A literatura de cordel como tradição transformadora

Revista Blooks
Revista Blooks
Published in
7 min readMay 7, 2018

Texto de Jarid Arraes | Obras de J. Borges
Originalmente escrito para a Revista Blooks #2

Dezenas de folhetos coloridos pendurados em um cordão e um homem sertanejo sentado ao lado, com seu chapéu de couro no topo da cabeça. Para muitas pessoas, essa é a imagem evocada quando a literatura de cordel vem à mente. Embora essa representação seja importante para compreender as raízes do cordel e sua identidade, trata-se de um reducionismo do que é a literatura e a cultura nordestina em si — isso quando sequer há espaço para relacionar o cordel com literatura.

Faça um experimento: entre em alguma livraria e procure por cordéis. Não importa se a livraria é de grande porte ou um espaço dedicado a publicações alternativas e independentes: quando o assunto é cordel, se muito, você poderá encontrar uma quantidade bastante limitada de livros que falam sobre o tema ou, com muita sorte, uma espécie de livro — na maioria das vezes infantil — que vai brincar com a ideia de fazer cordel. Os folhetos, montados com xilogravuras nas capas, são difíceis de encontrar até mesmo em bibliotecas.

Mas por que um tipo de literatura e expressão cultural tão tradicional fica de fora das livrarias, bibliotecas e eventos literários? A resposta certamente não está na qualidade da escrita, uma vez que o cordel está cheio das características que muita gente adora exigir para classificar algo como boa literatura: métrica impecável, rimas ricas, ritmo, melodia, forte marcação identitária, histórias diversas que mesclam humor, folclore, romance e política. No entanto, se a qualidade literária não explica o status de esquecimento que lhe é imposto, o que mais explicaria?

É possível lançar uma série de teorias e respostas, a começar do preconceito contra o Nordeste, já que o mercado literário e a mídia estão profundamente centralizados no sul e no sudeste do Brasil. Porém, apesar de essa ser uma opção bastante eloquente, não dá para descartar a hipótese da ignorância como um dos fatores decisivos nesse quadro gradativo de esquecimento da literatura de cordel. Afinal, como as pessoas podem consumir — e escrever — algo que não conhecem?

A situação é uma espécie de bola de neve às avessas. Pouca gente tem contato com o cordel, porque é uma literatura que ainda vive presa num imaginário popular de exclusão; as novas gerações não se interessam, porque o cordel não está na mídia e não é a sensação popular do momento; e assim, os responsáveis pelas editoras, livrarias e eventos literários acabam por não incluir o cordel e os cordelistas em seus espaços. No fim das contas, todo mundo perde.

Mas e se você conhecesse o cordel de forma mais aprofundada? Se pudesse enxergar seu potencial transformador na sociedade? E se tivesse a oportunidade de escrever o seu próprio cordel, algo mudaria?

O potencial revolucionário do cordel

Com a literatura de cordel como aliada, o clichê de “mudar o mundo” não soa tão inalcançável. Os folhetos de cordel são baratos, acessíveis e extremamente fáceis de transportar e de compartilhar com outras pessoas. Melhor ainda: são ideais para utilização em sala de aula. Entre rimas, estrofes e melodias, muitos assuntos pertinentes podem ser tratados e debatidos.

Nos últimos quatro anos, desde que comecei a publicar os meus cordéis, recebi centenas de mensagens com depoimentos de educadores que compram meus folhetos e utilizam minhas rimas para falar sobre questões raciais, de gênero, de diversidade sexual e história. Com a série Heroínas Negras na História do Brasil, séculos de esquecimento começam a ser rompidos e muita gente escuta falar, pela primeira vez, sobre as mulheres negras que foram líderes quilombolas e guerreiras na luta contra a escravidão.

Pelo cordel, nomes como Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares, Zacimba Gaba e Mariana Crioula protagonizam discussões acaloradas sobre racismo e machismo; até mesmo uma aula de português pode ser a oportunidade perfeita para colocar essas questões em pauta.

Esse tipo de cordel com proposta social é chamado de Cordel Engajado e pode trazer política, defesa de causas e críticas sociais para a literatura de uma maneira profundamente envolvente. Afinal, a literatura de cordel é excelente para entreter e divertir, mas é melhor ainda quando consegue contribuir para a transformação da sociedade em uma realidade onde exista mais equidade e respeito pela diversidade.

