Entre o drama, o suspense e o terror: narrativas e estéticas do drama contemporâneo na série “Os Outros”

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11 min readJun 6, 2024

Por Beatriz Abrahão, Isabela Ferreira, Lucas Rodrigues e Rafael Gomes.*

Imagem: reprodução/Instagram @outrosglobo

Os serviços de streaming têm investido na criação de séries originais que exploram com profundidade temáticas que anteriormente eram pouco comuns na televisão tradicional. No caso do Globoplay, plataforma de streaming brasileira, desde que começou a produzir ficções seriadas originais, o serviço já passou por temas como a luta de uma médica contra a dependência química diante de uma pressão familiar constante (Onde Está Meu Coração, 2020), os dilemas de cinco amigas que precisam lidar com as mudanças e questões da entrada na vida adulta (As Five, 2020) e, mais recentemente, a série Os Outros (2023), que se consagrou ao abordar os conflitos entre duas famílias de classe média que moram em um condomínio da cidade do Rio de Janeiro.

Criada por Lucas Paraízo e dirigida por Luisa Lima em parceria com Lara Carmo, Os Outros é distribuída em doze episódios de aproximadamente cinquenta minutos. Classificada como “drama”, teve uma boa recepção do público e da crítica, o que refletiu na confirmação de uma segunda temporada. Mas o que podemos dizer sobre as inovações que a obra representa para a produção seriada nacional? É esse questionamento que queremos discutir neste ensaio, para isso, é preciso retomar alguns fundamentos dramatúrgicos na produção seriada televisiva.

Os Outros possui elementos narrativos e estilísticos que são vistos como características do drama contemporâneo, ou drama de qualidade. Segundo a pesquisadora Trisha Dunleavy, o drama contemporâneo se consolidou na década de 1980, com programas televisivos dos Estados Unidos que inauguraram narrativas dramáticas complexas e que tinham uma maior liberdade criativa dos roteiristas. A partir dos anos 2000 — com impactos decorrentes do uso da internet e do surgimento dos streamings — o drama de qualidade passa a ter narrativas ainda mais sofisticadas, lançando mão de recursos como a serialização, ou seja, os episódios passam a depender um do outro com suas tramas interconectadas.

A difusão dos serviços de streaming transformou o mercado audiovisual no mundo todo e abriu o horizonte para novos formatos de produção seriada. No Brasil, esses serviços chegaram em 2011, com a entrada da Netflix no país, a partir daí, outros também surgiram, como o Globoplay, fundado em 2015. Não por coincidência, neste mesmo período, as características do drama contemporâneo começaram a aparecer nas produções nacionais, em meados de 2016, e ainda estão se consolidando.

Uma das produções atuais que possuem contribuições importantes para essa consolidação é a série Os Outros, cujo a trama começa com um conflito entre os jovens Rogério (Paulo Mendes) e Marcinho (Antonio Haddad) durante um jogo de futebol na quadra do condomínio em que moram, Barra Diamond. A discussão evoluiu para uma briga física, na qual Rogério deixou Marcinho gravemente ferido. A intervenção ocorreu quando Juca (Gabriel Lima), amigo de Marcinho, deixou a quadra e procurou a mãe do adolescente, Cibele (Adriana Esteves), que prontamente se dirigiu ao local e encontrou seu filho no chão. Após a recuperação de Marcinho no hospital, Mila (Maeve Jinkings), mãe de Rogério, pede para que seu filho e seu esposo Wando (Milhem Cortaz) peçam desculpas à família de Marcinho. Esse pedido, no entanto, se torna um desastre, culminando em um grande desentendimento entre Wando e Cibele.

Figura 1 — À esquerda, família de Wando, Mila e Rogério. À direita, família de Amâncio, Cibele e Marcinho

A escalada de tensão entre as famílias chega a níveis alarmantes ainda no primeiro episódio, quando Wando, enfurecido por Cibele ter arranhado o seu carro, quebra a porta do prédio em que ela vive com seu filho e seu esposo Amâncio (Thomás Aquino) e invade sua casa com uma barra de ferro. A partir daí, Marcinho desenvolve um medo persistente de sair de casa, e Cibele, uma mãe desesperada para proteger seu filho, também é tomada pelo medo e apreensão, o que a faz comprar uma arma de seu vizinho Sérgio (Eduardo Sterblitch), um ex-policial que foi expulso da corporação por corrupção. Enquanto isso, Wando, que havia sido demitido, enfrenta desafios para se reinserir no mercado de trabalho, uma vez que Cibele prestou queixa contra ele, deixando-o com a ‘’ficha suja’’.

