A lírica do encontro

Revista Blooks
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6 min readMay 11, 2018

Texto de Luiza Romão
Originalmente escrito para a Revista Blooks #5

Foto de Sérgio Silva

É terça-feira. O sol se pôs há algum tempo e as pernas estão cansadas de subir a ladeira infindável. Atrás, o Parque Santo Antônio se esparrama a perder de vista. Passa-se a igreja e, então, desponta o Bar do Zé Batidão. Cenário peculiar onde logo mais ocorrerá a Cooperifa, um dos saraus pioneiros de São Paulo. Ali, no coração da zona sul, Sérgio Vaz, Rose Dorea, Lu Sousa e tanto outros guerreiros organizam a noite poética. Entre letras de rap, sonetos e haikais, a poesia recupera sua potência e materialidade. O público, atento e interessado, explode em gritos e palmas ao fim de cada texto. Durante a apresentação, o silêncio é uma prece.

Nesse mesmo instante, em outra parte da cidade, mais especificadamente na Vila Madalena, dentro da Galeria de Arte A7ma, o Sarau do Burro está prestes a começar. Sem lista de inscritos ou mediação, a dinâmica ocorre espontaneamente, em roda. Os participantes lançam os poemas (autorais ou não) conforme a dinâmica e os assuntos anteriores, criando um jogo de escuta, criação e improviso. Além da literatura, o espaço também é preenchido com performances, exposições, vídeos e cantorias.

Para finalizar nosso giro, caminhamos alguns quarteirões e chegamos na Nossa Casa. Enquanto nos fins de semana o espaço oferece festas e baladas, às terças ele dá lugar a um tipo interessante de sarau. Um trio de músicos improvisa continuamente, enquanto os poetas sobem ao palco para recitar. Música e palavra dançam livremente numa jam session instigante. Ritmos, melodias e quebras abruptas se formam no ineditismo do instante e o poema ganha outra tessitura sonora e semântica, estética e política.

Esses três exemplos fazem refletir sobre a importância e a diversidade dos saraus hoje. Se durante décadas a poesia ficou restrita ao círculo acadêmico e às minorias econômicas, hoje ela irrompe com máxima potência em bares, livrarias, praças e espaços públicos, ganhando vitalidade, novos autores, escritores e leitores.

Poesia Falada

Não raro, ouvimos discursos hegemônicos sobre a poesia como um gênero menor, menos rentável, com pouco público e interesse mercadológico. Se, por um lado, esse discurso tem seu fundo de verdade (visto a parcial ausência de títulos nos catálogos das grandes editoras), por outro, a realidade parece mostrar o contrário. Atualmente, a cena de saraus (em suas múltiplas facetas geográficas, estéticas e econômicas) atua em duplo sentido: como formação de público e estímulo para criação.

O microfone deixa de ser uma posição de privilégio e hierarquia, e se torna um espaço democrático de inscrição da subjetividade. Nos saraus, qualquer um pode declamar, não há distinção de escolaridade, gênero ou etnia; pelo contrário, o respeito aos múltiplos saberes e trajetórias é soberano. Além disso, a experiência poética se dá no âmbito coletivo. A divisão público-plateia dissolve-se, dando lugar à horizontalidade das posições. O poeta que fala é o mesmo que escuta. A leitura deixa de ser uma prática do âmbito privado/particular (“eu e o livro”), e volta à sua dimensão comum (“a cidade e o poeta”).

É interessante pensar que esse atual retorno da poesia à oralidade se relaciona com as origens da literatura. Ilíada e Odisseia, por exemplo, só ganharam materialidade e encadernação depois. Eram epopeias em versos, apresentadas ao vivo, com acompanhamento musical, que envolviam a comunidade e criavam um forte elo entre o aedo (cantante) e os ouvintes. Mais do que isso, os fatos relatados compunham o imaginário social e mitológico daquele núcleo, o que intensificava a prática artística. Nos saraus, ocorre uma estrutura similar. As poesias geralmente versam sobre fatos recentes, eventos e pautas urgentes. O conteúdo faz parte da rotina e do interesse daqueles que a escutam. A lírica deixa de ser algo fetichizado, o que facilita o acesso ao mundo das letras.

Foto de Sérgio Silva

Poesia escrita

Se, por um lado, é na oralidade e na performance ao vivo que o encontro se dá, por outro, a nova cena poética também se preocupa com a publicação e a produção bibliográfica. Mais do que tentar entrar no know-how das grandes companhias, os autores viabilizam seus próprios meios de produção e circulação. Por exemplo, nesse meio tempo, acompanhamos o surgimento de diversas pequenas editoras e selos editoriais, vários deles coordenados por escritores. Eles se debruçam tanto sobre poetas mais renomados quanto sobre jovens estreantes. Além disso, costumam ter preocupações tanto com o acabamento do objeto-livro quanto com a diagramação interna dos exemplares. Assim, vemos livros com formato diferentes, escritos em dupla ou em mais de uma língua.

Nessa linha, aparecem também as editoras artesanais, que prezam pela particularidade de cada livro: as capas são feitas uma a uma, a costura lateral sem o uso de máquinas, a prensagem com as próprias mãos. O processo de produção deixa de ser industrial e se torna um acontecimento vinculado àquele que escreve. O leitor, ao entrar em contato com o volume, sabe que o autor dedicou um bom tempo para produzir cada detalhe e sutileza da obra. É importante lembrar também das cartoneiras, tipo de publicação surgida na Argentina e que tem se disseminado no Brasil, feita com papelão e materiais recicláveis, que barateiam e facilitam os custos processuais. E também dos fanzines, publicações caseiras, com recortes, colagens, poemas escritos a mão ou impressos, que circulam numa rede paralela de distribuição por correio (ou online). Há também aqueles que dispensam tais suportes e publicam de forma completamente independente, na maioria das vezes sem ISBN ou cadastro institucional.

Quanto à verba, ou os autores financiam suas publicações, ao arrecadar dinheiro via editais públicos, leis de incentivo ou financiamento coletivo, ou as editoras cobrem os custos do processo gráfico (impressão, diagramação, revisão etc.) e circulam, posteriormente, a obra. Em geral, o lucro de um título garante o próximo. Como era de se esperar, a circulação também se dá por vias denominadas alternativas. Se alguns volumes adentram às redes de livraria, a maior parte encontra seu público pela internet ou em espaços culturais alternativos. Os saraus, assim como eventos de lançamento, se tornam o principal lugar de circulação, uma vez que o poeta tem ali seu público e sua rede afetiva. Da mesma forma, o espaço virtual também atua como impulsionador, seja pela manutenção de páginas de Facebook, blogs, produção de videopoemas ou elaboração de sites.

É assim que a poesia irrompeu na última década, com muita potência e vivacidade, com uma forte atuação tanto em eventos coletivos quanto em publicações escritas. É assim que ela continua ressoando pelas margens do urbano, que hoje se constituem um centro poético, estético e político digno de destaque.

Luiza Romão é poeta, atriz e slamer. Formou-se em Artes Cênicas pela USP e atualmente cursa o último ano da Escola de Arte Dramática na USP também. Em 2014, publicou o livro Coquetel Motolove. Esse ano se prepara para lançar seu segundo livro, Sangria. Além disso, participou de diversas coletâneas (digitais e impressas) sobre literatura periférica. No teatro, integrou como atriz e/ou diretora os coletivos: Cia Ato Reverso, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Literatura Ostentação, Teatro Documentário e Turma 66. Além disso, pesquisa e produz videopoemas performáticos.

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