TODO DIA A MESMA NOITE: O drama da boate Kiss

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6 min readMay 24, 2024

Por Gabriel Dante, Isabel da Cruz, Jovana Meirelles, Laura Carellos, Maria Luisa Leal*

Divulgação: Netflix

Todo Dia a Mesma Noite (Netflix/2023) é um drama de cinco episódios que nos mostra da maneira mais real e detalhada possível o que aconteceu com as jovens vítimas do incêndio da boate Kiss e suas famílias. A tragédia de janeiro de 2013 que tirou a vida de 242 pessoas na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, ganha uma nova perspectiva. A série busca retratar o acontecimento a partir de um foco específico — o núcleo familiar das vítimas — e explora variados eixos de enredo suscitados pelo acidente, desde os preparativos dos jovens que iam à Kiss naquela noite, o incêndio em si, até os desdobramentos dele, incluindo o resgate das vítimas, as sequelas na vida dos familiares e dos sobreviventes e as investigações judiciais. De forma geral, a obra, em tom crítico, procura enfatizar a luta das famílias das vítimas, que até hoje lidam com o luto e seguem em busca da devida punição dos responsáveis pelas negligências que culminaram no incêndio.

Sendo uma adaptação do livro homônimo, da jornalista Daniela Arbex, realizada para o streaming, a série apresenta características típicas do “Drama Americano de Qualidade”, conhecido também como Drama Contemporâneo.

Em primeiro lugar, é interessante observar como a narrativa incorpora um certo hibridismo de gênero, adotando diferentes tons temáticos para conduzir o enredo. Por exemplo, nos dois primeiros episódios a série trabalha com a novidade de conhecer a vida dos jovens antes do incêndio, causando uma tensão e ansiedade no telespectador, que já sabe o que vai acontecer. Depois entra em cena toda a ação e adrenalina no momento da tragédia em que as vítimas tentam lutar por suas vidas. Ao mesmo tempo, quando o incêndio se inicia e as famílias recebem a notícia do que estava acontecendo, percebe-se um tom mais dramático para retratar a angústia e o sofrimento dos envolvidos — ao passo que surgem o tom de suspense, especialmente na parte em que os familiares vão atrás de descobrir se os seus filhos estavam no local ou não, se conseguiram fugir e se sobreviveram. A partir do episódio três, o drama passa a ser mesclado com uma abordagem mais policial, que acompanha as investigações judiciais para a culpabilização dos atores pelas negligências que levaram ao incêndio.

Nessa medida, os diferentes gêneros também suscitam subtramas na obra: enquanto as cenas da investigação constroem um foco de enredo, as cenas que mostram a recuperação dos sobreviventes exploram outro nicho da história. Ainda, os diferentes núcleos familiares de cada vítima também representam, cada um deles, uma trama distinta. De forma geral, entende-se que o incêndio naquela noite destrinchou diferentes núcleos possíveis de trama — afinal, a tragédia acarretou em inúmeros desdobramentos e prejuízos (humanos, materiais, burocráticos).

Divulgação: Netflix

Outro ponto interessante de Todo Dia a Mesma Noite é a construção narrativa em episódios que se complementam, dando continuidade a progressão da história. Ao longo de cada episódio, diferentes partes do acontecimento central são exploradas. Por exemplo, no primeiro episódio, vemos a noite do acidente, enquanto no segundo, os resgates das vítimas e o início do luto das famílias. Ao final deste, emerge também um novo eixo da trama: os pais têm a ideia de criar a associação dos familiares e vítimas, que se desenrolará nos episódios subsequentes. Assim, no terceiro episódio e os seguintes, as investigações que se iniciam marcam outro arco que se entrelaça ao acontecimento central.

Outro aspecto do Drama Contemporâneo na série é a sofisticação estilística, já que a produção da série foi permeada por uma variedade de detalhes que garantem a profundidade necessária para transpor o realismo das cenas. Nesse sentido, houve por exemplo, uma ambientação e caracterização dos personagens que reforça a regionalidade sulista dos participantes, como os sotaques, gírias, comidas típicas, instrumentos musicais e outros.

A produção também não se limita a ambientes fixos, como a casa dos personagens, mas apresenta também cenas no hospital, na delegacia e no tribunal. Além disso, outro detalhe importante são os efeitos técnicos nas cenas do incêndio que garantiram imagens mais difusas e embaçadas, simulando as sensações de um incêndio real, com fumaça, cinzas e a confusão mental gerada pela inalação do monóxido de carbono. As imagens em tons mais frios também foram pensadas para intensificar a dramaticidade das cenas e a tristeza dos acontecimentos mostrados.

Divulgação: Netflix

De quem é a história?

Apesar de as subtramas se desenvolverem com base na tragédia da Boate Kiss, a produção se baseia na trajetória de alguns personagens principais. A série parte da história das vítimas fatais Mari, Felipinho, Marco e Guilherme, de seus pais — que lutam por justiça — e também da vida dos sobreviventes Grazi e Fernando. Sendo assim, podemos perceber um número maior de protagonistas e narrativas que se entrelaçam à medida em que os fatos avançam.

Porém, o quadro alargado de personagens não se atém apenas aos protagonistas. Na série também notamos o desenvolvimento de personagens secundários, como a Capitã Idalina, do Corpo de Bombeiros, apresentada no terceiro episódio. Ao longo da série, a participação dos réus organizadores do evento, membros da banda e do sub-gerente da boate também evidenciam subtramas ao redor de personagens secundários, característica vital no Drama Contemporâneo.

Com a fragilidade psicológica causada pela perda, a raiva da impunidade, a dificuldade em lidar com o trauma e o sofrimento de encarar uma nova realidade após a tragédia, os personagens da série passam por sentimentos confusos e em alguns casos, moralmente questionáveis. Ao longo dos episódios, a obra mostra a trajetória dos protagonistas, evidenciando uma “evolução” por parte deles, seja na busca por justiça, na forma de lidar com a dor ou na reconstrução da vida após o trauma.

Divulgação: Netflix

A evolução dos pais das vítimas também é evidenciada. Após a tragédia, muitos deles demonstram sérias dificuldades emocionais em lidar com a perda, como é o caso do pai de Felipinho, que passa a abusar do álcool, ou de Ana, que passa a tomar remédios para dormir ao lembrar do filho. Com a criação da associação de familiares e vítimas, as histórias de cada família se entrelaçam, principalmente na luta por justiça e no processo de lidar com a perda. Este processo, inclusive, se entrelaça com a história pessoal do próprio delegado que investiga o caso, quando ele revela no memorial que sua prima também foi vítima do incêndio.

Vale destacar que a série transita por diferentes tempos, rompendo com a ideia de linearidade. O drama dos protagonistas é pensado revisitando momentos do passado e relembrando cenas do incêndio. Tal aspecto transmite ao público uma sensação de verossimilhança em relação ao sentimento de trauma, como na cena em que familiares de Ricardo assistem ao noticiário que relata a tragédia, ou quando flashbacks trazem à tona características das vítimas e evidenciam a dor dos familiares. Por fim, os momentos de depoimento dos réus e testemunhas, bem como os julgamentos, colaboram para o efeito de mescla entre presente e passado.

Dessa forma, ao utilizar as características do Drama Contemporâneo, Todo dia a mesma noite consegue fidelizar a audiência, haja vista que a produção alcançou a sexta posição no top 10 das séries em língua não-inglesa mais assistidas do mundo. Talvez isso se deva ao fato de que, desde o primeiro episódio, o público já sinta-se envolvido pelas trama e subtramas dos personagens.

*estudantes da disciplina “Estudos em comunicação: Televisão na Era do Streaming.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com