O seriado se desenvolve com as ações dos personagens e com os acontecimentos desencadeados a partir dessa tensão entre as famílias. Entre as subtramas de Os Outros, está o caso extraconjugal entre Amâncio e Mila — que culmina no fim do casamento do pai de Marcinho com Cibele e nas agressões de Wando contra a mãe de Rogério — os esquemas de desvio de dinheiro de Sérgio em conluio com a síndica do prédio, Lúcia (Drica Moraes), e o envolvimento de Marcinho com a filha do miliciano.

O DRAMA CONTEMPORÂNEO EM OS OUTROS

A maneira como Os Outros desenvolve o tema, o enredo e seus personagens confere um design conceitual inovador à obra, uma das características do drama contemporâneo.

Para entender isso melhor, é preciso esclarecer que, no drama regular — o principal formato dramatúrgico utilizado pela TV americana antes da consolidação do drama de qualidade — as produções eram tidas sob um enorme controle das emissoras de televisão, desde a concepção e execução da obra até sua distribuição. Essa lógica de ‘segurança em primeiro lugar’, moldou rígidamente a criação de programas televisivos, no qual algumas das abordagens eram a imitação, que é a repetição de um conceito já bem-sucedido, e a recombinação, que une fórmulas de sucessos anteriores. Mas além disso, o drama regular ainda exigia a produção de um conteúdo moralmente inquestionável, ou seja, não eram abordados assuntos que poderiam provocar desconforto nos espectadores em relação aos aspectos socioculturais da época. Como o caso da série estadunidense Breaking Bad (2008), que teve seu enredo barrado por vários canais por retratar um professor de química do ensino médio que se torna um grande produtor de metanfetamina. Evidentemente, isso tinha impactos profundos nas possibilidades criativas dos roteiristas e da própria arte.

Com o drama contemporâneo, no entanto, houve uma mudança significativa, e a inovação conceitual é uma das principais características que marcaram o rompimento com a fórmula do drama regular. Segundo Dunleavy (2018), o conceito diz respeito às tensões que conduzem, sustentam e distinguem a narrativa de uma série ou seriado, mas também o ponto de vista, ou a forma, como essas tensões são aplicadas na narrativa pelos criadores e roteiristas. Portanto, a inovação conceitual do drama contemporâneo representa seu afastamento com as normas rígidas das narrativas para a televisão, afirmando-se como produções inovadoras. Sendo assim, qual é a originalidade em Os Outros?

Como destacam Marcos Meigre, Larissa Ribeiro e Millena Ohana, “os condomínios são uma marca das sociedades contemporâneas, sendo exemplos destacados dos modos de viver, sobretudo, da classe média e o anseio por demarcar um limite explícito entre ela e os outros. A partir da ideia de que quanto maiores os muros, o número de câmeras e demais métodos de segurança, mais seguros contra os terrores urbanos estarão os moradores”. Essa ideia, no entanto, é confrontada pela história da série, que nos mostra que a violência que habita o mundo externo está mais próxima de nós do que imaginamos, ao nosso lado, mas também em nossa essência. Temos os nossos algozes, que nos atormentam e nos causam medo, mas também podemos ser algozes para alguém. Como quando Marcinho, ao ameaçar Rogério com a arma de sua mãe, acerta um tiro em seu próprio pai. Os Outros é original quando cria o horror dentro de vidas comuns e evidencia a violência em múltiplos aspectos, a violência entre os jovens, a violência doméstica, a violência sexual e até a violência policial, que vem daqueles que deveriam nos defender.

Esse design conceitual facilita — mas também requer — a variedade e a densidade de histórias, com subtramas de diferentes personagens que se entrelaçam na trama principal. Para isso, Os Outros utiliza a mescla entre passado e presente, o desenvolvimento de personagens com uma maior complexidade moral e a mistura entre diferentes gêneros, o drama, o suspense e o terror. Esse conjunto de características conferem uma complexidade narrativa a essa produção.

