¿Qué? ¿Esperaban a alguien más?

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Bem-Te-Vi
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9 min readOct 1, 2020

Livia Maia*

Figuras 01 e 02: imagens retiradas do vídeo “El Robo del Siglo | Anuncio”. Direitos reservados à Netflix

A própria Netflix brincou com a semelhança entre as produções “El robo del siglo (O maior assalto) e “La casa de papel. No teaser de anúncio, publicado no canal do Youtube Netflix Latinoamérica, o personagem principal da série colombiana, Chayo (Andrés Parra), aparece de costas, atrás de uma maquete. Quando se vira para a câmera, pergunta: “¿Qué? ¿Esperaban a alguien más?” Uma clara referência ao personagem do Professor (Álvaro Morte), gênio por trás dos assaltos em “La casa…” e, seguramente, a figura que sempre aparecia envolto pelo mesmo ar de mistério e uma maquete de papel (daí um dos motivos para o título da obra). Além disso, a audiência mundial segue esperando a última temporada da produção espanhola, por isso a possível expectativa pela nova aparição do Professor.

É interessante o modo como Netflix resolve anunciar essa série, antecipando-se às comparações sobre as produções, o que acabou acontecendo realmente nos dias e meses que se seguiram à publicação do vídeo (veja mais aqui e aqui).

A produção é da Dynamo, já parceira de Netflix em outras 04 produções latinas: “Distrito Salvaje”, “Frontera Verde” e duas “Histórias de un Crime” (“Colmenares e “Colosio), além da queridinha Narcos. Parece que a parceria tem dado certo para a produtora colombiana, que tem braços também no México, Espanha e Estados Unidos. Cá com os meus botões, acho ótimo que haja diversificação na produção, o que significa mais oportunidades de mercado para a inserção da América Latina enquanto exportadora de conteúdo para televisões transnacionais. #dentro

Uno de los asaltos más míticos de Argentina

A história é bastante conhecida dos argentinos e não foi bem assim que aconteceu. Filmes, livros e uma infinidade de artigos e matérias jornalísticas foram feitas a respeito do assalto ao Banco Río de Acassuso em janeiro de 2006, em que um grupo de ladrões levou dezenove milhões de dólares e oitenta quilos de joias, contornando uma operação policial por um buraco, um túnel e a rede de bueiros da região. Não que essa quantia seja de dar inveja ao Professor…

Figura 3: imagem retirada da série “El robo del siglo”. Direitos reservados à Netflix.

“Baseado em fatos reais”. Para mim este é o grande diferencial do que se tem chamado por aí de versão colombiana de “La Casa de papel”. Rótulo que não faz justiça nem a um nem a outro produto, se a mim me cabe julgar.

Toda vez que vejo esses escritos em tela relembro a dublagem da Herbert Richards, Álamo e outras tantas dubladoras presentes nas produções que assisti na infância. A frase era sinônimo de que o filme era uma lição de vida, uma injeção de esperança ou um tapa da cara mesmo. Até agora, mesmo revendo a série para escrever este texto, ainda não captei de qual deles se trata. Talvez seja uma oportunidade de pensar sobre as fidelidades, afinal, somente um dos assaltantes nunca foi encontrado e isso diz muito sobre não delatar o coleguinha.

Deixar claro que a história foi inspirada em fatos reais já traz uma expectativa pra quem assiste. Trocando em miúdos, é essa a função de um “gênero”: compactuar com o telespectador sobre aquilo que será apresentado. E é por isso que a categorização também é importante para Netflix. Vejam: a empresa não pode contar com uma programação de grade como a TV linear, então não é possível definir que esse ou aquele conteúdo pertence ao horário nobre (que são as produções mais caras de uma emissora tradicional e, portanto, geram uma expectativa sobre a qualidade do conteúdo). Dessa forma, é preciso agregar audiências de outra forma, e o empenho em trabalhar os gêneros à sua maneira é uma das formas que a empresa encontrou de localizar e fidelizar sua clientela: através de nichos de audiência.

Para Netflix, há diversas categorias que possuem “baseado em fatos reais” na nomenclatura: filmes emocionantes, filmes inspiradores, suspenses, filmes tensos, filmes sobre crimes, dramas emocionantes, filmes românticos, filmes brasileiros, filmes de guerra, filmes policiais, fora as séries. Até 2016, eram 19 gêneros e 400 sub-gêneros segundo Smith-Rowsey: essa é uma estratégia de flexibilizar a categorização, trazendo uma instabilidade intencional, de modo a responder às demandas do mercado dessa empresa. Se compararmos que, por exemplo, não existe a categoria Melodrama (gênero tão amplamente discutido e observado na América Latina), percebe-se que a plataforma dá atenção especial às histórias reais.

