Entre dramas e risos: o conflito familiar como motor da narrativa de Club de Cuervos

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Bem-Te-Vi
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8 min readJun 17, 2021

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Por Marcos Meigre, Simone Rocha e Millena Ohana Santos

O “manipulador, hipócrita de merda” que termina o trailer tomando uma sonora bofetada é Salvador Diego Iglesias Villalobos (Luis Gerardo Méndez), conhecido por todos como Chava Iglesias. A “nocauteadora” é sua irmã Isabel Iglesias (Mariana Treviño) que, ao se ver traída pelo discurso feito por Chava no estádio do clube de futebol Los Cuervos de Nuevo Toledo, trava com ele uma disputa que seguirá pelas quatro temporadas da série original Netflix no México Club de Cuervos (2015–2019).

Figura 1 — Isabel dá uma bofetada em Chava/Reprodução Netflix

Que disputa é essa e como ela nos é contada?

Isabel e Chava são filhos de Salvador Iglesias que, logo no primeiro episódio, sofreu um infarto e morreu na sauna do clube acompanhado do filho. A partir daí, está dado o conflito-motor da história: Isabel e o irmão começam brigas intermináveis para ver quem deve substituir o pai e se sentar na cadeira da presidência de Los Cuervos. O conflito, detonado pelo bofetão da abertura, vai se arrastar por toda a série porque ele tanto nos faz conhecer a personalidade de cada um, os recursos e estratégias que adotam para vencer a disputa, bem como o envolvimento de outros personagens nessa confusão entre eles. Chava e Isabel são construídos com personalidades diametralmente opostas. E desse choque nasce a graça (e também o drama) da história: enquanto a moça é focada, organizada, metódica, trabalhadora, Chava é um fanfarrão de mão cheia, vive dando festas pro elenco do time, goza de uma vida bem mansa, sem ter experiência e maturidade profissional. O convite ao riso está justamente nessa tensão sem fim que, ao mínimo contato um com o outro, saem gritos, tapas, olhares raivosos, tudo bem exaltado nas caras e bocas dos personagens. E assim a gente consegue ver que a forma de apresentar os irmãos Iglesias vai equilibrando na corda bamba o cômico e o dramático, envolvendo o público neste misto de sentimentos com a história e no desenrolar das tramas. E se o ringue está armado desde o começo, então não nos restam dúvidas do que se seguirá no enredo: cada um vai correr atrás de suas armas para estar mais forte quando um novo combate aparecer na luta pela presidência de Los Cuervos.

Já na primeira sequência, a série traz a ruptura — o que Robert Mckee chama de incidente incitante — causada pelo conflito: discursando no estádio de futebol após a morte do pai e sendo aclamado pelo público, por sua sensibilidade e pelas belas palavras de motivação, o que Chava fez, na verdade, foi roubar a ideia de sua irmã e colher os frutos em seu lugar, já que Isabel tinha conversado com ele e proposto compartilhar entre os dois a presidência de Los Cuervos. É por isso que, quando ele desce do púlpito, é recebido com um belíssimo tapa na cara dado por ela.

Conflitos entre irmãos como convite ao riso

Polo positivo e polo negativo. Duas grandezas inversamente proporcionais: para um se sentir feliz, tem que acontecer a tristeza/derrota do outro. Club de Cuervos está cheia de lições que mostram em sua saga o estilo amo te odiar, odeio te amar que certamente já vimos em muitos filmes, novelas e romances clássicos da literatura.

Chava e Isabel saem decididos a achar jeitos para atrapalhar o outro, para destruir os planos do “time adversário” e, quando iniciam esses embates pra valer, a série dá uma guinada suave e mostra mais a individualidade dos protagonistas, apresentando ao público aspectos de suas personalidades, seus trejeitos e suas ações para se munir contra o opositor. Tudo na base do cômico, elevando à enésima potência o riso. Assim vemos Chava ir atrás de costureiros clandestinos para confeccionarem novos uniformes para o time; vemos Isabel doida atrás de um patrocinador, indo à boate de strippers, para impedir que ele retire apoio do Club depois do irmão ter mudado o uniforme e tirado o logotipo da empresa. Diante das situações de rivalidade, os Iglesias revelam como são diferentes na lida dos problemas, mas em todo caso promovem o humor nas escolhas que fazem.

A luta vai ganhando força à medida que suas individualidades são cada vez mais marcadas como duas retas paralelas, que não conseguem se aproximar de jeito nenhum. E nisso a narrativa é bem generosa (como é típico de produções que trazem o humor em primeira linha), quando não esconde nada do público, mostrando os passos de cada protagonista, trazendo sua intimidade e deixando bem escancarado que tudo ali gira sempre em torno da vontade de estar na presidência do clube de futebol.

Figuras 2 e 3 — Chava e Isabel lutando com suas próprias armas/Reprodução Netflix

Club de Cuervos potencializa o ciclo da comédia porque passa um bom tempo expondo a situação, a infindável repetição de momentos cômicos que remetem ao conflito central. Mas, diferente dos primeiros momentos, quando a narrativa fez questão de nos mostrar os embates estridentes, agora temos uma longa porção da série a nos conduzir para acompanharmos como cada um deles vai se munindo, usando suas artimanhas e gracejos pessoais para seguir na guerra familiar. É por essa razão que vamos também tomando mais conhecimento da intimidade e traços psicológicos de cada um dos irmãos, entendendo melhor como Isabel age, meticulosa, atenta, centrada e objetiva, enquanto Chava pula em seus impulsos, paixões, sem cálculos de compensação ou prejuízos. E, se todos os exageros em cena querem nos fazer rir da guerra caótica entre os irmãos, é com melodrama rasgado e em chave cômica que a coisa é construída.

