Todas as Flores II: mesmo inovando, ainda é preciso que a Globoplay produza um melodrama “de estimação”?

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Bem-Te-Vi
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6 min readApr 6, 2023

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Por Simone Rocha e Mariana Almeida*

Cena com Maíra em Todas as Flores, parte II. Fonte: Globoplay

Olá cara leitora e caro leitor!

A volta da segunda parte da telenovela Todas as Flores em 5 de abril deixou a gente ansioso e inquieto como muitos de vocês devem estar. Afinal, a tomar como base o que aconteceu na primeira fase, Todas as Flores adotou um ritmo intenso na evolução da trama, ofereceu, por meio das ações dos personagens, uma escalada no tom dramático e não poupou quando o assunto é a adoção do melodrama lacrimoso que penaliza uma mocinha ingênua, doce e indefesa.

Cada acontecimento narrativo apresentado dentro de um esquema de desenvolvimento de arco dramático inovador (semanal e quinzenal, como comentado em nosso primeiro ensaio) se transformou num prenúncio de outro acontecimento muito mais intenso e tenso, modificando drasticamente o mundo e as personagens. Esse foi o caso emblemático de Maíra. Cada acontecimento foi alterando de tal modo a vida da protagonista que a vemos se transformar de uma menina ingênua a uma mãe que, ao ter o filho sequestrado, prepara-se para agir pelas próprias mãos em busca de vingança.

Porém, não estamos tomados por essa ansiedade e inquietude apenas como espectadores. Nosso envolvimento com a telenovela vai além. Somos estudiosas, pesquisadoras de narrativas de ficção seriada na era do streaming. Por isso, temos questionamentos e curiosidades sobre a história nessa segunda parte que ultrapassam o engajamento com a trama, com o suspense e com o que vai acontecer com as personagens. Temos foco no enredo, na construção do universo narrado e na jornada dos personagens.

Um melodrama “de estimação”?

No primeiro ensaio que escrevemos sobre a obra já tínhamos sinalizado a necessidade de alguns ajustes para essa nova ambiência midiática na qual a telenovela é disponibilizada. Seguimos acreditando que, no Brasil, narrativas seriadas televisivas sofreram importantes transformações quando produzidas para plataformas globais de streaming. Assim, se por um lado, Todas as Flores manteve uma trama central enraizada e capaz de comandar as tramas paralelas, por outro, deixou um fio solto quando insistiu na presença de um núcleo cômico que não se entrelaçou em momento algum com o que de mais importante acontecia na história. A desconexão dessa sub-trama envolvendo os personagens Oberdan e Jussara chegou a tal ponto que nos últimos capítulos da primeira parte da telenovela, os criadores optaram por simplesmente desaparecer com ela.

Será que a presença desse núcleo cômico não é sinal da ainda forte influência dos modos tradicionais de proposição das tramas melodramáticas — e seus arquétipos — em uma telenovela nos quais o alívio cômico é algo significativo na estrutura dramática do formato? Será que Globoplay precisa desse recurso narrativo na produção de um melodrama para chamar de seu? Será que não seria dramaturgicamente rentável abrir mão de um “melodrama de estimação” no qual todas as histórias têm que ter núcleo cômico? Com Todas as Flores, Globoplay está mostrando que pode fazer novela com ritmo e evolução da narrativa condizente com esse contexto da nova televisão. Mas é preciso arriscar mais.

Se os autores dedicados ao tema e ao estudos de uma poética das séries narrativamente complexas destacam como linha de frente a preocupação com a dimensão dramatúrgica de narrativas seriadas televisivas, por que Todas as Flores desvia da trama central para apostar em sub-trama que rebaixa o nível de atenção do espectador?

Outros fios não tão soltos… apenas mal costurados

Buscando uma mirada mais estritamente voltada para as questões narrativas de Todas as Flores (afinal, esse é o mar que gostamos de navegar), queremos compartilhar aqui alguns pontos que parecem um pouco mal costurados no enredo. Um deles nos fez pensar sobre as estratégias de construção do ambiente ficcional no qual se passa a história. Narrativas ficcionais, mesmo aquelas que buscam uma proximidade mais estreita com a realidade, têm seu mundo construído.