As semelhanças

Figura 4: Imagem retirada da série “La Casa de Papel”. Figura 5: Imagem retirada da série “El Robo del Siglo”. Direitos reservados à Netflix.

Vamos, então, às comparações. O que une as duas histórias, sem dúvida, são os percalços da trama. Quando parece que o plano vai mal, lá vem o cérebro do bando contornar toda a situação com inteligência, frieza e cálculo. Na “versão” espanhola, há um gênio por trás, que pensou tudo meticulosamente: o Professor. Na “versão” colombiana, o jogo de cintura e a cabeça fria fica por conta de Chayo, que resolve com rapidez, durante o roubo, os problemas que vão surgindo.

Outro ponto bastante importante, o leitor mais conservador pode até não concordar comigo, é que, nas duas histórias, o espectador se vê torcendo pelo bandido. O que a narrativa chama de anti-heróis/anti-heroínas, e que nós, leigos, chamamos de “meu deus, a Nairobi, nóssinhora!”. A visão bem x mal na série produzida na Espanha é mais bem posicionada na primeira temporada (as duas primeiras para quem as assistiu em Netflix), na qual o Professor se coloca como uma vítima do sistema. De certo que na obra colombiana o espectador tem já no primeiro capítulo a informação:

Figura 6: Imagem retirada da série “El Robo del Siglo”. Direitos reservados à Netflix.

“Esta série é uma obra de ficção inspirada em fatos reais publicamente conhecidos. Não pretende ser um retrato fidedigno da realidade nem ser utilizada para determinar responsabilidades legais. A verdade processual sobre os fatos ocorridos reside nos diversos arquivos judiciais”

A mensagem, que aparece em todo final de episódio, serve tanto para relembrar a audiência de que se trata de fato real, quanto para deixar ao espectador o julgamento dos personagens, como quem diz: “Esses são os fatos e a justiça tem se encarregado da culpabilização oficial. Ache você o que quiser!”

Essas são as principais semelhanças que eu vi entre as duas. Mas nem de longe eu reduziria a produção colombiana a uma versão ou imitação da espanhola. São dois produtos muito diferentes e já digo porque enumerando as diferenças de forma decrescente de sua importância na história.

As diferenças (Alerta Spoiler!!!)

5º Corrupção em jogo

Em “La Casa…”, nenhum policial é corrupto. Mesmo quando a inspetora Morillo (Itziar Ituño) passa para o lado de lá e adota o codinome Lisboa, ela o faz com a convicção de que está indo para o lado certo. O máximo que se pode ver de errado em um investigador é quando mentem para o bando sobre a morte de Lisboa e, claro, na índole duvidosa de Alicia (Najwa Nimri) — especialmente quando usa o filho de Nairobi (Alba Flores).

Já em “El Robo…”, vários policiais são corruptos, subornáveis. O principal, que participou ativamente do assalto, até faz abuso de drogas e álcool. Outro engana seu amante para ficar com todo o dinheiro.

Seria essa uma marca das polícias das Américas? Em um mundo onde os assassinos de Breonna Taylor são inocentados, e o fuzilamento de Evaldo Rosa continua pendente de justiça, não se pode confiar muito no sistema punitivo oficial. E não nos esqueçamos de #mariellepresente (que talvez não tenha a ver com corrupção policial, mas está impregnado de corrupção até os mais altos escalões do governo). Ah, e alguém aí se lembra da Lava-Jato e das inúmeras suspeitas de corrupção no sistema judiciário?

É triste, mas é fato que corrupção é algo com que convivemos diariamente, até nas menores coisas, vide Luana Piovanni gabando-se por ter conseguido burlar a regra de usar máscara em Paris (10 dias depois ela mesma anunciou ter contraído a doença).

C’est la vie…

4º Interferência governamental

Embora haja pressa das autoridades em resolver o caso em ambas produções, a interferência governamental fica bem mais clara em “El robo…”. Quando os assaltantes conseguem fugir com o dinheiro, imediatamente o governo argentino inutiliza as notas roubadas. Já que ainda não haviam circulado, a ideia era prender qualquer um que aparecesse com essas notas, neutralizando a ação dos bandidos. Porém, com o pânico geral da população provocado pela confusão com os números de série, a pressão popular fez com que o governo voltasse atrás e considerasse as notas novamente válidas.

