Dois mundos, uma missão: esboços sobre autoria em originais da Netflix Brasil

GRUPO COMCULT UFMG
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12 min readMar 18, 2021

Por Mariana de Almeida Ferreira*

Diante das transformações na ecologia do audiovisual contemporâneo da América Latina, movimentadas constantemente pelas plataformas de streaming, um desafio tem emergido em nossas recentes discussões analíticas: é possível identificar marcas de autoria dramatúrgica a partir de decisões e articulações criativas formais que constituem as séries originais da região? Para tentar pensar sob essa perspectiva, elegemos duas obras da Netflix Brasil co-produzidas pela produtora brasileira Boutique Filmes e com criação de Pedro Aguilera: 3% (2016–2020) e Onisciente (2020).

À esquerda, Michele em 3% (2016). À direita, Nina em Onisciente (2020). Fonte: reprodução Netflix.

Com quatro temporadas, a série 3% é uma distopia que conta a história de um mundo dividido em que jovens de 20 anos que vivem no Continente, localizado na fictícia Amazônia Subequatorial miserável e escassa, precisam enfrentar o Processo onde apenas três por cento são aprovados para viver na abundante e desenvolvida ilha do Maralto. Mas na primeira temporada, na qual iremos nos concentrar neste ensaio para fins metodológicos de comparação, a execução do Processo e a paz e segurança do Maralto são ameaçados quando Michele (Bianca Comparato), integrante da Causa — organização clandestina que luta pelo fim das desigualdades e injustiças entre os dois mundos — se infiltra para cumprir uma missão: destruir o Maralto e se vingar de Ezequiel (João Miguel).

A primeira série brasileira da Netflix, inspirada em uma ideia original concebida em 2009 e com episódio piloto divulgado no Youtube, se tornou um fenômeno mundial e chegou a ser a série de língua não-inglesa mais assistida nos EUA. Com 8 episódios na primeira temporada e múltiplo protagonismo, 3% adota premissas da plataforma como as de representatividade e diversidade e think global, produce local ao se inspirar em especificidades brasileiras — a exemplo da ambientação em uma Amazônia destruída pelo ser humano, da desigualdade e dos processos seletivos de vestibular — para abordar temas universais como a meritocracia presente na política neoliberal do capitalismo, as injustiças sociais e a luta de classes dela decorrentes.

Onisciente, até então com apenas uma temporada de 6 episódios exibida, é narrada em um futuro próximo em que a cidade de São Paulo convive com o sistema Onisciente de vigilância e segurança da população, em que minúsculos drones acompanham e monitoram 24h os cidadãos individualmente, registrando e denunciando infrações e crimes cometidos e levando o índice de criminalidade a quase zero. No entanto, mesmo com tanta tecnologia avançada, o pai da protagonista Nina (Carla Salle), programadora trainee do sistema, é assassinado dentro de casa sem que o drone capture as imagens de quem fez isso e, com a ajuda de uma funcionária da Prefeitura, Judite (Sandra Corveloni), ela assume a missão de invadir o sistema de segurança (e a privacidade da população) para tentar descobrir quem matou seu pai e por quê.

Bastante associada a séries como Black Mirror, também produzida pela Netflix e que aborda os efeitos da tecnologia na sociedade em um futuro (ou presente?) próximo, Onisciente adota tons de suspense para discutir questões como privacidade e segurança, trazendo à tona um debate ético e moral, a partir de aspectos locais como a violência desenfreada que aflige as grandes metrópoles brasileiras, a exemplo de São Paulo onde a série é ambientada. Apesar de ter sofrido com a pouca divulgação por parte da Netflix, o que talvez colabore para um possível posterior cancelamento, a série tem sido bem recebida por público e crítica.

Uma tendência que temos observado no mercado contemporâneo de ficção seriada televisiva, principalmente com relação à Netflix, que é a plataforma de streaming que mais tem produzido essas obras atualmente, é a busca por produtoras e criadores independentes que possuem certo background profissional para determinados gêneros, como é o caso de Irmandade, da mesma produtora do filme Cidade de Deus (O2 Filmes), e das duas séries que escolhemos tratar aqui. Para além de ambas serem ficções científicas distópicas, o que mais 3% e Onisciente parecem apresentar de semelhanças que nos ajude a criar caminhos para pensar possíveis marcas de autoria na construção dessas obras? Como ponto de partida, no âmbito deste ensaio, a proposta é debruçar sobre aspectos do enredo como: espaço-tempo, linha de ação e emergência do tema.

