Falar sobre televisão desde a televisão

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Bem-Te-Vi
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5 min readJul 19, 2018

Por Simone Maria Rocha

faz algum tempo que tenho pensado em escrever algo sobre isso: que críticos e analistas de televisão, sobretudo os que se propõem a pensar sobre inovações narrativas e estilísticas, o façam desde a televisão. Que deixem de lado as desnecessárias comparações — quase um vício, um cacoete — que fazem ao considerarem uma produção televisiva de qualidade remetendo-a a uma semelhança com o cinema e diferenciando-a do “mar de mediocridade” que julgam invadir nossas televisões comerciais.

Em meio a essa turbulência salvariam-se os trabalhos do ex-diretor global Luis Fernando Carvalho, algumas propostas irreverentes e irrupções na gramática televisiva de Guel Arraes, e os mais recentes trabalhos do diretor José Luiz Villamarim e dos escritores George Moura e Sérgio Goldenberg.

As produções assim consideradas em sua maioria ocupam, na televisão aberta, a faixa das 22:30/23h, uma mescla de gêneros televisivos que vão desde o unitário, a minissérie, a macrossérie e, mais recentemente, a supersérie que têm em comum a marca da experimentação seja narrativa, conteudística ou formal.

Se algo não vai bem, seja em termos de crítica ou de desempenho junto a audiência, as explicações sempre recorrem à incompreensão por parte de públicos pouco acostumados com qualidade na televisão da proposta de gênios criadores. Qualidade aqui diz respeito a uma noção herdada do filme de arte europeu e que deu base para a chamada quality TV desde meados dos anos de 1980 nos Estados Unidos.

Na verdade, a questão não está em convocar planos cinematográficos para se fazer referência a tomadas mais abertas, a planos conjuntos, mais comuns hoje em dia graças, entre outras coisas, ao incremento técnico pelo qual passou a tela da televisão. O problema está na comparação indevida entre dispositivos com condições de reprodução, consumo e circulação distintos.

Não há bases de comparação entre uma narrativa que é produzida para ser consumida de maneira concentrada — durante a qual, inclusive, são proibidos os usos de aparelhos eletrônicos e outra que é feita para ser consumida na domesticidade do lar conjugando com outras atividades e tarefas como, mais recentemente, o fenômeno da segunda tela. Nesses casos, prevalece mais uma hierarquização do que uma comparação.

Obviamente, isso não quer dizer que não tenha havido mudanças nos modos de produzir de ambos os meios, que não tenha havido hibridações na feitura dos produtos. Mas quer dizer que sempre que se faz comparação a televisão “achata esteticamente o cinema”, confere ares novelescos ao filme, e o cinema oferece inovações e qualidade às produções televisivas.

Em muitos, acusa-se e rechaça-se a televisão a partir de suas principais características: a organização da produção por gêneros, o caráter sensacionalista das produções, o melodrama como a base de sustentação das narrativas. Nesse sentido, é possível dizer que muitos que criticam e investigam televisão talvez não conheçam meio e ignorem como o televisivo foi sendo constituído histórica, social e esteticamente.

Fugir da comparação amplia as possibilidades de entender e consumir televisão.

Como explica o autor estadunidense Jeremy Butler , implica dizer que ela possui estilos próprios: um modo específico de arranjar som e imagem de modo articulado e coerente com seus gêneros.

Isso parece que está se tornando o interesse tanto de pesquisadores de televisão quanto de críticos e jornalistas do meio. Tem sido mais frequente encontrar análises e comentários que se adentram nas características propriamente televisivas para falar de ruptura, inovação e transformação.

Na academia podemos ver esses investimentos nos trabalhos dos grupos de pesquisa Inovação e Ruptura na Ficção Televisiva Brasileira, da Universidade Anhembi Morumbi e Comunicação e Cultura em Televisualidades da UFMG.

Nestes trabalhos encontramos muitas pistas que nos ajudam a entender o universo televisivo com suas lógicas e características, bem como constatamos efetivamente o pressuposto de pensar a televisão fora do marco da comparação.

Por parte da crítica, alguns exemplos podem ser encontrados, como o da coluna do jornalista e crítico Maurício Stycer, no portal UOL. Atento às inovações promovidas nas produções televisivas em geral, e nas ficcionais em particular, Stycer parte das especificidades e da gramática do texto televisivo para observar o que há de novo, como fez em relação ao recente gênero que a Rede Globo nomeou de Supersérie, na faixa das 23h.

Desde a produção de Nada será como antes, em 2017, a Emissora parece decidida a criar um novo formato de ficção, tendência confirmada em 2018 com a produção de Onde nascem os fortes. Em seus comentários, Stycer parte das características que consagraram as narrativas ficcionais para realçar o que a proposta apresenta de novidade tanto narrativa quanto estilística. Ao constatar que a Supersérie é “mais curta e melhor”, ele acredita que ela “aponta um caminho para o futuro das novelas da Globo”.

Para o crítico, Onde Nascem os Fortes tem poucos personagens centrais, o que permite a criação de tipos mais densos e ambivalentes. Cerca de 70% de suas cenas foram gravadas longe dos estúdios da emissora, no sertão da Paraíba, um recurso mais custoso, que implica ganho de verossimilhança. A paisagem, neste caso, deixou de ser um fundo de cena e se tornou um personagem da história .

A Supersérie ao mesmo tempo em que lança mão de inovadores recursos técnicos fala de velhos problemas como o personalismo, a prevalência do compadrio, o medo e a violência em nossas relações sociais e políticas:

A trama mostra o esforço de mãe e filha em busca do filho/irmão desaparecido em uma pequena cidade, após o rapaz brigar com o principal empresário do lugar, um coronel modernizado, por causa de uma mulher. Cássia (Patrícia Pillar) e Maria (Alice Wegmann) se enredam em uma trama que tem, ainda, um juiz mal-intencionado e um policial corrupto, além de um líder místico”.

Ou seja, não se trata de um enredo propriamente original, mas as imagens e o som parecem sensibilizar de outro modo, assim como conflito também se atualiza porque são mulheres que estão a sua frente, enfrentam os homens, o medo, a violência, o machismo. Segundo Sérgio Goldemberg, um dos roteiristas da produção, “Se a gente olhar para o Brasil do sertão do Lampião, do século passado, e o Brasil de hoje, em relação à justiça, não mudou tanto. A justiça não é para todos, os laços de amizade e compadrio ainda interfere nas instituições”

A força da televisão em nossos países sugere a importância de ousarmos olhar mais atentamente este meio e compreender que mais produtivo do que estabelecer comparações com outros meios audiovisuais, bem como relegar a TV a uma condição de mediocridade, é mergulhar em sua gramática, desvendar seus processos e desfrutar de suas produções.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com