Adaptado sutilmente à realidade colombiana da época, como a menção ao presidente Samper (mandato 1994–1998), a obra parece querer falar de uma realidade local, ainda que tenha sido criada para uma audiência transnacional. E aí vemos uma grande realidade política local figurando em tela: o populismo.

3º Tempo da narrativa

Enquanto “La Casa…” se passa nos dias atuais, “El Robo…” fala da década de 90. A localização é presente em várias partes da trama, a Colômbia dos anos 90 aparece nas paisagens, nos carros, nos figurinos, na arte, nos telejornais, nas notas de dinheiro. Toda a fotografia é voltada para essa atmosfera e o que é visto em tela não passa despercebido.

Por ter assistido à Irmandade recentemente, fiquei, juro, esperando que fossem falar algo sobre a copa de 94. Nada! Será por que a Colômbia não passou da primeira fase naquele campeonato? Será que o grito de “É tetra!” do Galvão Bueno chegou até os ouvidos dos nossos vizinhos?

Figura 7: Imagem retirada da série “El Robo del Siglo”. Figuras 8 a 10: Imagens retiradas da série “La Casa de Papel”. Direitos reservados à Netflix.

Observem nesse detalhe o impacto visual de mostrar uma notícia pela TV em uma e em outra obra. Nos anos 90 as televisões eram tubulares, hoje, parece um quadro pendurado na parede. Ademais, a reprodução de uma imagem 9:3 com baixa qualidade contrasta com a imagem retirada de “La Casa…” (Figura 8). Atentem em como a imagem azulada da televisão se ajusta ao cenário, quase como uma janela. Em outra cena (do episódio 6 da Parte 1), vemos Rio (Miguel Herrán) conectando rapidamente uma televisão, que aparece de pronto com imagem perfeita, algo impensável na década de 90 e suas antenas “espinho de peixe”.

Isso gera conversas diferentes com o espectador. Se por um lado, o papo está voltado para os dias atuais e as mazelas de uma sociedade de “primeiro mundo”; por outro uma certa nostalgia é acionada, bem como o olhar para o próprio quintal.

2º As histórias vizinhas

Figura 11: Imagem retirada da série “El Robo del Siglo”. Direitos reservados à Netflix. Figura 12: Reprodução internet

E por falar em “próprio quintal”, vejo aí um outro ponto divergente: enquanto “La Casa…” fala da opressão do sistema capitalista, o que é, portanto, bastante universal, “El Robo…” traz a história pra perto da América Latina.

Um exemplo está nas notas roubadas pelo bando: também ali se vê o intento de Netflix em falar para esta zona de consumo. A indígena da nota colombiana da época também estava presente, por exemplo, nas notas de mil cruzeiros do Brasil. Quem aí está na casa dos 30 e não se lembra de comprar bala com essa nota?

Saudade da infância, né, minha filha?

1º Personagens femininas

Figura 13: Imagem retirada da série “La Casa de Papel”. Figura 14: Imagem retirada da série “El Robo del Siglo”. Direitos reservados à Netflix.

Em “La Casa…” as personagens femininas são essenciais ao desenrolar da história. Tóquio (Úrsula Corberó) é quem narra a trama, Nairobi é a queridinha da audiência, Morillo é a grande conquista do bando e Alicia é a Carminha que todos adoramos. O machismo do melodrama latino assume na versão bogotana as suas raízes e coloca a maioria das mulheres em posição coadjuvante. A única que escapa a essa premissa, Doña K. (Marcela Benjumea), recebe morte trágica.

Doña K. primeiro aparece poderosa, dona de um esquema grande de ilicitudes. Ao compactuar com Chayo, vai levemente perdendo sua força ao se deparar com parceiros machistas. Diversas vezes Ulises (Ramsés Ramos) rechaça sua posição de comandante e patrocinadora do roubo. O próprio Chayo chega a dar um empurrão nela em um momento de briga. Seu relacionamento despretensioso com seu capanga Brayan (Juan Pablo Acosta) só fica explícito quando ele é assassinado.

Bom, mas estamos falando em fatos reais, então não temos muito o que fazer se os protagonistas do “atraco” são homens. Uma pena. Para quem fez o assalto possível, eu gostaria de tê-la visto triunfar. Ou pelo menos chegar a uma posição de respeito.

E você leitor, já se perguntou sobre essas semelhanças e disparidades? Saberia apontar outras questões que deixei passar? E a história? Te fez lembrar como foram seus anos 90?

*Livia Maia é mestranda pelo PPGCOM/UFMG e pesquisadora do grupo COMCULT

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com