Melodrama à la Netflix

E por que essa mistura acontece no enredo de Club de Cuervos?

O historiador do estilo David Bordwell afirma que o enredo é um modo específico de uso de algumas estratégias que os criadores usam para contar uma história. Uma das especificidades mais importantes são as convenções de gênero. Para Bordwell, “a motivação genérica tem efeito especialmente forte nos processos narrativos”.

Mas o que vimos na série é um hibridismo de gêneros, ou seja, mesmo sendo a comédia o tom pregnante, o melodrama integra as reviravoltas da narrativa, provocando o efeito de riso.

E, para isso, a série subverte/desconstrói a rivalidade comumente estabelecida entre mocinhos e vilões e constrói os dois perfis de maneira cômica; é para isso que a tensão que uma disputa como a que eles enfrentam tende a ser esvaziada. E é para isso que as demais personagens e seus conflitos são construídos de acordo com as marcas do melodrama, igualmente em chave cômica.

E é isso que estamos chamando de “melodrama à la Netflix”: ciente da profunda familiaridade que audiências mexicanas nutrem com a poética melodramática e disposta a negociar com gêneros populares desde sua expansão mundial, a empresa investe em produções como Club de Cuervos, construída sob um hibridismo de gênero, ao mesmo tempo em que garante a comédia como tom predominante. Desse modo, mesmo que operações melodramáticas sejam amplamente reconhecíveis, o efeito desse reconhecimento gera prazer, bem como ironia e riso. Ao promover uma eventual quebra das convenções deste gênero, a obra motiva o espectador a consumi-lo, ao mesmo tempo em que zomba dele. E tal empreitada mostrou que o serviço de streaming vinha com boas perspectivas para trabalhar a produção ficcional em nosso continente.

Feita para rir, pero no mucho…

Traçando planos, agindo por conta própria e volta e meia retomando a guerra explícita, os irmãos Iglesias chegam ao ápice no nono episódio da primeira temporada, quando desabam em confissões profundas, melancólicas e até saem no tapa. A partir daí, a história dá sinais de que vai caminhando para outro rumo…

É do embate nas porções finais da primeira temporada que entramos num novo universo de Club de Cuervos, quando a série já carrega bem mais nas emoções e aquele riso frouxo de antes dá lugar a atuações, trilhas e diálogos que nos fazem sentir a mudança no estado de espírito dos irmãos briguentos. A saída para as doses mais fortes de melodrama, na parte final da primeira temporada, faz a série nos mostrar que as operações melodramáticas em cena reposicionam o tom da narrativa e tomamos contato com dois irmãos mais sensíveis um ao outro, menos agressivos e sem os enfrentamentos impulsivos vistos repetidas vezes até chegar aos episódios finais.

Enquanto a narrativa flui para um novo lugar, não deixam de existir os elementos de rivalidade e tensão entre os dois combatentes, mas os irmãos já parecem mais dispostos a dialogar. Das tantas mudanças que a fase final nos revela, as atuações são as estratégias de encenação que melhor nos mostram um conjunto de reposicionamentos dos protagonistas, já que: mudam a reação agressiva quando estão diante do “inimigo” para um tom mais brando; mudam a posição no jogo da presidência, agora de Isabel e não mais de Chava, que a conduziu desde os primeiros episódios; e mudam as próprias personalidades, com uma Isabel mais sentimental e preocupada com Chava, emotiva, começando a se apegar inclusive a um irmãozinho recém-nascido que ela não podia nem sonhar em ver, enquanto Chava demonstra estar mais reflexivo, menos impulsivo, comedido em suas ideias e mesmo recluso.

Figuras 4–7 — Os reposicionamentos de Chava e Isabel ao final da primeira temporada/Reprodução Netflix

Dos gritos, ataques e caretas, passamos a ver choro, emotividade e cada um dos protagonistas enfrentando seu mundo particular de ajustes e provações que lhes fizeram sair dos eixos e dar mostras de estarem transformados. Sairiam daquilo tudo melhores do que começaram? Acabou todo aquele front de guerra que apelou a estratégias de comicidade e combinou-se a operações melodramáticas para evidenciar a mudança desses estados de espírito?

Club de Cuervos é uma série que soube dosar suas estratégias para, das misturas, provocar riso e deboche, misturar comédia e drama, riso e ironia na tela. E para ser ainda mais precisa, soube elevar o humor nas porções iniciais, além de adensar o drama já ao final, como uma espécie de convite para seguir acompanhando as confusões daqueles familiares, cheios de conflitos internos que explodem diante do outro, mas também cheios de sentimentos à flor da pele.

E essa retomada de traços clássicos do melodrama acaba por abrir espaço ao suspense/gancho para a continuidade da obra: se a primeira temporada termina com uma Isabel melancólica assumindo a presidência e um Chava saindo de cena derrotado, decepcionado e cabisbaixo, o que pode acontecer na sequência?

*Pesquisadores do COMCULT/PPGCOM/UFMG.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com