Silvio Santos pode tudo?

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6 min readAug 9, 2018

Por: Karine Silva

“Você é muito graciosa. Embora sendo a única negra entre as brancas, é bonita. É bonita de verdade.”

Foram essas as palavras ditas por Silvio Santos, um dos nomes mais tradicionais da comunicação brasileira, à dançarina convidada para o Teleton, em novembro de 2016. A imagem, por si só já diz muito: um homem branco, apresentador e dono da emissora, apalpa a única mulher negra em cena que, no centro do palco, de costas para a câmera e com a mão na cintura, se deixa apalpar. Silvio Santos parece “medir” quantos palmos teria a extensão de seu bumbum.

A imagem nos leva a uma das reflexões do autor britânico John Berger que escreveu, em 1999, no livro Modos de Ver, sobre os papéis distintos de homens e mulheres em nossa cultura. “Os homens olham para as mulheres. As mulheres veem-se ao serem vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias. Enquanto os homens agem, as mulheres aparecem”.

A reflexão de Berger dizia de olhares de desejo e assédio — a análise do autor se baseia no quadro Susana e os velhos, de Tintoretto. Na imagem acima, permanece o padrão, porém, vamos algo diferente do desejo: vemos escárnio e zombaria no que, muito mais do que uma imagem, é uma representação visual de uma relação de poder que se perpetua há séculos neste país. E vinda da ação de um homem que, como vários outros, parece achar que pode tudo.

Silvio Santos: de empresário inovador ao patrão abusivo

“O que você acha melhor: sexo, poder ou dinheiro?” — pergunta direcionada a uma criança. 31/07/2016

“Você quer vir? Espera aí, porque vou ter que mandar reforçar o chão. Vai quebrar aqui” 12/06/2016

“Tenho certeza que vou completar 90 anos e no dia do meu aniversário, vou comer bolo que é você. Eu vou continuar tentando descobrir o dia que nós vamos levantar juntos”. 24/09/2017

“Você está parecendo uma bichinha na novela”

Esses comentários — de teor misógino, homofóbico e gordofóbico — também são de autoria de Silvio Santos. Dono de um carisma notável e reconhecido por sua trajetória de camelô a um dos maiores empresários do país, ele tem se destacado, nos últimos anos, por gafes e situações polêmicas que têm criado. De convidados a funcionárias, ninguém escapa.

Mais recentemente, se destacaram os constrangimentos causados a Maisa Silva e Rachel Sheherazade, ambas funcionárias do SBT. Maisa, que tinha 15 anos, foi convidada para o Jogo dos Pontinhos, quadro do programa de Silvio, em maio deste ano, junto a Dudu Camargo, apresentador mirim. Durante a competição, o dono da emissora começou:

“Tenho notado que você não consegue arrumar um namorado. Você tem 15 anos e ele 19 (Dudu Camargo). O jogo foi um pretexto para aproximar vocês dois”.

“Então eu posso ir embora. Não estou aqui para arranjar namorado. É um ultraje, é constrangedor você me submeter a uma situação dessa”. — Maisa respondeu.

A resposta da menina de 15 anos foi taxada como falta de educação. Maisa foi chamada de mimada e mal educada, especialmente pela apresentadora Sônia Abrão, por ter reagido à exposição a que o patrão lhe submeteu.

Sheherazade, por sua vez, foi constrangida durante o Troféu Imprensa, em abril de 2017.

“Você não consegue falar uma frase sem se meter em política? Vai se candidatar a algum cargo? E por que se mete?”

“Você me chamou para opinar”

Não, eu te chamei para você continuar com a sua beleza, com a sua voz. Foi para ler as notícias, e não dar a sua opinião. Se quiser dar sua opinião compre uma estação de TV e faça por sua própria conta”.

As ações de Silvio Santos tiveram algumas consequências. No atual cenário, de intensos debates sobre igualdade de direitos, respeito e reconhecimento da diferença, vieram questionamentos sobre sua postura.

Pelas “brincadeiras”, ele recebeu críticas da imprensa, da audiência e, pela situação com Maisa, respondeu inclusive ao Ministério Público, que moveu uma ação contra o SBT por danos morais coletivos, no valor de R$10 milhões. O processo considerou ainda um caso ocorrido em 2016 na emissora, quando o apresentador Ratinho chutou Milene Pavorô, uma de suas assistentes, no palco do programa.

Ao mesmo tempo, porém, o dono do SBT contou com defesa e naturalização de suas ações. Baseadas em que? na lendária figura televisiva de Sílvio Santos. Apontado como “um mito”, o “maior apresentador da televisão brasileira”, Silvio encontra entre seus defensores aqueles que o defendem pela sua idade e pela sua trajetória, apontando que “ele pode tudo”. Tais comentários vieram inclusive de funcionárias que foram assediadas pelo apresentador, como é o caso da assistente Helen Ganzarolli.

Televisão: um bem público e um espaço cultural, onde ninguém pode tudo.

No Brasil, ter um canal de televisão aberta requer uma concessão do Estado. Isso significa que a comunicação é um serviço público e, quando o governo cede uma concessão, é como se ele emprestasse às empresas o espaço de transmissão, que é um bem público, para ser explorado por essas.

Silvio Santos conseguiu sua primeira outorga de televisão, o canal 11 do Rio de Janeiro, em outubro de 1975, durante o governo militar, por decreto assinado pelo presidente Ernesto Geisel. Alguns anos depois conseguiu a licença para operar também o canal 4 de São Paulo. O SBT, por sua vez, nasceu no final da década de 1980.

Como em todos os setores em que a concessão é pública — como, por exemplo, o transporte — regras devem regular a mídia nacional. Hoje não existe uma regulamentação clara e estabelecida sobre a comunicação no país. Os casos são denunciados e julgados pela Justiça, e cabe ao Ministério das Comunicações o papel de fiscalizar para que o conteúdo veiculado respeite as leis do setor existentes no país.

Desde 1963, o Decreto presidencial 52.795 proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”. Somente isso já deixa claro que, independente de quem seja, ninguém pode tudo. Nem mesmo o Silvio Santos.

Saindo da perspectiva legal para a cultural, que leva em conta a função social da televisão em nossa sociedade, pensemos: que tipo de socialização imagens e comentários misóginos, racistas, gordofóbicos e homofóbicos promovem? Certamente, aquela baseada na perpetuação de privilégios de cor e de classe, em detrimento de minorias.

Aquela que considera a elitização, a discriminação e a humilhação como aceitável e ainda assume a justificativa de ser apenas uma brincadeira. A que perpetua relações de poder abusivas entre “patrões” e seus funcionários e funcionárias que, mesmo após serem constrangidas, saem em sua defesa. Um desserviço ao público e ao país — justamente o contrário do que se espera de um canal de televisão.

Algo triste de se ver, especialmente considerando uma emissora que, em plena década de 1980, abria espaço para transformistas e travestis no aclamado Show de Calouros, quando ninguém mais o fazia.

Se Sílvio Santos, um comunicador que ascendeu sendo conhecido por estar à frente de seu tempo, quiser apenas continuar distribuindo dinheiro e entretendo o seu público fiel, ele até pode. Porém, como administrador de um bem público, é seu dever repensar a forma de tratamento às pessoas, especialmente às minorias que cada vez mais ocupam espaços de visibilidade e lutam pelo respeito aos seus direitos.

Como um empresário que cuida de um bem público, ele não pode tudo. Aliás, ninguém pode.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com