Dimensões espaço-temporais e a divisão de mundos (inconciliáveis?)

Ao tentar pensar sobre padrões criativos que pudessem identificar uma possível linha autoral, considerando condições históricas de produção e convenções de gênero, as delimitações marcadas de espaço e tempo nas duas séries é algo que chama nossa atenção. Em ambas há uma nítida divisão de mundos/universos contrastados entre o atraso e o avanço, o arcaico e o moderno, a miséria e a abundância, o passado e o futuro. Tanto narrativa quanto estilisticamente, os dois mundos são colocados como paralelos e opostos, em que um justifica e reforça a existência do outro.

Como exemplo, podemos citar em 3% o modo como a vida da personagem Joana (Vaneza Oliveira) no Continente é mostrada no episódio 03, Corredor, onde ela vive sozinha, em condições vulnerabilidade social, sem laços afetivos sólidos, sendo perseguida e ameaçada de morte por uma gangue que deseja vingar o assassinato acidental de uma criança cometido pela personagem. Para ela, o Maralto é um refúgio de uma vida miserável e em risco constante, além de ser um modo de salvar sua própria pele da violência que lhe espreita. Em Onisciente mencionamos o modo como o personagem Ricardo (Marcello Airoldi) utiliza o espaço da cidade fora dos limites do sistema como meio de extravasar seus instintos violentos reprimidos. No episódio 02, Uma pessoa boa que fez uma coisa horrível, ele atravessa a fronteira de vigilância do Onisciente apenas para espancar, sem nenhum motivo concreto aparente, uma pessoa em situação de rua sem que nada nem ninguém flagre seu crime.

Para que o Maralto exista como um lugar próspero, farto e pacífico, é necessário evidenciar o Continente em um tempo-espaço de miserabilidade, violência, destruição, sem oportunidades de ascensão e melhoria de vida para os jovens; da mesma forma, para que o território em que o Onisciente opera seja organizado, seguro e avançado, o restante da metrópole precisa ser mostrado como barulhento, desorganizado, violento, atrasado, um “território sem lei”. Os espaços e temporalidades são assim mostrados em função da narrativa, para a melhor compreensão da história que está sendo contada ao telespectador.

Tanto o Maralto quanto o Onisciente são interpretados e tratados, por boa parte da população, como perfeitos, como um deus sem falhas e digno de reverências, admiração e até certo fanatismo. Para justificar o desejo e toda a preparação dos jovens para participação no Processo, se torna fundamental mostrar como era a vida deles fora do Maralto; para justificar a aceitação ou incômodo dos cidadãos à tamanha vigilância e ausência de privacidade, é fundamental mostrar os perigos e tentações aos quais estão sujeitos os que vivem ou atravessam fronteiras fora do sistema Onisciente.

Antes mesmo da vinheta de abertura do primeiro episódio, 3% já apresenta a divisão e contraste entre mundos. Ou seja, há baixa restrição de informações e, portanto, alto conhecimento a respeito das diferenças entre Continente e Maralto, apesar de que o Maralto propriamente dito (com seus moradores, aparência e vida cotidiana) só começa a ser mostrado a partir da segunda temporada. Com planos abertos, várias cenas exploram as oposições entre barulho e silêncio, limpeza e sujeira, organização e bagunça, riqueza e pobreza, minimalismo e excesso que são ainda reforçados por figurinos, maquiagem, cenários, objetos cenográficos etc. Não por coincidência, a descrição do espaço-tempo identificado como o do Continente se assemelha em muitos aspectos às periferias das grandes cidades latino-americanas, a exemplo de prédios sujos e pichados, pessoas em situação de rua, becos e vielas.

Ao evidenciar as desigualdades, a construção e exibição dos espaços que se articulam às histórias pregressas dos protagonistas, contadas uma por uma a cada episódio na primeira metade da temporada 01, reforçam a necessidade e motivação que os jovens têm em se submeterem ao árduo e cruel Processo para se tornarem um dos 3% aprovados (e “merecedores”) ao “lado de lá” e ter uma vida melhor, mais digna. Em Onisciente há decisões criativas semelhantes também nos primeiros episódios, mas com menor grau de conhecimento oferecido, sendo as informações dispersas em doses mais restritas ao longo dos episódios, nos fazendo conhecer o outro mundo fora do sistema na medida em que os personagens do núcleo central também o fazem e/ou o experenciam.