Foto: Divulgação/Paulo Belote

Quando assistimos aos episódios de Os Outros, percebemos que eles possuem uma dependência entre si, para entender um capítulo é preciso ter assistido aos anteriores, isto é a forma seriada. Essa característica é uma das marcas do drama contemporâneo e é a ‘espinha dorsal’ da obra, uma vez que ela não possui arco-episódico, dessa forma, as tramas apresentadas durante os capítulos não se resolvem nele mesmo, elas se estendem pela temporada. Ao adotar a forma seriada, é notável, por exemplo, a mescla entre passado e presente, um recurso que contribui para a costura e profundidade dessas histórias.

O elenco com protagonistas e coadjuvantes bem desenvolvidos, como Sérgio, possibilitou uma gama de subtramas que se entrelaçam durante a temporada. É nessa perspectiva que uma briga entre adolescentes em um condomínio ganha potencialidade para se desenvolver ao ponto de suscitar inúmeros crimes e, até mesmo, de mostrar a transformação dos personagens, que devido às circunstâncias, se modificam e se tornam cada vez mais complexos para o espectador.

Ao redor da trama principal do conflito entre as duas famílias, os personagens são aprofundados e, dentro do eixo de protagonistas, não existem mocinhos ou vilões por inteiro. Eles possuem uma bússola moral muitas vezes questionável, mas que até um certo ponto, nos geram identificação e empatia. Cibele é uma mãe superprotetora, reflexo do trauma ocasionado pela morte prematura de seu primeiro filho, mais que isso, ela também é permeada pela raiva, pela angústia e por tantos outros sentimentos que a fazem tomar decisões perigosas e até criminosas, como arranhar o carro de Wando. E Wando, muito mais que um homem agressivo e um marido abusivo, é um pai amoroso que se vê pressionado pelos problemas profissionais, no fundo, é um homem frágil e inseguro que tende a compensar todas as frustrações da vida de maneira violenta. As características de Cibele e Wando e suas transformações ao longo dos episódios são fatores primordiais para grande parte dos acontecimentos da série.

A criação de personagens complexos e moralmente questionáveis vai de encontro aos estereótipos criados em outras produções, como nas telenovelas. Em Terra e Paixão, por exemplo, novela realizada pela TV Globo em 2023, os personagens possuem uma distinção muito nítida entre o bem e o mal. “Terra e Paixão conta a saga de uma mulher, guiada pela força do amor e movida pelo desejo de justiça, que se cruza com a de uma família dividida pela ambição e muitos segredos”, esta sinopse disponível no Globoplay evidencia ainda mais essa dualidade, e isso é muito significativo, uma vez que a telenovela é o tipo de teledramaturgia mais popular no Brasil.

Sob outros aspectos, a Globloplay classifica o seriado como drama, mas podemos notar o hibridismo de gênero em vários momentos. Ao retratar a violência, o medo e o estresse, Os Outros incorpora elementos narrativos, visuais e sonoros do suspense e do terror, como na sequência em que Wando, enfurecido pelo dano em seu carro, vai confrontar Cibele em sua casa. Durante essa sequência, Wando quebra a porta de vidro do prédio de Cibele com uma barra de metal, devido aos estilhaços de vidro, ele acaba se cortando. Ensanguentado, percorre escadas e corredores escuros, fora de si, uma perseguição clássica do terror, como na famosa cena em que Jack persegue sua esposa com um machado no filme O Iluminado (1980).

Figuras 2 e 3 — Na primeira, Wando invade a casa de Cibele. Na segunda, cena do filme O Iluminado (1980)

Enquanto isso, somos transportados para a perspectiva da família de Cibele em seu apartamento, ouvindo os gritos de um homem transtornado enquanto ficam à espera, temendo pela sua segurança, uma construção narrativa muito utilizada no suspense. Durante as cenas, destacamos também a trilha sonora instrumental que as compõem, quando Wando passa pelos corredores com sua barra de ferro, a música, que nos lembra composições de música clássica, possui uma melodia acelerada com uma variação entre agudos e graves que nos gera tensão.