(https://www.benditas.art.br/colecao-narrativas/)

Desse modo, é preciso ponderar a relação daquilo que o espectador apreende da própria obra e certas referências do mundo real com as quais ela busca verossimilhança. Então, imaginar um mundo narrativo não se trata somente de pensar o espaço mas, também, regras, padrões e ideologias que sustentam as ações que cabem e as que não cabem nesse ambiente. Em resumo: coerência.

Zoé e Vanessa em Todas as Flores, Parte I. Fonte: Globoplay

E aí, quando olhamos para Todas as Flores ficamos nos perguntando sobre essa dimensão do verossímil, da coerência. Pensem com a gente: Zoé é uma das chefes da quadrinha de tráfico humano. Ao menos no “tio” Galo a personagem manda. Ela seleciona as crianças que são enviadas mensalmente para a fazenda de trabalho escravo. Porém, Zoé está sempre em apuros financeiros. Vive dependendo e chantageando a filha Vanessa em troca de dinheiro. A filha oferece 5, às vezes 10 mil, para a mãe. Em que mundo narrativo uma integrante de quadrilha de tráfico humano vive endividada e dependendo da ajuda da filha? De outro modo, para que isso seja coerente com a trajetória da personagem, por que o papel de Zoé como membro da quadrilha não é melhor explicado e articulado?

Se o rio não corre pro mar, ele perde força. Ou: tramas paralelas que não estão articuladas à trama central, perdem força

Javé e Mauritânia em Todas as Flores, Parte I. Fonte: Globoplay

A personagem Mauritânia, interpretada iconicamente por Thalita Carauta, nasceu grande, poderosa e logo se tornou uma das mais comentadas pela audiência na internet. Sua trajetória de superação entre pobreza e riqueza, seu modo autêntico, sincero e despojado de ser e encarar os outros que lhe querem mal tomou o público de carisma. Mas algo aconteceu no meio desse caminho da parte I…

Depois de se tornar uma das sócias da Rhodes, em um golpe de sorte do destino, e se concentrar na execução do concurso Garoto Rhodes, capítulo após capítulo a sub-trama da personagem foi deslocada da trama central e sua importância dramática na história perdeu força, tornou-se repetitiva em excesso ao estender por longo período o possível envolvimento romântico dela com seu sobrinho Javé, ex-paquera de sua filha. Junto à perda de força dramática de Mauritânia, outros personagens que compõem o núcleo familiar dela também ficaram mornos na trama de ritmo frenético.

Diante de um enredo cheio de reviravoltas, a personagem, no início tão vistosa e presente, perdeu importância. Nesse nem lá nem cá, ficou em lugar nenhum de impacto significativo na vida dos personagens centrais. Um potencial envolvimento mais próximo de Humberto e Mauritânia foi sugerido, mas não se desenvolveu até o capítulo 45 (imaginem Mauritânia e Zoé disputando o amor do “gostoso”)? O romance entre ela e Javé demorou para ser concretizado e não se mostrou dramaticamente de fato relevante para a trama até o fim da parte I. O papel de Mauritânia na Rhodes, que parecia ser tão revolucionário também para a trama central, ficou em segundo plano. Por que não investir mais em uma disputa de poder na empresa entre Mauritânia e Vanessa, na chefia da criação das coleções, por exemplo?

O próprio Javé também nos pareceu sub-aproveitado ao ser interligado apenas ao desejo secreto de Mauritânia ao invés de intervir na trajetória de outros personagens, como Vanessa e Pablo que circulam próximos a ele nos corredores da Rhodes. Nem mesmo a história de Javé com Patsy, sua mãe, recebeu atenção o suficiente para prender a atenção do espectador e causar impacto efetivo na vida de outros personagens.

No fim das contas, ao não investir mais nas potenciais trajetórias desses personagens que prometeram no início ser tão significativos, tais núcleos beiram o risco de serem dispensáveis ao perder a força de relação à trama central e ao não acompanhar o ritmo narrativo que Todas as Flores se propõe a fazer. O que, para uma novela feita para streaming, torna-se mais problemático: quando a opção de acelerar o capítulo pelo controle remoto e não assistir às cenas desses personagens fica ainda mais tentadora.

*Pesquisadoras do COMCULT/UFMG.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com