Com maior ênfase na tecnologia avançada e na segurança, o paralelo entre a cidade onde opera o sistema Onisciente e a cidade onde não há a presença dele só inicia por volta dos 26’ do primeiro episódio, seguindo pelos demais conforme necessidades narrativas. Nesse outro mundo que os personagens atravessam para cometer crimes e/ou ter mais privacidade, a sensação de insegurança, a violência, o caos e a pobreza são evidenciados. Mas nesse caso, o outro espaço-tempo fora de alcance do Onisciente, que nos possibilita criar (pelas características apresentadas) a hipótese de se tratar do nosso próprio tempo presente, é utilizado como recurso e até mesmo refúgio de desejos proibidos, como o de transgredir as regras para solucionar problemas ou mesmo sentir mais adrenalina, demonstrando aos poucos que o sistema não contempla todas as necessidades inerentes ao ser humano.

Missão dada é missão cumprida

O que mais pode motivar tanto a execução de uma missão arriscada e perigosa do que a perda de um ente querido e a necessidade de expor as falhas de algo que se tem como perfeito e, assim, fazer justiça com as próprias mãos? Tanto 3% quanto Onisciente tem essa como uma das principais linhas de ação que movimentam a trama em relações de causa e efeito, onde as personagens são orientadas por um objetivo central e que, seguindo o modelo clássico de narração, há a apresentação da situação inicial, a complicação e o desfecho — mas não necessariamente de um final feliz e nem relacionado a um romance heterossexual.

Vejamos o caso de Michele, uma das protagonistas de 3% que assume uma linha de ação paralela e concomitante à da própria seleção dos jovens no Processo. Michele é a primeira protagonista com história anterior à seleção 104 (referente à primeira temporada) apresentada na série. Após saber por um dos fundadores da Causa que seu irmão foi supostamente assassinado por Ezequiel dentro do Maralto, ela passa a ser integrante da organização e aceita a missão de se infiltrar no Processo para destruir o “lado de lá”, tendo ainda como missão pessoal matar Ezequiel e vingar a morte do irmão. Mas isso nós só descobrimos por volta dos 44’ do episódio 01, Cubos — depois de já sabermos aos 18’ que há um infiltrado da Causa no Processo — quando Michele e uma vizinha são interrogadas e ameaçadas como suspeitas de uma delas ser a integrante da organização clandestina. Para se salvar e seguir com sua missão, Michele deixa sua amiga ser morta por uma funcionária do Maralto, o que impacta decisivamente em sua trajetória e interfere também na dos outros personagens.

No episódio 07, Cápsula, durante um jantar de comemoração com os aprovados após o fim do Processo, Michele tenta por conta própria envenenar Ezequiel, mas o plano não sai como o esperado e todos os candidatos são colocados sob suspeita. Entre os efeitos irreversíveis de suas ações, está a desistência de Fernando (Michel Gomes), envolvido afetivamente com ela, de ir para o Maralto; a prisão da funcionária Aline (Viviane Porto), orquestrada por Ezequiel; e a internação da própria Michele em uma clínica de reabilitação dentro do Maralto, o que será desenvolvido na temporada seguinte. Ao longo da série, Michele consegue reunir aliados para seguir sua missão de acabar com a divisão entre mundos, com o Processo e tornar a vida da população do Continente mais justa e igualitária.

Trailer oficial de Onisciente (Netflix, 2020).

Observemos agora Onisciente. Nina, protagonista principal da série, tem sua vida virada de cabeça para baixo por volta dos 11’30 do episódio 01, Eu cometi um crime, quando entra em sua casa, depois de um dia longo de trabalho no sistema Onisciente, e encontra seu pai morto com um tiro nas costas e caído no meio da sala. Mesmo com toda a eficiência do sistema, o assassino não é flagrado pelas imagens de drone. Nina tenta todos os recursos legais disponíveis, além de ajuda dos criadores do Onisciente, para ter acesso às imagens, mas tudo lhe é negado. Diante do impasse, Judite, funcionária da Prefeitura, oferece ajuda. Fora da cidade e, portanto, longe da vigilância do Onisciente, ela sugere que a trainee invada o sistema para conseguir as imagens e descobrir quem é o assassino de seu pai, arriscando o seu emprego, sua liberdade e a privacidade de todos os habitantes da cidade.