Esse respeito, aliás, pode começar pela própria valorização do cordel, algo que só deve acontecer quando todos os empecilhos preconceituosos forem tirados do caminho. Ainda há muito a se caminhar, sobretudo com o alarme do tempo piscando e gritando que um dia, infelizmente, o cordel pode virar artigo de museu. Se não for lembrado, escrito e divulgado, o cordel pode acabar, o que seria, no mínimo, um enorme desperdício.

Mas como tudo fica mais convincente e acessível quando dito em ritmo de cordel, prefiro concluir a defesa da causa em versos de septilha.

Eu nasci foi no sertão
Cariri do Ceará
Terra feito a aguardente
Quente toda de torrar
E foi lá que aprendi
O que venho dividir
Pra você poder pensar.

O meu povo nordestino
Cheio dessa inteligência
Fez brotar a tradição
Com imensa competência
Do cordel para escrever
E pra todo mundo ler
Na mais pura excelência.

Mas a mim muito incomoda
Um danado dum problema
Que plantado em preconceito
Se transforma num dilema
Pois o tal esquecimento
Sem nenhum embasamento
Só impõe o seu esquema.

O cordel fica excluído
Muito pouco que é lembrado
Em evento literário
Nem sequer é mencionado
Porque acham que cordel
É só resto de papel
Pra largar e ser rasgado.

Mas é grande ignorância
A raiz pra se arrancar
Porque se você conhece
Vai bem fácil concordar
Que cordel é realeza
Literária de riqueza
Sempre pronta a declamar.

Pra criar um bom cordel
É preciso habilidade
E pra ter eficiência
É preciso de verdade
Respeitar a tradição
Escrever com emoção
E honrar a identidade.

A literatura de cordel pode ser escrita por qualquer pessoa, em diferentes tipos de estrofes e rimas. A mais comum se chama sextilha e é ideal para compor suas primeiras histórias. Abaixo, o exemplo de uma estrofe do meu cordel Travesti não é bagunça:

Isso tudo é lamentável
É tão triste e revoltante
Travesti também é gente
Ser humano e importante
Quem não pensa desse jeito
É que é intolerante.

Cordel para todo mundo ler — e escrever:

Na sextilha simples, as rimas ficam no final dos versos 2, 4 e 6. O restante pode ser escrito como se desejar, desde que a métrica esteja bem encaixada. Uma forma de facilitar esse ponto importante é transformar seus versos em um “forró”, em que cada frase deve demorar o mesmo tempo para ser cantada; ou ainda recorrer a quatro batidas na mesa ou na perna para contar o tempo. Se o verso puder ser declamado dentro do período dessas quatro batidas sem ser apressado e sem modificar a pronúncia das palavras, é bem provável que você tenha respeitado a métrica corretamente.

Veja um exemplo retirado do meu cordel Photoshop é a mulesta:

Photoshop nesses casos
Serve só para enganar
Muda o corpo por completo
Que é prassim ludibriar
A mulher comum que vê
Tal mentira a desejar.

É um danado dum estica
Puxa aqui, puxa acolá
Tira isso e tira aquilo
E esse vamo é clarear
Diminui, só emagrece
No padrão faz encaixar.

Para quem está começando, vale recorrer aos verbos para facilitar. Além disso, não precisa ter medo de “escrever errado”. O cordel fica ainda mais marcante quando expressões populares, gírias e erros intencionais entram no jogo de palavras. É o que dá identidade ao cordel e o torna mais interessante. Mas isso não quer dizer que a escrita não exija certo tempo de familiarização: a poesia do cordel não é aleatória, é carregada de identidade e de melodia. O cordel tem seu próprio jeito de ser declamado e é exatamente isso que o torna tão único e lúdico. É por isso que o cordel é tão eficiente quando utilizado para transmitir mensagens importantes e necessárias, como temáticas políticas e sociais.

Jarid Arraes é escritora, cordelista e autora do livro As Lendas de Dandara. Criadora da Terapia Escrita, mediadora do Clube da Escrita para Mulheres e do Clube Leitura Independente. Possui mais de 50 títulos publicados em literatura de cordel, alguns em parceria com a ONG Artigo 19 e o site Think Olga.

--

--