Outro momento que destaca a utilização de elementos de terror e suspense é quando Marcinho evita encontrar Rogério a todo custo. Durante uma sequência na escola, notamos a ansiedade de Marcinho enquanto percorre o lugar, constantemente alerta e temeroso do que pode acontecer. A situação culmina na aula de natação, aparentemente um ambiente seguro para Marcinho se divertir com Juca, até que Rogério interrompe a tranquilidade ao atacá-lo na piscina. A reação exagerada de Marcinho, ao gritar desesperado por socorro como se estivesse prestes a ser assassinado, reflete toda a construção de tensão, medo e ansiedade que o espectador também experimenta.

Apesar de outras produções brasileiras também utilizarem estéticas do terror e do suspense junto à outros gêneros, como Ilha de Ferro (Globoplay, 2018), Cidade Invisível (Netflix, 2021) e Reality Z (Netflix, 2020), Os Outros se diferencia ao desenvolvê-las a partir de medos cotidianos de pessoas comuns.

Utilizando uma fotografia fria e sóbria em muitos momentos, Os Outros cria uma atmosfera de tensão, tristeza e medo que dita o tom das sequências, geralmente trágicas ou dramáticas. No entanto, o uso das cores não se limita a isso, trazendo cenas com uma cor predominante para evocar emoções, como o vermelho na cena de Rogério e Marcinho no elevador, que sugere violência, ou mesmo no figurino, como no caso de Mila, que usa roupas escuras quando está infeliz e tons vibrantes quando se vê resolvida.

Figura 4 — Rogério sob uma luz vermelha no elevador

Os enquadramentos são utilizados para extrair ao máximo o que têm de melhor: emoções e sentimentos específicos que são capazes de despertar no espectador. Na cena em que Sérgio entra no elevador logo após conversar com Cibele sobre o desaparecimento da arma que vendeu a ela, é utilizado o enquadramento denominado plongée, que nada mais é do que a câmera estar posicionada de cima para baixo em relação ao personagem.

Figura 5 — Sérgio no elevador

O plongée, em sua utilização mais comum, é usado para transmitir uma relação de poder, como o personagem está abaixo da câmera, ele é o “enfraquecido”. No entanto, o audiovisual contemporâneo tem subvertido os significados de sua própria linguagem, é o que acontece no enquadramento de Sérgio. Ao colocá-lo numa posição de “controlado”, melhor ainda representada pelo fato da imagem partir de uma câmera de segurança, o personagem vai em total contramão desse controle e zomba dele ao confrontá-lo na quebra da quarta parede. Esse deboche tem origem em suas próprias atitudes, uma vez que Sérgio desafia todas as normas sociais e as leis.

Além disso, Os Outros foi gravado em um condomínio da Barra da Tijuca e não em um cenário fictício, essa imersão real da produção no espaço que criador, diretoras e roteiristas queriam desbravar foi fundamental para o aspecto visual da série. Encontramos muitas cenas ao ar livre, em condições naturais cotidianas, como a quadra de esportes do condomínio, nas avenidas ao redor do local e em estacionamentos. Tudo isso confere uma proximidade do espectador com aquela realidade urbana dos personagens. Essas, dentre outras várias características estilísticas, evidenciam o trabalho técnico e criativo da série.

A CONTRIBUIÇÃO PARA O DRAMA BRASILEIRO

Por fim, é possível perceber a colaboração significativa que Os Outros exerce no panorama audiovisual brasileiro. Através de sua trama interligada, da caracterização meticulosa dos personagens, da mistura de diferentes gêneros e de uma linguagem visual e sonora que nos faz adentrar na realidade dos personagens e dos espaços, a série mergulha nas profundezas dos problemas sociais e da psique humana, apresentando camadas de complexidade e ambiguidade que ecoam bons exemplos do drama contemporâneo brasileiro. Os Outros confronta questões sociais e culturais pertinentes, como a violência doméstica e sexual, a desigualdade social e as nuances da moralidade, nesse sentido, não apenas reflete aspectos da realidade do país, mas também a desafia, incentivando os espectadores a questionarem suas próprias percepções e pressupostos. Portanto, no cenário do streaming nacional, esta ficção seriada contribui para a consolidação do drama contemporâneo e serve de referência para as próximas produções nacionais, abrindo caminhos para pensarmos em narrativas ainda mais complexas.

*Estudantes do departamento de Comunicação Social da UFMG

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com