As Bahias e a Cozinha Mineira e a transformação da MPB

Revista Blooks
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5 min readMay 8, 2018

Texto de Fabiane Pereira
Originalmente escrito para a Revista Blooks #4

Foto: Divulgação

A música popular brasileira, assim como o Brasil, foi completamente transformada nos últimos anos. Antes de explicar tal transformação — se é que conseguirei fazê-la — é preciso lembrar que convencionou-se chamar de MPB a todo tipo de canção que se contrapunha àquela, supostamente, popularesca e consumida pelas massas por meio das rádios comerciais e dos programas de TV.

Sou cria do rádio. Filha de uma ouvinte assídua, minhas preferências musicais, durante muitos anos, tocavam repetidas vezes no radinho de pilha lá de casa. Após tornar-me jornalista, o rádio me escolheu e, desta vez, não apenas como mais uma de suas ouvintes e sim como parte de sua engrenagem. Aceitei seu convite e durante treze anos estive na já saudosa rádio carioca, MPB FM. Neste período, apresentei por cinco anos o programa Faro MPB, voltado exclusivamente para divulgação, no dial, da nova produção musical contemporânea e foi através dele que conheci, pessoalmente, Assucena Assucena e Raquel Virgínia.

As Bahias e a Cozinha Mineira é uma banda extraordinária que faz parte de um novo e fundamental movimento estético-político da chamada Nova MPB: o MPBTrans — termo cunhado pelo deputado federal Jean Wyllys. Segundo Jean, em texto publicado na revista TPM, “a MPBTrans é a música que resulta dos — e responde aos — impactos políticos, sociais e estéticos das novas tecnologias da comunicação e da informação (internet e redes sociais digitais) nessa segunda década do novo milênio; é o movimento que se contrapõe, em termos artísticos, ao retorno dos discursos conservadores, reacionários e fundamentalistas religiosos à hegemonia política no país”.

A música proposta pelo grupo As Bahias e a Cozinha Mineira tem papel fundamental nesta pulverização das fronteiras de gênero. Raquel Virgínia nasceu em São Paulo e aos 18 mudou-se para Bahia atrás do sonho de ser cantora de axé music. Já Assucena Assucena nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia, e ao ingressar no curso de História na Universidade de São Paulo, uma das mais prestigiadas academias do país, viu seu caminho se cruzar com o de Raquel, e juntas se aprofundaram nos debates sobre gênero, arte e estética. Na faculdade, ficaram conhecidas pelo mesmo apelido: Bahia. O músico Rafael Acerbi, colega da USP, é o responsável pela guitarra, violão e pela cozinha mineira da banda. Deste encontro acadêmico nasceu o power trio que, em 2015, lançou o disco Mulher, em total sintonia com as discussões feministas que dominaram as redes sociais nos últimos tempos.

“Existir e resistir no palco como artistas trans já é muito simbólico. Estamos em cima de um palco, corpo à mostra e postura política pautada em discursos contrários ao fascismo. Isso faz com que nossa mensagem vá longe e com força, tem fundamento e substância. ‘Nós cantamos de verdade’ como diz a canção dos Doces Bárbaros”, pontua Raquel.

Foto: Divulgação

Interessante ressaltar que boa parte desta transformação da MPB ocorrida nos últimos anos tem relação umbilical com a internet e as redes sociais. Artistas que emergiram após 2010 ganharam espaço nas mídias tradicionais por fazerem barulho nas novas mídias e muitos ainda trocaram os escassos espaços em impressos, rádios e programas de TV por lugares que lhe dão o protagonismo merecido entre os internautas.

Mulher, primeiro álbum da banda, fala de mulheres no plural e também de homofobia, machismo e outros preconceitos enraizados e disseminados pelos valores morais judaicos-cristãos e cada vez mais explícitos num Brasil que aplaude o “dever burguês”. Com um figurino que valoriza essa potência em que assumem suas identidades de gênero, muitas vezes, policiadas por “esta gente careta e covarde” (viva Cazuza!), a dupla tem lotado todos os espaços por onde se apresenta.

“O panomorama atual sócio-político nos influencia de forma direta. Não existe trabalho artístico pautado à margem do sócio-político. Cada escolha artística é produzida e pensada para um público e estar em público já é um ato sócio-político. Não fugimos disso. E isso se apresenta em nosso corpo artístico e no disco”, explica Assucena. Sobre o álbum, diz que “os enigmas e proposições das mulheres que, muitas vezes, são inteligíveis para os homens, também estão presentes no trabalho. Como escreveu Caetano Veloso, ‘uma mulher é sempre uma mulher’ e é exatamente disso que trata esse disco: do universo feminino”, completa.

Conectada com seu tempo, esta transformação da música popular brasileira resulta de uma ressignificação artística e individual. A estética e o discurso político evocados pelos artistas que promovem este novo movimento, o MPBTrans, também são inspirados e influenciados por nomes, hoje reverenciados, que em outrora precisaram se (auto)afirmar. “Minha principal influência é Gal Costa. Ela realmente é uma inspiração e dá margem ao que busco criativamente em meu trabalho. Além dela, outras divas como Elis Regina, Nana Caymmi, Maria Bethânia e Elza Soares me ensinaram o canto e a postura das cantoras na sociedade. O que nos move é a necessidade de se comunicar com inteligência e beleza”, afirma Raquel.

Não há dúvidas de que a música é uma das manifestações artísticas mais libertárias. A música popular brasileira, em especial, por sua diversidade e riqueza rítmica sempre permitiu a emergência de artistas que cantam as liberdades individuais, sobretudo quando estas estão ameaçadas. Num momento em que artistas como Chico Buarque são atacados por convicções políticas, é preciso que repensemos em que país queremos viver. Sendo assim, entoar versos contra o fundamentalismo religioso, a hipocrisia e a conquista dos direitos das mulheres é lutar de forma lírica, mas não menos combativa.

Que a música popular brasileira nos salve destes tempos difíceis.

Fabiane Pereira é jornalista, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais — , escritora, apresentadora, roteirista, produtora cultural e apresentadora do programa de rádio Faro MPB.

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