção induz um conjunto de emoções diferentes do que o público teria assistindo uma narrativa mais tradicional em que isso não acontece. Uma série policial, caracterizada por crimes, investigações e perseguições, tipicamente causa tensão. Uma série de terror, dominada por perigos mortais, causa medo e repugnância. Uma obra de fantasia, repleta de criaturas e acontecimentos fora deste mundo, causa fascinação e encantamento. Nesse caso, misturando tudo isso em uma só produção, Cidade Invisível despertou bastante o interesse do público. Ao mesmo tempo em que ficamos engajados com Eric indo atrás de pistas sobre a morte de sua esposa, ficamos maravilhados com as magias de Cuca e Iara, e sentimos medo pelos queridos personagens que estão sob a ameaça fatal de uma força maligna.

Assim, pensemos em quais efeitos isso provoca no público. Em primeiro lugar: em uma produção em que os fatores dramatúrgicos e estilísticos se alternam ao longo dos episódios, uma maior atenção é exigida por parte do espectador para que a narrativa seja compreendida plenamente. Como disse, a obra teve uma repercussão internacional, mas falando especificamente do cenário brasileiro, acostumado há décadas a assistir produções nacionais que eram majoritariamente melodramas, narrativas complexas como ela engajam ainda mais o público e ganham ainda mais força.

Mas no fim das contas, o que Cidade Invisível busca alcançar com o uso de diferentes gêneros? As outras emoções são apenas coadjuvantes para a tensão investigativa central? Ou tudo busca criar uma conexão emocional maior da audiência que se compadece com as dores de Eric e sua família? O professor Marcel Silva (2015) propõe uma análise do drama seriado contemporâneo, no qual a série se enquadra, quando diz que a função primordial do mundo construído nessas produções é se deteriorar, revelando a verdade multiforme presente nos personagens e nas suas relações. De fato, o universo de Cidade Invisível se torna mais desconfortável para os personagens a cada episódio, chegando ao ponto em que o desejo de Eric de retornar para uma vida comum com sua filha já não é mais uma opção viável. É um mundo que o obriga ir além da lei e de uma moralidade que deveria seguir enquanto policial, e, em vez disso, agir conforme seu próprio arbítrio para tentar alcançar seus objetivos. Podemos inferir que essa moralidade duvidosa e o desenrolar de acontecimentos que expulsam cada vez mais os personagens de suas vidas causam uma intriga que atrai o espectador. A expectativa para entender o que vai acontecer no desfecho, qual vai ser a solução encontrada pelos personagens, encurralados em um contexto aparentemente impossível, é um dos fatores que prende nossa atenção.

Imagem retirada da série Cidade Invisível (Netflix)

Analisemos então a segunda temporada: tendo apenas 5 episódios, a narrativa tomou um ritmo mais acelerado, o que não é necessariamente um problema, mas dificulta um desenvolvimento e conclusão bem-sucedidos para os arcos. Nesse caso, considerando que houve a introdução de múltiplos personagens novos, alguns cujas histórias possuíam revelações e redenções, discutivelmente 5 episódios não foram o suficiente para construir uma boa temporada.

(para falar sobre as conclusões desses arcos, alguns exemplos do próximo parágrafo vão conter alguns spoilers, então cuidado caso não tenha assistido a temporada toda!)

Tomando Débora (Zahy Guajajara) como exemplo, a personagem começa como a grande vilã, fazendo parte da criminosa família Castro e também sendo uma entidade poderosa. Para conseguir o que quer, utiliza seus poderes de controle, manipula e sequestra. Ela se mantém assim até o começo do quinto episódio, em que descobre seu passado na comunidade indígena e acaba mudando de lado para enfrentar os Castro. Apesar de ser uma redenção bem-vinda, pareceu um pouco súbita considerando sua conduta nos capítulos anteriores. Ao mesmo tempo, certos personagens novos receberam pouco ou nenhum desenvolvimento, como a promotora Telma (Kay Sara), que se mantém a mesma indignada defensora da lei em basicamente todas as suas aparições.

Em meio a essa questão, também há o fato de que essa temporada inclina mais ainda para o lado do gênero fantasia para compor sua narrativa. Os últimos 2 episódios são fortemente compostos por cenas simbólicas, em que os personagens navegam por visões. Isso ocorre com Luna, que precisa enfrentar suas dores internas durante o ritual de cura contra o veneno espiritual, e Eric, que viaja com Matinta Perê (Emerlinda Yapário/Letícia Spiller) por cenários místicos enquanto ela busca fazê-lo ter uma visão mais ampla de sua jornada até ali. Esse mergulho no misticismo faz sentido para o contexto, mas podemos dizer que a alternância de tons dos episódios, que intercalam os segmentos mais abstratos em meio à conclusão de arcos paralelos resolvidos de maneira rasa, acaba criando uma certa confusão para o espectador acompanhar.

Em conclusão, acredito que apesar das dificuldades listadas, Cidade Invisível não se perdeu totalmente. A produção mais uma vez finalizou a temporada com um cliffhanger que desperta bastante interesse, aparentemente trazendo de volta à vida alguns personagens. Caso a série venha a ter uma terceira temporada, tem o potencial de juntar o que funcionou em suas duas fases anteriores e entregar algo muito bom, resta esperar e ver!

*Felipe Pellucci é graduando em Publicidade e Propaganda na UFMG, e membro do COMCULT.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com