Um novo interesse no velho cangaço: do terreno árido das estruturas de serialidade à sensibilidade emocional

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Bem-Te-Vi
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9 min readJul 18, 2024

Por Frederico Ângelo*

Reprodução: Prime Vídeo

“Asa Branca na amplidão.

Riacho virou caminho.

De pedras ardendo em fogo.

No poço secou a água.

Menino morreu sem nome.

Na Caatinga o homem chora.

O boi que morreu de sede.

A roça que era verde”

(Música Sertão Alceu Valença).

Tiros, perseguições, grandes efeitos, uma fotografia do sertão, quantas séries são conhecidas por tais características? Aumentamos o repertório ao incluir paixões e conflitos políticos? Afinal, de qual das centenas de séries estamos falando? Prezados, estamos falando da série sucesso em países africanos, asiáticos, e em alguns países da Europa. Não estamos falando de uma série estadunidense e muito menos oriunda do continente europeu. Estamos falando da série original brasileira do Prime Vídeo: Cangaço Novo.

Caro leitor, peço sua paciência para construirmos na breve caminhada deste texto algumas pistas sobre o que pode estar além dos tiros, das bombas e da política. Neste árido terreno, em que gêneros como o policial e a ação podem ser encontrados no drama, o cangaço encontra uma trilha, assim como a mais densa chuva proporciona bons frutos.

De onde vem este vaqueiro….

A série conta com a expressão “novo cangaço”, oriunda da década de 1990, muito utilizada pela imprensa e por forças de segurança como forma de denominar uma nova modalidade de crime realizada em três grandes atos: a tomada de pequenas cidades, assalto a agência bancária e uso de reféns para as fugas. Este tipo de crime consagrou-se nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, uma vez que tais localidades possuíam força policial muito reduzida, o que proporcionava às quadrilhas uma vantagem no momento de assaltar agências bancárias ou carros-fortes.

A produção tem a direção de Fabio Mendonça e Aly Muritiba e conta a história de Ubaldo (Allan de Souza Lima), um bancário demitido e frustrado, residente na cidade de São Paulo, que se envolve com uma gangue do sertão cearense ao tomar conhecimento da herança de seu pai biológico.

Ubaldo necessita de um alto valor em dinheiro para os cuidados do pai adotivo que está doente na capital paulista. A falta de recursos financeiros para o custeio no tratamento de saúde, no entanto, recebe um adendo para a sua solução quando o ex-banqueiro descobre uma possível herança deixada pelo pai biológico, um homem muito poderoso de Cratará, fictícia cidade do sertão cearense.

Em sua cidade natal, Ubaldo é recebido como “herdeiro do cangaço”, e descobre ter duas irmãs: Dinorah (Alice Carvalho), uma assaltante de bancos, mulher aguerrida, única pertencente a gangue que aterroriza a cidade, e Dilvânia (Thainá Duarte), a líder de uma fraternidade que cultua seu pai morto. Com o desenrolar da narrativa, Ubaldo vira chefe de uma quadrilha de assalto a bancos.

Venerado pelo povo de Cratará, mas em permanente enfrentamento com a irmã Dinorah, Ubaldo inicia sua jornada dominada por bandidos, assassinos e policiais corruptos. É nesse contexto que as origens do personagem transbordam em sua trajetória, fazendo com que ele se transforme. Diante de suas raízes familiares e cercado por problemas estruturais do Brasil, Ubaldo nasce como um anti-herói, assumindo o título de “herdeiro do cangaço”.

Reprodução: Prime Vídeo

Plantemos sensibilidade em terras secas

Envolvente desde o início, a jornada já começa com uma certa adrenalina. Mariana Bardan e Eduardo Melo, criadores da série, possuem uma sensibilidade histórica e regional para a criação do roteiro. Apesar da crítica destacar as cenas de ação, a narrativa permite nuances em seu enredo que resultam em uma bem-sucedida produção.

Tais cenas de ação, com o devido retoque de dramaticidade, elevam a complexidade da produção, assim como o visceral trabalho dos atores — com destaque ao arco dramático dos irmãos Ubaldo e Dinorah. A carga dramática é progressiva, apresentando dosagens consistentes e bem estruturadas ao longo de cada episódio.