Mesmo resistindo, Nina aceita a missão e a coloca em prática a partir do episódio 02. Mas suas escolhas, motivadas por razões pessoais e sede de justiça, traz severas consequências a outros personagens, como sua amiga e colega de trabalho, Olívia (Luana Tanaka), seu chefe e paquera, Vinícius (Jonathan Haagensen), e seu próprio irmão, Daniel (Guilherme Prates). Além disso, coloca em risco a segurança e privacidade de todos na cidade, pois, ao conseguir roubar as informações do sistema no episódio 05, Abre essa porta, o arquivo desaparece da casa de Nina. No último episódio, Não esquece que eu estou de olho”, descobrimos que foi Judite quem mandou matar o pai de Nina para fazê-la invadir o sistema, roubar os dados, fragilizar o Onisciente e conseguir meios para criar um sistema concorrente com possibilidade de expansão para outras cidades. Diante da situação, a opção que resta à Nina e a seu irmão é a fuga para longe da vigilância e ameaças de Judite, criando o gancho para temporada seguinte.

Tanto em Michele quanto em Nina o motor que desencadeia as escolhas controversas que movimentam a trama é a morte trágica de alguém que amam e o desejo por justiça e vingança. Mas apesar de figuras como Ezequiel, Judite e os criadores do Onisciente, a força antagonista que opera contra o desenvolvimento da missão delas são os próprios sistemas estabelecidos como perfeitos, fortes, infalíveis e inquestionáveis: o Maralto e o Onisciente. Ao desafiá-los e acessá-los pelas brechas deixadas, episódio por episódio, as protagonistas acabam fragilizando os sistemas ao ponto de deixá-los expostos a questões maiores aos poucos reveladas e colocadas em discussão.

Meritocracia, desigualdade, privacidade e segurança: dilemas contemporâneos

A divisão de mundos, o estabelecimento das principais linhas de ação e o entrelaçamento entre elas e as trajetórias dos personagens (principalmente em 3% com o múltiplo protagonismo) fazem emergir temas, questões e dilemas que compõem nosso cotidiano e são identificáveis globalmente. Apesar de serem séries que se passam em um futuro não especificado, elas se comunicam intrinsecamente com o nosso presente e revelam problemas que enfrentamos em nosso próprio espaço-tempo.

Essas duas séries distópicas criadas por Pedro Aguilera e co-produzidas pela Boutique Filmes parecem convergir para um perfil semelhante: questionar o futuro do mundo a partir de especificidades locais utilizadas a serviço da narrativa e mostradas em contrastes estilísticos que desvelam nossos universos e problemas particulares. Daniel (Guilherme Prates), irmão de Nina em Onisciente, fica vulnerável aos perigos da cidade grande de profundas desigualdades quando atravessa a fronteira do sistema atrás de respostas, no episódio 02, mas tampouco está seguro tanto quanto deveria sob a vigilância extrema do Onisciente, sendo estigmatizado ao longo de sua vida por uma infração cometida no passado e tendo tido o pai assassinado sem ninguém ser responsabilizado por isso; em 3%, o suicídio de um dos candidatos logo no episódio 01 expõe o que pode estar em jogo no Processo, uma espécie de “tudo ou nada” em que aqueles jovens, diante da realidade em que vivem, são potencialmente capazes de fazer o que for necessário para não ter que retornar aos seus destinos de miséria no Continente: mentir, roubar, matar, deixar morrer e até mesmo tirar a própria vida.

Atualmente, diante das produções já exibidas pela plataforma de streaming, o showrunner e roteirista Pedro Aguilera e a produtora Boutique Filmes estão sendo apontados, em certa medida, como emergentes especialistas em distopia brasileira, gênero pouco explorado na história da ficção seriada nacional. E de acordo com informações da colunista Patricia Kogut, a produtora está desenvolvendo, junto com a espanhola The Mediapro Studio, uma nova série do mesmo gênero, To Kill a Queen, que se passa em um Brasil conservador de 2025.

Essas características aqui apresentadas, como um esboço feito a partir de insights ao assistir às séries, e o desenvolvimento do mercado audiovisual contemporâneo nos apontam para uma possível construção de marcas autorais, no que diz respeito aos criadores e produtoras contratadas, na construção formal dessas obras que obedecem convenções genéricas, acompanham condições sócio-históricas de produção e abrem brechas temáticas para debates atuais.

*Doutoranda do PPGCOM/UFMG e pesquisadora integrante do COMCULT/UFMG.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com