Isso torna a obra uma terra frutífera em meio ao árido terreno da serialidade. Mariana e Eduardo utilizaram da experiência de vida, como os próprios autores descrevem nesta reportagem, para através da estrutura de seus personagens, apresentar um sertão coberto de emoções. A série possui a habilidade necessária para alternar ação e drama, sendo que, em alguns momentos, a hibridação dos gêneros é percebida na tamanha carga de dramaticidade em cenas de ação. Um exemplo disso é quando Ubaldo, ao tentar retornar a São Paulo, para no banco e acaba sendo levado pelos bandidos após o assalto. Ao vê-lo junto ao bando, Dinorah para o comboio e ameaça matá-lo. Ela é contida pelo grupo, que apela para o laço de sangue que une ambos. Neste quesito, a série conquista a atenção do telespectador ao convocá-lo, para junto do personagem, para desenvolver a história.

A série é uma contínua escalada de tensão, o que não significa que a produção comece “devagar”, pelo contrário, a profícua crescente carga emocional é que possibilita a obra, entre outras coisas, a um contínuo nível de atenção entre os episódios, elevando a tensão de forma a convocar o telespectador a desenvolver certas emoções em consonância com os personagens.

Se o sertão é uma terra frutífera para debater as questões sociais mais urgentes do país, seria ela a melhor opção para, por meio da serialidade, convocar uma pura sociologia do serial. Cangaço Novo desenvolve uma sensibilidade histórica e antropológica do sertão, seu povo e cultura que extrapola as estruturas do texto, podendo ser escrita apenas através de uma estrutura da sensibilidade e um horizonte de expectativa. Os roteiristas Maira e Eduardo conseguiram o êxito através da vivência de ambos.

Reprodução: Prime Vídeo

O telespectador da série se empolga com sua serialidade pela estratégia de variações presente no produto audiovisual, o que Umberto Eco chama de leitor de segundo nível. Ou seja, o público se envolve com o produto por sua contínua elaboração de modo a fazê-lo ser diferente. Por isso, declarar que Cangaço Novo se resume a cenas muito bem produzidas de ação é perder sua sofisticação e estética apurada.

Ao construir o seu telespectador, a série invoca um olhar mais crítico a certas questões sociais pertinentes do sertão de outrora e o contemporâneo, ou melhor, a produção mostra um sertão atemporal.

O entrelaçamento de várias estratégias utilizadas pelos seus criadores faz com que a obra diga por si, não do gênero ao qual ela pertence, mas de sua própria estrutura, do modo de como ela é feita, como ela propõe uma inovação, como a produção extrapola o próprio texto. E também como questões externas contribuem para a moldura de sua serialidade. Por ora, não ouso explorar mais sobre o tema, já que Cangaço Novo merece uma análise mais profunda. Mas talvez deixe pistas para futuras reflexões.

Reprodução: Prime Vídeo

Para vencer não seguimos a regra do jogo

A obra apresenta ao longo dos episódios uma escala gradual no que se refere ao quadro de emoções. Ao contrário de séries nacionais que possuem a chancela “Originals” ou “Original” fruto de uma produção colaborativa entre roteiristas, players e produtoras, Cangaço Novo utiliza das estratégias da seriedade contemporânea do incidente incitante (ler Rocha) e a hibridação de gêneros. Analisando por outro viés, a série não apresenta um fato ou uma sequência de acontecimentos, mas, lança as primeiras cenas de forma tão impactante que consegue captar a atenção do seu telespectador.

Cangaço Novo, segundo os próprios roteiristas, realiza de forma gradual, a cada episódio, elevando a tensão emocional dos personagens e convocando a quem assiste a elevar seu nível de atenção e emoção em consonância com a narrativa. As cenas que apresentam estas características são marcadas por uma verdadeira equação matemática. A curva dramática decorre do seu ápice na transformação de seus personagens e em pontos cruciais da história, possibilitando que a narrativa consiga manter um constante nível de atenção e carga dramática ao longo dos oito capítulos.

Mesmo apresentando cenas de ação gravadas com um nível altíssimo de detalhamento, uma produção impecável e uma fotografia sensível o suficiente para detalhar as nuances do sertão, em todos os aspectos, sejam técnicos, artísticos ou em elementos da narrativa, o drama apresenta sua marca. E não de forma rasa ou simplista: é possível perceber de forma sutil e estratégica a utilização do melodrama para dar conta do sertão, da narrativa e de um emaranhado de intrigas (políticas, familiares, sociais) chamado Brasil. A toda esta complexidade o gênero oferece elementos estruturais necessários para a equação narrativa/emoção presente na série.

Reprodução: Prime Vídeo

Um exemplo encontra-se no episódio três, denominado ‘Meu nome é Ubaldo Vaqueiro’. Após um assalto frustrado, em que integrantes da gangue foram mortos e feridos, ao encontrar com policiais no meio da fuga, o restante do bando se reúne em um esconderijo improvisado. Ameaço, um dos comparsas, chega ao esconderijo e, ao juntar-se ao grupo, questiona o fracasso do assalto. Ele questiona quem do bando matou e o porquê daquele insucesso — e questiona de forma mais agressiva a Ubaldo. O protagonista, que até então sofria de insultos e desconfianças sobre seu passado e sua conduta, tem um ataque de fúria e começa a brigar com Ameaço. Em um primeiro momento, ao vencer a briga, ele começa a questionar o bando sobre as técnicas empregadas no assalto e os seus procedimentos. De forma sorrateira, Ameaço levanta e aplica um golpe pelas costas de Ubaldo, derrubando-o. Entretanto, Ubaldo consegue se esquivar dos golpes e retoma o controle da briga, proferindo as seguintes palavras que dão nome ao título do episódio: — “Meu nome é Ubaldo Vaqueiro”.

Neste momento, o personagem tem uma transformação de personalidade dentro da narrativa, isto é, em um arco dramático, ele encontra na tensão emocional, sua virada de chave. Ubaldo deixa de ser um personagem pacato e torna-se protagonista junto a suas irmãs, questionando a gangue, incluindo sua irmã Dinorah. Neste momento, os integrantes presentes reconhecem em Ubaldo traços que marcaram a vida de seu pai, junto ao povo da região, tanto em seu semblante quanto em sua fala. Este exemplo apresenta elementos que estão inseridos em toda a produção, intensa carga dramática, narrativa densa, arco emocional crescente, ou seja, elementos que compõem uma série para além de tiros, efeitos especiais e fotografia.

A cena citada acima ainda possui enquadramentos que exploram a tensão exigida pelo momento, cada personagem possui um foco que detalha as expressões contidas em sua face. O medo, a adrenalina, a frustração, a morte, e a raiva. Todos os elementos apresentados pelo plano geral e demais enquadramentos que proporcionam a quem assiste, identificar em cada olhar o terreno árido das sensibilidades emocionais do sertão.

Toda jornada tem um fim…ou um novo recomeço

“É preciso se fazer parte do chão.

Pra se sentir sertão, sertão

Ser sertão é emprestar seu corpo agreste

Para ser retalhado por caminhos”

Música Sertão João Paulo e Daniel

Reprodução: Prime Vídeo

Cangaço Novo apresenta, em meio ao sertão, um Brasil em terra seca, em meio a uma árida estrutura política colonial de luta pela terra, mas que mostra sensibilidade emocional suficiente para não desistir da batalha. Como diz a música, é preciso fazer parte deste chão para conseguir transmitir através da estrutura narrativa, a intensidade emocional presente na produção. Cangaço novo é, entre outras coisas, uma serialidade originalmente nacional, que estrutura tensão e que proporciona ao público uma pujante jornada emocional. Para além da violência que o sertão sofre e sofreu ao longo dos tempos, a série apresenta marcas profundas deixadas nesta terra e como emerge de suas frestas abertas desde o Brasil colônia.

Dinorah e Dilvânia representam as milhares de mulheres do sertão, por meio dos conflitos familiares, sociais e por meio da luta pela terra. Elas mostram uma versão do país que é desconhecida para muitos, apresentada por meio da busca por justiça e pela igualdade social. Já Ubaldo é inserido neste contexto ao entender seu passado e a história e dedicação de seu pai para com seu povo. Ele encara sua missão de libertador e, junto a suas irmãs, busca dignidade para os sertanejos da região. Essa busca por justiça e por dignidade social é a linha tênue na qual atua a emoção.

A composição destes e de outros personagens da série passa por uma fina linha da dicotomia que poucos lugares como sertão pode oferecer, do anti-herói a vilão, da mocinha a ativista, da apaixonada a assaltante líder do bando. Arcos emocionais que exigem de quem assiste um certo nível de atenção em toda obra: é a emoção que molda a estrutura narrativa, permitindo ser uma obra original brasileira, ou melhor, original do sertão nordestino.

*Doutorando pelo Programa de Pós Graduação da UFMG e integrante do COMCULT.

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Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. grupocomcultufmg@gmail.com